Cidades

O arquiteto vislumbra a cidade, sete anos depois

O Correio acompanhou o arquiteto em parte da viagem do Rio a Brasília. Ouviu histórias de arquitetura, amizade, medo de avião e testemunhou galanteios de um cavalheiro de 100 anos

postado em 14/12/2008 07:31
Quando acordou na última segunda-feira, o arquiteto Oscar Niemeyer estava determinado a desistir da vinda a Brasília. ;Comigo é complicado. Eu cismo, eu faço. Não queria vir não. Foi uma chateação. Para que ir a Brasília? Não tenho o que fazer lá. A gente toma umas decisões assim, esquece os compromissos. Saí da cama e resolvi não ir;, comentaria na pernoite da viagem. Ainda em casa, no Rio, tratou de preparar o discurso com o qual tapearia a mulher. A essa altura, Vera Niemeyer já tinha organizado o esquema da viagem de 1.140 quilômetros. Já havia preparado os dois carros, definido as paradas necessárias.

Niemeyer nem teve tempo de tentar ludibriar a mulher. Com lábia e bom humor, Vera convenceu o marido a entrar na Mercedes prata. Lembrou da última viagem a Belo Horizonte. O arquiteto se entusiasmara tanto com a estrada entre Rio e a capital mineira que até sugeriu um pulo a Brasília. Na terça-feira passada, entre uma taça de vinho e uma cigarrilha no salão em estilo colonial de um hotel fazenda em Sete Lagoas, a caminho de Brasília, ele riu da rabugice. ;Não senti nada, parece que vim a um hotel aí perto. Estava achando que ela (Vera) era uma megera, que não estava tomando conta da minha saúde. Foi bom ter vindo.;

A saúde vai bem. Amanhã, Oscar Niemeyer completa 101 anos. Fez cara feia para quem sugeriu passar o aniversário em Brasília. Os dois dias de ida e mais dois de volta não espantam o arquiteto, que viaja sempre acompanhado para poder ;conversar; ; detesta ficar sozinho. ;Venho olhando a paisagem, conversando com os amigos. Uma vez fui ao Rio Grande do Sul de gasogênio (carro alimentado a carvão, da época do racionamento de combustível, durante a 2; Guerra Mundial), que é mais complicado. Levei nove dias, eu e mais quatro companheiros, mas foi divertido. A gente ia conversando besteira. O tempo passa e a conversa é boa.;

Gosta tanto de estrada (e de boa conversa) que nem o pneu furado durante o trajeto o desanimou. Ao chegar no hotel-fazenda em Sete Lagoas, no final da tarde do primeiro dia da viagem, Niemeyer nem quis ver o quarto ou nele descansar um pouco. Do guichê foi direto para uma poltrona confortável no hall do hotel. Da beira da piscina, observou a casa colonial com a curiosidade de arquiteto: ;É estranha, não é antiga nem moderna;. De fato, o hotel foi construído há nove anos com materiais resgatados de velhas fazendas mineiras. O vento que anunciava a chuva fez a passagem pela piscina terminar em menos de 20 minutos. ;As moças não ficam chateadas de entrar?;, pediu um Niemeyer galanteador. No salão do hotel, conversou com o Correio Braziliense durante mais de duas horas. Posou para fotos com um parente distante e desconhecido que, coincidentemente, se hospedava ali e não se levantou até Vera anunciar que o jantar estava servido.

Sempre acompanhado

No dia seguinte, foi o primeiro a se sentar à mesa do café, mas só aceitou ser servido depois que todos chegaram. ;Ele não come sozinho;, explicou Vera. O dia claro e limpo anunciava céu azul, sem as nuvens que o arquiteto gosta de observar durante longas viagens de carro. A façanha de colocar toneladas de ferro voando nas alturas é ;contra a lei da natureza;, diz o arquiteto. Por isso, o avião é um meio de transporte que ele renegou a vida inteira. Niemeyer bem que gostaria de visitar algumas de suas centenas de obras distribuídas pelo mundo, mas para isso o homem precisaria inventar um modo de transporte rente ao chão ou à água, porém mais rápido que carros, navios, trens. Se não fosse de avião, ele iria. ;Iria sim. Não posso é perder tempo;, explica, enquanto descreve alguns de seus projetos recentes, um teatro em Ravello (Itália), uma praça no Cazaquistão, outra em Recife e uma biblioteca na Argélia.

A concepção de um projeto nem sempre significa sua realização. O próprio Niemeyer tem criações nunca construídas. Não chega a ser incomum um pedido de modificação para reduzir custos. Aconteceu com a praça do Cazaquistão e a equipe do escritório atendeu o pedido. Mas o arquiteto ficou especialmente irritado quando o governo de São Paulo se recusou a fazer a reforma do prédio do Detran, ao lado do Ibirapuera, para receber a coleção do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC/USP). O elevado valor da obra desestimulou o governador José Serra. ;Eu briguei com o Serra. Disse que o que eu tinha para receber ele mandasse para Santa Catarina. A gente tem que trabalhar e brigar. Essas coisas a gente tem que defender.;

Niemeyer diz que não gosta de falar sobre as próprias obras, mas não dispensa os grupos de arquitetos e estudantes que batem à porta do escritório em Copacabana todos os dias. Reserva a manhã para conversar com os desconhecidos e tem fórmula pronta quando fareja alguma chatice nos diálogos. ;Conversa é fácil a gente enrolar. Levo o negócio para o lado da política, digo que a vida é mais importante que a arquitetura;, brinca.

Para ;enrolar; amigos e admiradores, Niemeyer construiu auditório e colocou um piano no escritório da Avenida Atlântica. O pianista é o engenheiro-calculista José Carlos Sussekind. Outros amigos se encarregam da flauta e Vera, da voz. Rotina que vai de segunda a sábado. Niemeyer não gosta dos domingos. São melancólicos e solitários. Bom mesmo é a fuzarca do escritório. Encontros festivos se mesclam à concentração na prancheta e às aulas de filosofia e cosmogonia, nas quais o arquiteto descobriu a possibilidade de universos paralelos. ;A gente fica tão pequenino, tão desimportante;, repara. ;A gente tem que se interessar pelas coisas senão vira um bicho.; Mesmo com a vista debilitada, Niemeyer alimenta a sede pelas ;coisas; com a ajuda de Vera. É ela quem digita os textos ditados, crônicas para livros, jornais ou explicações que considera indispensáveis para novos projetos.

Na cabeça
O menino que desenhava no ar e passou a traçar no papel hoje volta a erguer o dedo no vazio. Se a vista vacila, a imaginação floresce. ;Quando trabalho, só penso em trabalho, fico surdo mudo e cego. Não, cego não. Mas sou capaz de fazer um projeto sem pegar no lápis;, garante, fazendo com o indicador um suave gesto de quem começa um traço. ;O arquiteto, quando pensa uma obra é como se tivesse a coisa construída, dá para imaginar o projeto todo. O desenho me levou à arquitetura. Eu tinha 7 anos e ficava desenhando com o dedo.;

Também saem dos olhos de Vera as leituras indispensáveis ao arquiteto. O encanto mais recente é com a história do elefante transportado Europa adentro em pleno século 16, narrada em A viagem do Elefante, de José Saramago. ;Todos os personagens têm nomes próprios;, avisa Niemeyer, acostumado à falta de nomeação nos romances do português, um comunista que sempre admirou. Falar de política ainda empolga o arquiteto, ele mesmo um esquerdista assumido e orgulhoso de ter projetado a sede do Partido Comunista em Paris. Já recebeu em casa e no escritório figuras históricas como Fidel Castro e Hugo Chávez, mas nunca transferiu o título de eleitor de Brasília para o Rio de Janeiro. ;Ele até quis, porque queria votar no (Fernando) Gabeira;, conta Vera. O título registrado na capital é resultado de um convite do então governador José Aparecido de Oliveira para se candidatar a senador pelo Distrito Federal em 1986. Niemeyer ri quando lembra da história e revela que, na verdade, nunca teve realmente a intenção de se candidatar.

O pouco interesse da juventude pelas coisas do mundo entristece o arquiteto. Ele acredita que falta sustância à formação dos jovens brasileiros de modo geral. Por isso acalenta a idéia de criar uma escola de Arte e Arquitetura em Niterói (RJ), projeto que começa a tomar corpo no seio da Fundação Oscar Niemeyer. ;Minha neta conseguiu financiamento. Ainda tem que mexer no prédio, mas acho que em seis meses já vai ter a escola. (O aluno) vai estudar ciência, política, literatura, vamos espalhar o conhecimento;, garante.

O horizonte de Brasília despontou no pára-brisas da Mercedes por volta das 19h. Uma linha que o arquiteto não avistava havia sete anos. O trânsito da cidade pela qual circulam mais de 1 milhão de carros por dia estava denso e o comboio liderado pelo secretário de Cultura do DF, Silvestre Gorgulho, decidiu seguir pelo Lago Sul em vez de atravessar o Eixão. Niemeyer pediu para ficar hospedado no Brasília Palace Hotel, destruído pelo fogo em 1978 e reinaugurado há dois anos. ;Fiquei tanto nesse hotel;, comentou. O arquiteto foi conduzido a uma suíte especial, mas reclamou. Queria mesmo um quarto comum, para conferir a reforma.

Comigo é complicado. Eu cismo, eu faço. Não queria vir não. Foi uma chateação. Para que ir a Brasília? Não tenho o que fazer lá. Saí da cama e resolvi não ir <--

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Quando trabalho, só penso em trabalho, fico surdo-mudo e cego. Não, cego não. Mas sou capaz de fazer
um projeto sem pegar no lápis
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Quando querem melhorar, aí é pior. Tem uma besteira de querer mudar tudo. Essas ameaças acontecem sempre. Ouvi dizer agora que o governo quer chamar uma firma muito importante para cuidar do urbanismo. Não dá. A cidade vai acabar entregue a uma firma
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O Eixo (Eixão) tem a importância que a capital deve ter. Aí apareceu alguém querendo fazer no meio um caminho com duas muretas de cada lado. É necessário escrever uma carta a cada semana.

;A cidade vai acabar entregue a uma firma;

Mesmo sem visitar Brasília com freqüência, o arquiteto Oscar Niemeyer está atento às mudanças da cidade. E luta contra muitas das tentativas de modificar o projeto original. Conta que escreve dezenas de cartas por ano para evitar o que chama de ;esculhambação;. A última foi para impedir a construção de uma mureta de concreto ao longo do Eixão. ;Quando querem melhorar, aí é pior. Tem uma besteira de querer mudar tudo. (O Eixão) é um espaço único e aí você divide em dois? Essas ameaças acontecem sempre. Ouvi dizer agora que o governo quer chamar uma firma muito importante para cuidar do urbanismo. Não dá. A cidade vai acabar entregue a uma firma.; (O arquiteto refere-se aos contratos do Governo do Distrito Federal com o escritório de Jaime Lerner).
Ao mesmo tempo em que se preocupa com a invenção de Lucio Costa, Niemeyer cuida das suas obras. Comenta como foi difícil desenhar a cúpula do Museu Nacional. Revela que ela media inicialmente 40m, medida utilizada nos vãos do tempo da Renascença. E que decidiu dobrar o diâmetro para 80m. ;Foi uma cúpula difícil de desenhar e construir, porque a cúpula geralmente é sozinha, mas a do museu tem rampa, sobreloja, é uma cúpula pesada. Mas acho difícil encontrar outra assim. Tem que ter coragem de utilizar o concreto e ajudar o concreto a evoluir, o sujeito é obrigado a estudar o sistema, influir na técnica;, explica. Abaixo, trechos da conversa com Niemeyer.


Brasília

Brasília é uma cidade e cidade é sujeita a tantos contratempos. O urbanismo, às vezes, não é bem atendido, as áreas abertas são construídas, é muito difícil. Mas Brasília foi um momento de otimismo, a gente mostrou que também poderia fazer uma coisa correndo. Como é que poderia fazer para funcionar bem o Congresso? Naquele tempo, tinha 100 deputados e senadores. Hoje tem 500! Por mais cálculo que o Israel Pinheiro fizesse, se fosse para 300 era pouco. No Palácio do Planalto, por exemplo, trabalhamos com a previção de 150 pessoas, hoje tem 300. Aí começa a faltar espaço, a fazer anexo, aí esculhamba tudo. É difícil, mas bem, a cidade está funcionando, tem problema de circulação. Tem tido gente com vontade de fazer as coisas, mas de vez em quando aparece um que esculhamba. O sujeito quer melhorar e esculhamba. No projeto do Lucio tem o Eixo Rodoviário (Eixão) que tem a importância que a capital deve ter, é bonito, tem o jardim. Aí apareceu alguém querendo fazer no meio um caminho com duas muretas de cada lado, no meio daquilo que é uma parte, uma zona toda aberta sem divisões querendo dividir em duas. Escrevi uma carta esculhambando e eles pararam de fazer. É necessário escrever uma carta a cada semana porque é tanta besteira que aparece.


Arquitetura

O arquiteto tem a favor dele uma época de mais riquezas, possibilidades. O concreto permite tudo. Baseado no concreto, ele pode fazer uma arquitetura diferente. Arquitetura como obra de arte tem que primeiro emocionar e criar surpresas. Assim, pude fazer minha arquitetura. Arquitetura não é uma caixa da habitar, arquitetura pode ser bonita. O concreto permite tudo, vãos enormes. Essa cúpula que tem em Brasília tem 100m de comprimento cobrindo uma área enorme. Com o concreto você pode inventar o que quiser, não precisa cair numa arquitetura mais tímida. E cada um usa como pode. Na Renascença o sujeito ia fazer uma cúpula e ela não passava de 40m porque os meios técnicos não permitiam mais. Tem que especular nisso, fazer uma arquitetura mais imponente, mais leve. Não critico colega, faço o que gosto. O importante é não fazer o que os outros querem, é fazer o que ele, o arquiteto quer.

Livros

Leio pelo gosto da linguagem. Do (Jean-Paul) Sartre, gostava de ler os romances. Depois estive com ele em Paris, era muito simpático. Ele é muito inteligente. Gosto dos livros em que ele discute as teorias dele, a juventude, a parte política. Os livros dele não eram fantásticos, mas eram bem escritos. Tem que ler com atenção. Mas o (André) Malraux foi o sujeito mais inteligente que conheci. Uma expressão do ser humano informado, inteligente, atencioso. Quando cheguei a Paris, a revolução não tinha começado, mas os militares já tinham invadido o escritório e ele (Malraux) já estava informado. De modo que cheguei lá e ele baixou logo um decreto para eu ficar na França como arquiteto francês . Eu já conhecia A condição humana. O sujeito me impressionou, era um sujeito moderno, elegante, fino, uma figura fantástica. Malraux foi uma figura que gostei mais do que do Sartre, parecia um sujeito mais fino na maneira de ver a vida, de atuar, de compreender, sem muita regra.

Progresso

Me surpreende (o progresso) não ser mais voltado para miséria, a pobreza, para arranjar meios para a gente viver melhor, não oprimir os mais pobres. O sujeito que mora na praia olhar a favela como área inimiga. O progresso devia servir para esse lado. Inventar coisas em que as pessoas pudessem ter comida, lugar melhor para morar, ter escola. É até um desaforo o progresso crescer assim esquecendo esse lado, que é o principal.

Concreto armado


A gente tem uma noção do concreto armado, dos limites que ele tem, da importância das ligações, de modo que tudo é possível. Então a gente especula no concreto armado. Se pego um projeto e tiro duas colunas, a posição fica mais complicada, mas o concreto armado resolve, o vão fica maior, os salões ficam maiores e a arquitetura fica mais generosa. Um projeto cheio de coluninhas é uma merda, não dá para fazer nada, é uma posição muito radical. A Bauhaus, que é a turma mais imbecil que apareceu, chamava a arquitetura de a casa habitat. (Não interessava) a forma desde que o quarto estivesse perto do banheiro, a cozinha perto da sala e funcionasse bem. Foi um período de burrice que conseguimos vencer. A escola que eles construíram nunca ninguém pensou nela, porque não tem interesse nenhum, ninguém nunca ouviu falar. E o chefe do negócio, o Walter Gropius, era um babaca completo. Ele foi na minha casa nas Canoas, subiu comigo e disse a maior besteira que já ouvi: ;Sua casa é muito bonita, mas não é multiplicável;. Pensei que filho da p;.! Para ser multiplicável teria que ser em terreno plano, teria que procurar um terreno igual e meu objetivo não era uma casa multiplicável, era uma casa boa para eu morar. Eles eram assim, sem brilho nenhum. O trabalho que ele deixou é um monte de casas que se repetem. Foi um momento que ameaçou a arquitetura, mas Le Corbusier e os outros reagiram. Foi um momento em que a burrice queria entrar na arquitetura, mas foi reprimida.

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