Cidades

Para muitas famílias, a data de ontem esteve distante da fantasia de Papai Noel

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postado em 26/12/2008 08:16
Na Vila Estrutural, uma das mais novas cidades do DF, Papai Noel, carregando saco de presentes, não chegou à casa da piauiense Sandra Alves, de 25 anos. Não teve árvore de Natal nem enfeites. Não teve ceia à meia-noite. A filha, Stefhane, 3, não ganhou presente. Logo nas primeiras horas da manhã de ontem, a mãe abriu o comércio informal. E se pôs a vender frango caipira, na rua mais movimentada e ilustre do lugar. O nome da avenida? Luiz Estevão. Morar ali, logo agora que chegou asfalto, é sinônimo de prosperidade. Parecia domingo. Só parecia. Era quinta-feira, 25 de dezembro, dia de Natal. ;Vixe, vendi hoje mais do que se fosse domingo;, ela comemora. Até as 13h, 15 aves tinham virado almoço do feriado. E o Natal? Sandra dá de ombros. É como se falasse de uma coisa muito distante dela e da realidade onde vive: ;Pra nós, é um dia como outro qualquer. A vida é mais real. Nossa luta é muito grande;. E a vida anda com as próprias pernas na Vila Estrutural. O único supermercado do lugar abriu as portas normalmente. A lojinha de R$ 1,99 lotou. O pastor, de terno e gravata, esperava os fiéis na entrada da igreja. Num dos barracos, o churrasco alegrava a família. E um rapaz, de bermuda e chinela de dedo, cruzava os becos da Estrutural tomando vinho na boca do garrafão. Estes são apenas alguns dos flagrantes de várias cenas presenciadas pelo Correio durante a manhã e a tarde de ontem. Depois de rodar 110km à procura de personagens, histórias e situações inusitadas, a conclusão: Natal tem o tamanho, a dimensão e o sentido que as pessoas queiram - ou possam - dar a ele. E a vida, em preto e branco, torna-se mais real. Mais viva. Mais consistente. Longe da Avenida Luiz Estevão, no centro de Taguatinga, é essa vida que se assume sem nenhuma metáfora. Ali não há romantismo. Todas as ilusões e os sonhos foram aniquilados. Nem mesmo Papai Noel puxando o seu trenó passou por ali. Nas imediações dos hoteizinhos ordinários que circundam a Praça do Relógio, as prostitutas esperavam, em plena luz da manhã de ontem, por seus clientes. Moças jovens, de meia-idade, todas estavam lá. Uma mulher com cabelos tingidos de amarelo-sol, minisssaia jeans e blusa de malha com decote generoso se apresenta como Patrícia. Diz ter 30 anos. Na manhã de ontem, circulava pelo quarteirão. Olhava as pessoas que passavam. Insinuava-se para alguns. Flertava com outros. E ouvia gracejos de tantos. ;Natal? É mais um dia de batalha pra gente. Ontem, tava aqui. Hoje, de novo. Não posso parar. Tenho três filhos e preciso sustentar eles;, ela justifica a vida nada fácil. ;Se eu sou feliz? Depois de tanto sofrimento, eu nem sei mais o que é felicidade.; E ela mesma prossegue, diante do silêncio que se formou naquela hora: ;Chega um momento na vida da gente que até a ilusão vai embora. Acaba tudo. Resta isso aqui que você tá vendo;. Nada de ceia No centro de Ceilândia, aposentados jogam animadamente dominó. Parece domingão. Perto dali, duas crianças brincam numa pracinha. Os primos Eric, 6, e Danilo, 8, contam histórias de Papai Noel. Para o mais novo, ele, o tal velhinho, é ;um filme;. Que filme? ;Que eu vi um dia na televisão;. O mais velho discorda: ;Não, ele (Papai Noel) é um homem muito bom, sempre ajuda as crianças;. Este ano, mais uma vez, ele não trouxe o que pedira. ;Mandei uma cartinha (refere-se aao Papai Noel dos Correios) e pedi uma bicicleta. Ele me deu um carrinho. Tá bom desse jeito...;, conforma-se Danilo. Bem longe de Ceilândia, na Rodoviária do Plano Piloto, a maior e melhor tradução de Brasília, havia certa calmaria. O formigueiro humano de todos os dias deu lugar a uma certa tranqüilidade. Num dos semáforos da região, a vendedora de balas Luciana Pereira Crisóstomo, de 31 anos, tentava vender seus produtos. Na casa dela, no Recanto das Emas, onde mora com a mãe e a ajuda em todas as despesas, não teve ceia. Tampouco troca de presentes. Nem o almoço especial do dia 25. ;A gente comeu bife, arroz e feijão;, conta a moça de sorriso bonito. Luciana tem uma definição muito clara do que é Natal: ;Eu só entendo essa data como o tempo em que as pessoas compram presentes sem parar. Só pensam nisso. Algumas, quando param o carro aqui no semáforo, me desejam feliz Natal, mas sei que quase artificial. Algumas nem me olham, quando dizem isso;. Mas a moça ainda encontra sentido para se alegrar. Não com o Natal, mas com a realidade que conhece: ;Tem gente, nessa hora, que tá morrendo em algum hospital. Eu, apesar de tudo, ainda tô aqui, trabalhando para ajudar minha mãe e tentar suprir um pouco as nossas necessidades;. O semáforo fecha. E lá se vai Luciana tentar ganhar a vida no dia de Natal. Luta e trabalho Avó e neta também trabalharam na noite de Natal
Um pouco mais à frente da Rodoviária, no gramado da Esplanada, ao lado dos presépios, avó e neta armaram uma barraquinha para vender água, refrigerante e cachorro-quente. De ônibus, carregando tudo aquilo, deixaram Taguatinga bem cedo. Não tiveram ceia. Muito menos almoço bacana. A mineira Célia Maria Mendes, 56, comenta: ;Natal só vai ser igual pra todo mundo quando todo mundo tiver as mesmas oportunidades;. Serjane, 15, a neta, ainda exulta: ;Depois, eu vou à Catedral, só agradecer ter vindo de Minas pra morar com minha avó;. E assim, o dia de Natal foi chegando ao fim. NaW3 Norte, um vazio sem fim. Silêncio profundo. Nem parecia Brasília. Até os pontos de ônibus estavam desertos. No Parque da Cidade, uma ou outra pessoa andando solitariamente. No Memorial JK, uma família de Campo Grande, com nove pessoas, tirava fotos ao lado da escultura de Sarah e Juscelino. O almoço deles do dia 25 foi na Rodoferroviária, único local que encontraram aberto. Brindaram ; não o Natal, mas o fato de estarem juntos e virem para o ingresso de um dos filhos na carreira militar. ;Isso é o que importa;, reflete o pai, Alberto de Arruda, 48. Família de Campo Grande, com nove pessoas, tirava fotos no Memorial JK Depois dos 110km percorridos atrás de ;contos; de faz-de-conta de Papai Noel, uma única certeza: 25 de dezembro é uma data bem particular. E suas histórias são feitas com as experiências individuais. E elas são intransferíveis. Nessas andanças, houve gente, acreditem, que nem se lembrou que ontem foi Natal.

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