Cidades

Artistas da terceira idade protagonizam exposição de arte

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postado em 02/12/2008 08:12
Parecia cena do filme Ensina-me a viver, quando uma mulher idosa ensina um jovem rapaz a acreditar na vida. Na tarde de ontem, não era sessão de cinema. Nem imaginação. A cena era real, mesmo que os personagens não tivessem quase nenhuma diferença de idade. Mas a emoção foi a mesma. Naquela galeria cheia de quadros, uma mulher de 83 anos conversa com um homem de 80. Ela é pintora premiada, talentosa, desbravadora. Irreverente. Ele, escritor, também talentoso. Estão sentados em volta de uma mesa. Conversam sobre a vida. O homem se diz entristecido, desencorajado. Quase sem esperança. Como se nada mais lhe desse algum prazer. ;O mundo anda desinteressante. Nem dá vontade de viver;, ele reflete. A mulher o fita, com compaixão. E devolve: ;Você tem que acreditar em sonhos;. O homem ouve. Não mais responde. Despede-se e vai embora. Ainda sentada, a mulher de 83 anos admira aquele tanto de quadros espalhados pelo local. São 43 pelo salão. Dez são dela. Idosos protagonizam exposição de arte
A mulher que disse ao escritor que ele precisava acreditar em sonhos esperava outras pessoas chegarem. Uma a uma foram chegando. Seria um encontro de cinco artistas. Mas apenas quatro foram. E lá estavam eles, falando em sonhos, contando projetos e esperando a grande noite de hoje, quando suas obras serão admiradas por quem ali passar. Estamos diante de Maria Lygia Faria Rodrigues (M Lygia, como é conhecida no meio artístico), a mulher que conversava com o escritor; de Adelina Marquez Alcantâra, 85; Geralda Oton de Lima, também 85; e o mais experiente e vivido da turma, Umazo Shinada, de 90 impecáveis anos. Japonês de nascimento, sorrir timidamente é sua marca registrada. O que essa gente toda fazia ali reunida? Era uma confraria de artistas plásticos da mais alta qualidade. E, até por isso, de uma simplicidade cativante. Uma gente que nasceu artista. E que viveu e vive da sua arte. Há tanto tempo e o tempo todo eles respiram pintura. Produzem obras geniais. Participam de incontáveis exposições. Ganharam e continuam ganhando prêmios. Suas obras estão espalhadas pelo mundo. E o melhor de tudo: moram aqui, chegaram ainda no início, quando a terra de JK era apenas poeira, barro vermelho, perspectiva e uma tonelada de sonho. Mas eles acreditaram na nova capital. Deixaram sua terra natal em busca do futuro prometido. Construíram suas famílias. E pintaram como nunca. Hoje à noite, a partir das 20h, suas obras farão parte da exposição 250 anos de pintura em cinco histórias, na Galeria de Arte da Legião da Boa Vontade (LBV). Por que 250 anos? ;É o tempo que calculamos, por baixo, que cada um dos cinco artistas tem de profissão;, explica a curadora da exposição Marta Jabuonski, de 57 anos. Por baixo mesmo. Umazo Shinada, com nove décadas de existência, começou a pintar ainda menino, no Japão. E a conversa não pára naquele lugar cheio de quadros, inspiração e tempo. O papo é recheado de gargalhadas e histórias. A fluminense de Niterói Lygia fala dos tempos em que estudava na Escola de Belas Artes, no Rio de Janeiro. E descobre que a mineira de Uberlândia Adelina também estudou por lá. Umazo, com português ainda muito arrastado ; mesmo depois de 74 anos de Brasil e 48 de Brasília ; conta que, ao chegar a São Paulo, aos 16 anos, foi trabalhar na lavoura. Não se adaptou. ;Eu gostava mesmo era de pintar;, diz o homem que mora no Riacho Fundo II e anda de ônibus, pra cima e pra baixo, com entusiasmo de garoto. Encáustica Geralda, potiguar de Currais Novos, 11 filhos, fala do tempo em que tudo começou. Dos cursos que fez. Das premiações. Das coletivas e individuais de que participou. E diz, como confissão: ;Pinto melhor quando estou triste. Aí, minhas telas ficam cheias de emoção;. Adelina explica que trabalha usando a encáustica. ;É uma técnica que usa cera, resina e pigmentos. Surgiu no Egito e existe há mais de três mil anos, antes de Cristo.; Lygia, que chegou a Brasília em 1961, participa desta exposição com dez telas. ;Semana passada, fui ver meu currículo e ele aumentou mais duas páginas. Neste ano, estive em várias exposições e recebi mais algumas medalhas e prêmios.; Por telefone, já que não pôde ir à LBV por problemas de saúde, o quinto participante, Milan Dusek, de 84 anos, contou que pintar é algo indefinível pra ele. ;É como perguntar por que você escreve? Ou para alguém por que ele canta?;, compara. Depois, o homem que nasceu em Praga, chegou ao Brasil aos 15 anos, parou no Rio de Janeiro e em 1962 mudou-se para Brasília admitiu, comovido: ;Pinto porque é o que ainda me mantém vivo;. E a boa conversa continua. Estar ali é como fazer uma viagem. Pelo tempo e pela rica experiência daquela gente que nem a idade roubou a alegria e a vontade de viver. Geralda, que tem cara de mãe ou avó que coloca o rebento no colo, confessa que quando vende uma tela sente um vazio enorme: ;É como se levasse um filho meu;. Lygia emenda: ;Eu fico muito feliz em imaginar que uma obra minha está em algum lugar, sendo vista por outras pessoas;. Adelina conta um segredinho: ;Já tive intoxicações em função do material que uso no meu trabalho. Os médicos me proibiram de pintar. Eu não aceitei. Comprei uma máscara americana, uso sempre que vou pintar. E disse ao médico: ;Doutor, entre viver muito e não pintar, prefiro pintar;. Ele entendeu;. Shinada, o japonês naturalizado brasileiro e brasiliense de coração, conta, empolgado, que tem quadros encomendados até o ano que vem. Especialista em aquarelas e retratos, o artista plástico diz que gosta de pintar fisionomias. Pintou seu auto-retrato. Usou o espelho para se ver refletido. ;É pra ver como a gente vai mudando. Vou deixar pros meus netos;, conta. E até quando vai pintar? O homem de 90 anos responde, simplesinho, como se desse mais uma pincelada em uma de suas incontáveis telas: ;Até morrer;. Juventude Adelina pintou um quadro e o chamou de Amanhecer da vida. Quadro Amanhecer da Vida, de Adelina
Noutro, fez uma mulher. E o batizou de Juventude. Não dá para não olhar mais de uma vez. Aquela mulher ali pintada talvez seja ela mesma. A pintora jura não ser: ;Não uso modelos. Pinto pessoas imaginárias. Tudo é minha criatividade;, assegura. Lygia se superou. Juntou pintura e escultura numa tela gigante. Fez uma réplica de O quarto, do genial pintor Van Gogh. ;Mas com algumas modificações. Usei colagem e acrílica em madeira;, explica. A talentosa Geralda usa suas recordações de menina no Nordeste para compor sua obra genuína. Num dos quadros, Invocação pela chuva, a artista volta a um tempo que só ela conheceu: ;Via como as pessoas rezavam para a água cair do céu. Isso nunca me saiu da cabeça;, conta. Suas telas são fortes, com cores igualmente fortes, sempre carregadas de muita emoção e significados. Numa delas, Viva a vida, ela usou até conchinhas de praia, trazidas de Natal. ;Eu amo minha terra;, confidencia a moradora da 308 Sul. Logo mais à noite, os artistas receberão o público. Geralda não deixa por menos: ;Venho de vestido longo. A gente precisa valorizar nosso trabalho, vir à altura dele;, ela brinca, com disposição de menina. Shinada estará lá com o habitual sorriso e o andar apressadinho. Adelina explicará suas telas e técnicas com gosto de vida. Lygia comemora suas mais de 1,5 mil obras, seus prêmios, suas condecorações. Na verdade, o maior prêmio de todos eles é o tempo. Tempo que virou cúmplice e os fez acreditar na vida e na infinita possibilidade de produzir e continuar. Imperdível Exposição 250 anos de pintura em cinco histórias. Abertura hoje, às 20h, na Galeria de Arte da LBV, na 915 Sul. Vai até o dia 16, todos os dias, das 8h às 20h. Entrada gratuita

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