Cidades

Crianças da Estrutural passam férias no lixão

Meninos e meninas trocam o lazer de verão por trabalho insalubre no aterro

postado em 15/01/2009 08:44
Tirar férias, para algumas dezenas de crianças e adolescentes da Estrutural, traz um conceito diferente. Não é época de dormir até mais tarde ou passar horas brincando sem preocupação. Longe das salas de aula, os livros dão lugar a papéis recolhidos em montanhas de lixo. O cachorro-quente da merenda escolar é substituído por biscoito e carne vencidos descartados pelos supermercados. Que o diga Carolina*, de 11 anos. Na manhã da última terça-feira, a menina trabalhava recolhendo garrafas pet no aterro responsável por receber 60% do lixo de todo o Distrito Federal. Sem luvas e com uma calça curta que deixava parte da perna exposta às moscas e à sujeira, ela disputava espaço com adultos entre sacos de lixo repletos de resíduos domésticos. Por causa da ausência de proteção, Carolina exibia uma crosta escura por baixo das unhas e marcas difíceis de identificar coladas a seu tornozelo. Nada disso parecia incomodar a menina, já habituada à labuta insalubre. ;O pior é o tanto de moscas. É mosquito demais;, comentou a garota. As moscas estão mesmo em todos os lugares e pessoas. Quando o caminhão chega com carga nova, a presença delas aumenta ainda mais por causa da água suja que cai do veículo enquanto os sacos de lixo são despejados. O chorume tem odor tão forte que um dos presentes resume: ;O cheiro tem até sabor;. É um gosto azedo e que se fixa longamente no paladar de quem passa por ali. No meio desse cenário, Carolina passa as férias. Ela e três primos de 13, 15 e 17 anos. Junto com a mãe dela e o casal de tios, eles se organizam em setores. Parte resgata garrafas nas montanhas de lixo enquanto outros separam as pets em sacos que serão vendidos por R$ 40 ou R$ 45, dependendo da negociação. ;Estou aqui para ter dinheiro para comprar material escolar. Se não for assim não tenho como ir à escola;, resume Vinícius*, de 13 anos. A cada semana de trabalho, ele chega a tirar R$ 150. Brinquedos dos outros No aterro da Estrutural, não tem brincadeira. Sob chuva ou sol forte, as crianças carregam sacos de material para reciclagem observadas por urubus. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) coloca essa condição entre as piores formas de trabalho. No meio do lixo, o direito de ser criança não existe. E, para as irmãs Rita* e Paula*, de 7 e 15 anos, a violação das garantias legais se dá de forma cruel. As bonecas, sonho de consumo da infância, são encontradas no lixo e servem de ganha pão. Há um ano, os pais das meninas vão ao aterro em busca de brinquedos a serem reformados e vendidos. Cada boneca, depois de limpa e com o corpo de pano refeito, é vendida por R$ 6. ;Minha mãe traz a gente para não ficarmos sozinhas.; O nariz da menina escorre e os olhos estão constantemente vermelhos e com secreção. Efeito do ácido do chorume que polui o ar. No dia em que o Correio esteve na Estrutural, era difícil contar o número de meninos e meninas trabalhando. Onze foram abordados pela reportagem. ;Tem dia que o número chega a 30;, conta Jovacir Gonçalves, chefe dos agentes de portaria. ;Orientamos os pais a procurarem a equipe de assistentes sociais da empresa Valor, mas eles voltam;, comenta. A empresa que administra o aterro mantém um escritório com assistentes sociais que atuam na formação de cooperativas para reciclagem. Razões econômicas A causa do retorno é econômica, de acordo com o próprio GDF. Numa semana de trabalho, as crianças tiram o mesmo que em um mês de programa de transferência de renda. ;O máximo que o governo repassa é R$ 180. Eles tiram mais;, comenta Wagner Saltorato, coordenador do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) da Estrutural. Além da renda, assistentes sociais e educadores defendem a oferta de atividades extras para a meninada. Mas o convênio do governo com as 107 instituições socioeducativas que atuam no DF ainda não foi renovado este ano. De acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda, a previsão é de que os convênios sejam renovados em fevereiro. Para Wagner, do Creas, também colabora para a frequência de crianças e adolescentes no local a falta de fiscalização. ;A responsabilidade é da Delegacia Regional do Trabalho;, comenta, jogando a bola para o governo federal. ;Se crianças e adolescentes estão catando lixo obedecendo a ordens de seus pais, não há relação de emprego e, portanto, não é da competência da fiscalização do trabalho;, rebate o ministério, por meio de nota. PROMESSA POR CUMPRIR Em maio do ano passado, o governo local anunciou que, a partir daquele mês, apenas pessoas identificadas com credencial e coletes teriam acesso ao aterro da Estrutural. Cem funcionários do GDF passariam a organizar o acesso ao local, onde são depositados 53 mil toneladas de lixo mensalmente. A área de 164 hectares seria fiscalizada para impedir a entrada de pessoas não cadastradas, especialmente crianças. A proposta falava em coletes numerados e na cor laranja, para fácil identificação. Das medidas anunciadas, a única em andamento é a formação de cooperativas de catadores de papel para iniciar o processo de coleta seletiva. Triste forma de ajudar Apesar de o número de crianças no Lixão ser maior durante as férias, os dias de aula também são de trabalho no maior depósito de dejetos do Distrito Federal. Rafael*, de 14 anos, aparece quando não está na escola. ;Venho para cá à tarde, às vezes, e nos fins de semana;, conta. A família do menino é contemplada com R$ 130 por mês em programas de transferência de renda. E tira R$ 300 por semana na coleta. ;A gente recebe a bolsa. Vou à escola de manhã e passo na associação à tarde. Mas vira e mexe saio para vir para cá.; Júnior*, de 17 anos, abandonou a escola dois anos atrás. ;Não ia levar a nada mesmo e eu precisava ajudar a criar meus irmãos;, justifica. A mãe do adolescente deixou a cidade e os quatro filhos sob os cuidados da avó. A senhora de 62 anos, depois de mais de 15 anos de trabalho com o lixo, está doente e não consegue mais trabalhar. A solução óbvia para o rapaz foi assumir a família. ;Tiro sozinho mais de R$ 1.200 por mês. Não tem outro emprego para mim que dê isso;, analisa. A Secretaria de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda informa que, atualmente, dá assistência a 98 crianças e adolescentes da Estrutural que trabalhavam no aterro e a outras 200 que vivem em situações de vulnerabilidade. O que diz a lei A Constituição proíbe qualquer trabalho de pessoas com menos de 16 anos. A única exceção é para atividades na condição de aprendiz. Também há a proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos brasileiros abaixo dos 18 anos. O Estatuto da Criança e do Adolescente diz que a criança e o adolescente têm direito à proteção, à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas que permitam o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. Por fim, a Lei 10.097, de 19 de dezembro de 2000, estabelece que o trabalho do adolescente não poderá ser realizado em locais prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social. *Nomes trocados para proteger o direito das crianças e adolescentes

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