postado em 07/01/2009 08:30
É viver como se cada dia fosse um milagre. É assim que a mãe e o pai de Kelvi resolveram encarar a vida. E ele, o menininho que luta contra um rara doença, ainda sorri. Faz cambalhota no sofá. Ainda tenta, mesmo com as pernas bambas, subir no pé de jabuticaba. E chama o ;cavalinho; ; o primo Markon, de 14 anos, que o pega pelas costas e o faz se sentir cavalgando ; para brincar. Sem saber, o menininho tem desafiado a vida como gente grande. Perde lentamente os movimentos das pernas. Não consegue mais andar como antes. Cansa-se. Pede para ser carregado. A visão está mais comprometida. Tem enxergado cada vez menos. E a voz começa a ficar enrolada. Mas ainda assim ele sorri do carrinho que faz barulho e até canta. Sim, Kelvi tem um carrinho que canta e acende a luz. Ele se diverte com o brinquedo que ganhou do Papai Noel.
Kelvi é irmão de Ítalo. Os dois comoveram Brasília no ano passado, depois que o Correio contou, com exclusividade, o drama dos meninos de Santo Antônio do Descoberto, cidade goiana a 50km de Brasília. Ítalo morreu em setembro do ano passado. Ele tinha adrenoleucodistrofia (ADL) ; doença rara que provoca mutações genéticas. As mutações, rápidas e progressivas, destroem completamente o sistema neurológico. Assim, o paciente caminha para um estado vegetativo e depois à morte.
De tão rara, existem hoje apenas 10 casos de ADL em todo o país, segundo registros de hospitais públicos. É uma doença que dá apenas em homens. Kelvi luta para continuar vivo. Ítalo começou a tomar as primeiras doses do Óleo de Lorenzo, medicamento que não cura, mas ajuda a retardar os sintomas mais severos da doença. Mas, no caso dele, as manifestações clínicas da ADL já haviam se apresentado muito severamente. Ele já não andava, falava e nem enxergava. Kelvi começou a usar o mesmo remédio, também na mesma época. Nele, os sintomas não tinham se apresentado com mais gravidade. Apenas começava a arrastar a perna direita.
História vira filme
Exames de ressonância apontam que a lesão no cérebro de Kelvi é até mais extensa do que a que Ítalo tinha. ;Mas com o óleo, os sintomas dele estão vindo mais devagar. Ele nunca teve convulsão, por exemplo. O Ítalo teve várias;, explica a mãe, a dona-de-casa Denise Araújo Cardoso, de 27 anos. E se culpa pelo filho mais velho ter morrido tão cedo, aos 8 anos: ;Se ele tivesse tomado o óleo mais cedo, talvez ainda estivesse vivo;. O pai, Edilson Urany, 28, a consola: ;A gente fez tudo o que tava ao nosso alcance;.
O Óleo de Lorenzo foi revelado no filme de mesmo nome. Conta a história real de Lorenzo Odone, que, aos 6 anos, começou a apresentar os sintomas da ADL. Os médicos lhes deram alguns meses de vida. Os pais não se conformaram com os terríveis prognósticos e começaram a estudar sobre a doença. Lutaram contra o preconceito e a desinformação dos homens de jaleco branco em relação à doença do filho. Descobriram, depois de muita pesquisa, um tratamento à base de azeite de oliva e canola, que ficou conhecido em todo o mundo como o Óleo de Lorenzo. O medicamento não representa a cura da doença, mas pode, segundo pesquisas científicas, retardar os sintomas da adrenoleucodistrofia.
Lorenzo começou a tomar o medicamento. Morreu em maio do ano passado, na Virgínia (EUA), em consequência de uma pneumonia. O pai dele, Augusto Odone, acredita que a morte do filho não teve relação com a ADL. Óleo de Lorenzo, o filme, foi estrelado por Susan Sarandon, Nick Nolte e Peter Ustinov. Virou um dos grandes sucessos do cinema em 1992. Teve duas indicações para o Oscar ; de melhor atriz e roteiro original.
Em Santo Antônio do Descoberto, longe do Plano Piloto, numa casa modesta de dois quartos e piso de cerâmica, a vida de Kelvi não virou filme. Sua história, contada no jornal, comoveu uma multidão ; de Brasília e fora daqui. A ajuda veio de todos os lados. E as doações para a compra do Óleo de Lorenzo chegaram. Um frasco, com 500ml, custa R$ 591. Dá apenas para 15 dias. Para o pai de kelvi, um balconista de farmácia, a aquisição do medicamento seria impossível.
Solidariedade
Mas, como milagre, a ajuda foi impressionante. O telefone da família não parou de tocar. Até hoje, as pessoas ligam para saber como está o menino. Edilson encomendou em São Paulo os primeiros frascos do remédio. A defensoria pública entrou na história, obrigando a Secretaria de Saúde do DF a doar a medicação. O governo não retrucou. Já internado no Hospital Regional da Asa Sul (Hras), Ítalo começou a tomar as primeiras doses, mas os sintomas da doença já o tinham debilitado bastante. Em 13 de setembro passado, ele não resistiu.
Denise chorou desesperadamente. Ainda chora. Todas as vezes que sente saudade vai ao cemitério. Conversa ali com o filho morto. Edilson sofre em silêncio. Precisa ser forte para amparar a mulher e o filho. Mas, ainda em lágrimas, Denise resolveu concentrar todas suas forças em Kelvi. Decidiu que ele viveria. No primeiro dia de 2009, o menininho completou 6 anos. Fugiu da dieta prescrita e pediu bolo de chocolate. Esbaldou-se. Cantaram-lhe parabéns com gosto de vida. Vai estudar numa escola especial, em Samambaia. ;Ele precisa ser estimulado, mesmo que não acompanhe tudo, mas só ir já será uma vitória pra ele;, comemora a mãe.
Ultimamente, Kelvi tem perguntado muito pelo irmão, com quem empinava pipa e jogava futebol. A mãe lhe responde como pode. Diz que ele ;está morando com papai do céu;. Sem enxergar bem, ele olha pra cima. Os olhinhos se perdem no vazio. Ele quer ver se encontra o irmão naquela casa lá no alto. Na estante da sala, ao lado da televisão, uma foto de Ítalo, na formatura da jardim. Está todo de beca e com cara de menino levado. Comovida, a mãe faz um desabafo, olhando para o retrato: ;Na hora de dormir, é o pior momento. É quando vejo que tá faltando um;.
Duas vezes por dia, no almoço e no jantar, Kelvi toma um dose do Óleo de Lorenzo. Nem reclama mais. Denise insiste: ;Se o Ítalo tivesse tomado o remédio quando os sintomas começaram, poderia estar com a gente;. Kelvi brinca com o pai. Beija-o. Dá cambalhota novamente no sofá. E pede bolacha. Depois, água. Bebe com sofreguidão. Com os priminhos sempre atentos ; que cuidam dele com se fossem grandes ; se embrenha entre os galhos da pequena jabuticabeira, no quintal da casa.
Denise gosta de ver o filho assim. Permite-se sorrir. E se resigna: ;A gente não sabe o futuro, o que pode acontecer. Mas vamos continuar lutando, com esperança, acreditando que alguma coisa boa vai acontecer;. Denise passou a viver o imponderável. A lidar com a vida e morte, lado a lado. Assim, aprendeu a viver como se em cada dia nascesse um milagre, daqueles inacreditáveis. E não importa o tamanho dele. Ver o filho tentar subir no pé de jabuticaba é um deles. Ítalo e Kelvi, tão miudinhos, ensinaram àquele pai e àquela mãe o comovente segredo de acreditar.