Cidades

Cinco homens contam como a dependência da droga lhes roubou a vida

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postado em 09/12/2008 08:10
Pedra, brita, tijolo, criptonita. Não importa o nome: o crack destrói. Tira a fome, a sede, a dignidade e a alegria de viver. A droga que vicia no primeiro contato e mata com extrema rapidez se espalhou pelos lares do Distrito Federal. O viciado no entorpecente capaz de derrubar até o Super-Homem, como se diz nas ruas, carrega consigo o rastro da humilhação e da violência. Os usuários roubam para manter o vício. Vendem os corpos se preciso. Tudo por mais uma porção. Nas últimas duas semanas, o Correio investigou o submundo do crack na capital federal. No domingo passado, o jornal publicou reportagem sobre o tráfico da droga no DF. Ontem, revelou que existem oito cracolândias na região. Hoje, traz as histórias de usuários que tentam se livrar do vício. Durante o período de apuração, a equipe de jornalismo encontrou diversos consumidores, alguns em locais como Plano Piloto e Ceilândia; outros em centros de reabilitação. Em comum, vergonha, paranóia, degradação e ânsia por socorro. Os que acabaram nas ruas ; mesmo nascidos na classe média ; lembram hoje mendigos. Quem procurou ajuda fala da droga com respeito, mas na esperança de um futuro melhor. O cearense Josué*, 31 anos, morador da Asa Norte, se viciou em crack a ponto de vender tudo o que a família tinha. ;Tentei me matar três vezes. Se não fosse a minha mulher, tinha pulado no Buraco do Tatu;, diz o homem que luta pela sobrevivência no Centro de Reintegração Deus Proverá, em Planaltina. A instituição, administrada pelo pastor evangélico Francisco Ramalho Medeiros, cuida de 70 abrigados entre 18 e 60 anos. Todos dependentes de álcool ou de outras drogas. A Deus Proverá é uma entre as dezenas de entidades envolvidas no tratamento de viciados no DF. Há entidades filantrópicas, como ela, privadas e do governo (os Centros de Assistência Psicossocial para Usuários de Álcool e Outras Drogas). Quem assume a responsabilidade sobre um dependente químico de crack sabe da dificuldade para conter as crises provocadas pela ausência da droga derivada da cocaína. Mesmo com o apoio da religião ou da psicologia, só se vence o crack se houver abstinência e força de vontade. A pedra mata. Sem conversa. Sem piedade. Os nomes dos entrevistados são fictícios Ação no Buraco do Rato O Correio publicou ontem reportagem denunciando o vaivém de usuários e traficantes de droga na garagem subterrânea da Quadra 5 do Setor Comercial Sul, conhecida como Buraco do Rato. Ontem mesmo, a Polícia Militar e a Agência de Fiscalização do GDF (Agefis) realizaram operação no local e descobriram um depósito clandestino onde apreenderam materiais de vendedores ambulantes, como carrinhos de pipoca, picolé, sucos, baú com balas e CDs piratas. A suspeita é que cerca de 30 camelôs usavam o depósito. Policiais e fiscais não encontraram drogas no Buraco do Rato, mas verificaram que um bar funcionava na área, com duas mesas de sinuca e caixas de isopor com cervejas. Segundo o sargento do 1º Batalhão da PM Nanciel Sousa, havia 12 pessoas no lugar no momento da apreensão. ;O responsável pelo local ainda não foi identificado, mas será autuado por falta de alvará de funcionamento;, explicou. Na ação, Jonny Alves Costa, 28 anos, foi preso pela venda de CDs e DVDs falsificados. ;Conheci o Satanás em pessoa. Virei zumbi; JOSUÉ*, 31 anos Ele vendeu tudo o que tinha por causa do crack. Um apartamento, três carros, as roupinhas do filho pequeno, os vestidos da mulher. Até a porta de casa parou nas mãos de um traficante da Asa Norte. Também tirou a comida da boca da família, usando o dinheiro do almoço e do jantar para comprar droga. O mestre-de-obras Josué acabou na rua. O estudante de escolas particulares, crescido na classe média carioca, virou mendigo brasiliense. Josué, nascido no Ceará, líder de galera e amante de roupas de marca no Rio de Janeiro, aos 17 anos descobriu o mesmo talento do pai: construção de prédios. Vinha de uma família amorosa, mas sucumbiu à curiosidade. Experimentou maconha, cocaína. Largou estudos e profissão. O mestre-de-obras se tornou traficante para custear o vício. Um vacilo imperdoável para o tráfico, no entanto, o obrigou a deixar a capital carioca. Era fugir ou morrer. Josué parou em Ceilândia, na casa de um tio. Aqui, foi apresentado à merla. Traficou em Brasília, levou a merla para Goiânia e encheu o bolso de dinheiro. Tinha clientes ricos. Mas a fama alcançou a polícia. Teve de sumir de novo. De volta a Brasília, tentou mais uma vez trabalhar honestamente. O mestre-de-obras conheceu a atual mulher, com quem tem um filho. Mais uma vez, porém, se perdeu. Virou traficante de cocaína e se viu diante do crack. Aos poucos, viu desabar tudo o que havia conquistado. Luta hoje para se livrar do pesadelo da pedra. Briga não só por ele. Mas pela família. Três ex-viciados falam sobre o problema com as drogas Repórter: Guilherme Goulart DEPOIMENTO: ;Conheci o Satanás em pessoa. Crack é uma morte certa. Virei zumbi. Não parava mais. Torrei tudo o que eu tinha. Vendi as roupas da minha mulher e do meu filho pequeno. Torrei três carros e um apartamento com tudo o que tinha dentro. Peguei dinheiro que a gente tinha para comer. Resumo: acabei dentro de uma favela no fim da Rodoferroviária. Larguei a minha família e fui morar num barraco de madeira. Roubava as coisas na rua, trazia para lá e ficava fumando a droga lá. Já era dependente total. Já tinha virado mendigo. Mas não faltava droga nunca. Depois disso aí, conheci o crack em pedra mesmo. Fumando, comecei a vender crack no Conic. Meu compradores eram os playboys, os noiados da rua. Lá, é um enxame à noite. Ficava ali, na porta do Conic, na praça, nos bancos. Não queria saber da mulher e dos filhos. Tentei me matar três vezes. Se não fosse a minha mulher, eu tinha pulado no Buraco do Tatu.; ;Tinha apego, amor ao negócio (crack); PEDRO*, 24 anos O jovem de 24 anos carrega no corpo 32 marcas de queimaduras. As cicatrizes arredondadas, feitas por ele mesmo com pontas de cigarro comum ou de maconha, servem como recordação. Por trás delas, uma história para contar. Fuga da polícia, nascimento do filho, escapada da morte. O último carimbo em brasa aparece ao lado de vários outros no antebraço esquerdo. Lembra o dia em que um amigo morreu assassinado. Pedro nasceu em Planaltina. O pai se matou na frente da família com um tiro no peito. O menino nunca mais esqueceu o dia em que o corpo do herói desabou sem vida diante dele. O garoto não precisou crescer muito para conhecer o álcool e as drogas. Começou aos 11 anos. As cobranças da mãe, a impaciência do garoto e o início da vida de crimes fizeram com que Pedro abandonasse a família. Praticou furtos e roubos na rua. Acabou preso. Mudou-se para São Paulo. Voltou. O jovem de Planaltina perdeu a referência. Vendeu tudo o que podia para comprar as pedras. Ficou sem comer, sem beber, sem viver. Ficava dias longe de casa. A mulher, grávida, ficou do lado. E o acolheu em uma das crises. Pedro se internou em uma clínica de reabilitação. Voltou para o Distrito Federal. Após 11 anos de consumo de substâncias das mais variadas, luta para voltar à vida com dignidade. E para ser um pai para o filho de 1 ano e 7 meses. DEPOIMENTO: ;O crack não dá. Não vai, não, que ele vai te machucar. Enquanto tinha dinheiro, conquistei todo mundo. Depois, nada. Queria voltar para Brasília, mas achava que aqui não tinha crack. Não tinha coragem de vir, de abandonar o crack. Tinha apego, amor ao negócio. Mas viemos embora para a casa da minha mãe. Tinha merla aqui, mas eu fazia a merla virar crack. Só que ficava fraquinho. Fumava duas latas e não dava nada. Jogava cocaína na veia, às vezes com água ou com vodca. Só faltava morrer. Tava morando em Formosa (GO). Minha mãe não me dava mais dinheiro e comecei a roubar. Em um dia muito louco me meti num assalto e fui preso. Achei melhor lá na cadeia do que fora. Aqui, tem as drogas. Uns dias depois de sair da cadeia, inventei de dar um peguinha no crack. Voltei com tudo, mas me internei há quatro meses. Hoje eu falo sem encher a boca d;água. Hoje eu vejo o que um simples cigarro pode fazer.; ;O crack destrói tudo; PAULO*, 30 anos A vida do paranaense Paulo tem tiro, facada, prisão, desavença, briga, morte, assalto e tráfico de drogas. Um rastro de violência que vem desde a infância. Começou com as bebedeiras do pai, ganhou força a partir da maconha e da cocaína e chegou ao limite da destruição com o crack. Defendeu-se e sobreviveu a quase tudo. Mas perdeu para as pedras feitas a partir da pasta-base da cocaína. Elas o levaram à loucura, ao desespero e às dependências química e psicológica. O menino criado em favela de Cuiabá, capital do Mato Grosso, percorreu o país durante a adolescência. Morou em 23 cidades de sete estados brasileiros. E sempre viveu enfiado na hierarquia das empresas administradas e gerenciadas por traficantes de drogas. Traficava para manter o vício e ganhar dinheiro. Também roubou. Praticou assaltos, às vezes sem a menor necessidade. Tinha o bolso cheio, mas se arriscava ;por esporte;. O homem que não terminou o ensino médio hoje não quer que as próprias experiências sejam exemplo para o filho de 6 anos. Pretende exercer o papel que o pai dele não soube viver. Dará carinho, amor e, acima de tudo, diálogo. Começará pedindo perdão por tudo o que fez. Para tanto, resolveu se internar. Sabe que a tarefa não será fácil. E que as possíveis recaídas surgirão como fantasmas do crack. A última assombração apareceu há quatro meses. DEPOIMENTO: ;Quando eu tinha 19 anos, larguei a cocaína e fui para o crack. Fiquei de um jeito que tava ficando louco. Usava crack direto e todos os dias. Até que precisei parar, pois, se não fizesse isso, eu iria morrer. Fiquei sem consumir crack entre 2004 e este ano, até quatro meses atrás, quando tive uma recaída, infelizmente. Passei duas semanas doido na rua. Enquanto isso, a minha noiva estava sozinha em Sobradinho. Resolvi me internar. Também tenho um filho de 6 anos. Eu, como pai, vou começar desde agora a conversar com o meu filho para que ele não passe por tudo o que passei. Vou fazer o papel que meu pai deveria ter feito comigo. Depois de tudo isso, ganhei muita coisa, mas também perdi muito. O crack destrói tudo. E quem o usa não consegue fazer mais nada.; ;É uma depressão interna, a machadada final; LUCAS*, 26 anos Sozinho e isolado, louco de crack, Lucas se viu sem perspectivas. Desconheceu o passado. Não percebeu o presente. E abdicou do futuro. Chorou. As lágrimas não pararam até ele arrancar da parede o fio do telefone. Enrolou-o no pescoço, prendeu-o no teto e subiu em uma cadeira. Olhou em volta. E finalmente deixou o corpo cair. A história do jovem brasiliense, nascido em berço confortável, terminaria ali se o fio do aparelho não arrebentasse com o peso do corpo. Lucas veio ao mundo no Hospital das Forças Armadas (HFA), no Cruzeiro. Filho de mãe política e pai comerciante. Cresceu na classe média alta de Cristalina (GO), município distante 122km do Plano Piloto. Estudou nas melhores escolas da cidade. E andava com a turma dos filhinhos de papai. Rapaziada descolada, curtia maconha, cocaína e festas. O então adolescente reagia com deslumbramento a tudo o que os mais velhos faziam. Imitava-os em tudo. Principalmente nos excessos. Até assaltos praticou. A família o internou algumas vezes. Não adiantou. Passou a roubar em casa e a vender crack para sustentar o vício. Até que chegou ao limite. Tentou quatro suicídios, um deles com veneno de rato. Há quatro anos luta para largar o vício. O primeiro filho com a companheira ajudou, apesar de ter derrapado na droga há dois meses. O papel de pai o fez enxergar a realidade com um pouco mais de clareza. Dá aula de informática e faz faculdade de teologia. DEPOIMENTO: ;Nasci em Brasília, no Hospital das Forças Armadas, no Cruzeiro. Era de uma família bem-sucedida de Cristalina (GO), de classe média alta, olhava os meus amigos de mesma classe, os ditos descolados, e entrei nessa. Na minha família, não havia orientação em relação a drogas ou sexo. Comecei a roubar em casa, tentei viver por meio do tráfico, até mesmo em Planaltina. Nesse tempo todo de drogas, tentei quatro suicídios. Tomei chumbinho e tentei me matar com fio de telefone. A dependência química do crack é muito forte. É uma depressão interna, a machadada final. Já fui para a boca-de-fumo antes de acabar o pouco da droga que tinha. Há quatro anos luto para largar o crack. Estou há dois meses sem. Cada um de nós aqui hoje é um milagre. Agora, sou pai de uma criança de 6 meses. Quero orientar o meu filho a não repetir os meus erros.; ;Parei porque tava morrendo; MATEUS*, 26 anos Mateus assaltou, traficou e pulou de caminhão em movimento para escapar da polícia. Tudo em nome do crack. As pedras quase acabaram com a vida de um jovem que terminou o ensino médio repleto de planos. Tinha emprego como técnico em comunicação, carinho e atenção da família. Queria ir para a faculdade. Mas experimentou maconha. Seguiu para a cocaína, viciou-se em merla. Até então conseguia conciliar as drogas e as responsabilidades da vida. Só que acabou apresentado ao crack aos 24 anos. O contato com a droga virou apego. Transformou-se em dependência. De uma pedra, passou a duas. E a rotina durou um ano. Foram 12 meses de violência e sofrimento. Entrou no tráfico pelo crack. Roubou pela brita. Furtou a própria família para trocar o que pudesse por mais uma porção. Também tomou pancada e mais pancada por ela. Foi preso e humilhado. Até ser proibido de entrar em casa, exposto ao relento como um mendigo. Mateus definhou. Não tinha fome nem sede. Ficou esquelético, a ponto de perder as forças e o ânimo para viver. Por iniciativa própria e com o apoio da família, procurou ajuda em centros de reabilitação do governo. Tenta se livrar do flagelo do vício para recuperar o tempo perdido desde que conheceu o crack. Após meses longe das drogas, quer agora seguir os passos do irmão mais novo. O jovem de 22 anos concluiu a faculdade. DEPOIMENTO: ;Experimentei o crack aos 24 anos. Foi logo que ele começou a aparecer nas bocas de Valparaíso e Luziânia. Antes, não tinha nada disso. Aos 25, ainda usava cocaína, merla e maconha, mas logo depois larguei tudo por causa do crack. Com ele, a gente se sente mais forte, mas também sente muito mais necessidade. Usei crack direto por um ano. Chegou uma hora que não tinha dinheiro. O jeito era roubar para comprar drogas. Pratiquei assalto à mão armada. Pulei de caminhão para fugir do Bope (Batalhão de Operações Especiais), mas também fui preso. Parei há um ano porque tava morrendo. Não comia, não bebia água e fiquei muito magro. O crack me derrubou. Perdi emprego, amigos e a moral com a minha família. Chegava em casa e encontrava as portas trancadas. É humilhante demais. Fizeram isso porque passei a levar o que tinha dentro de casa. Só não levei o carro do meu pai. Falo hoje do crack com vergonha e medo.;

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