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Quase 50 anos depois, Brasília vai, aos poucos, mudando a destinação dos setores

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postado em 18/01/2009 08:20
SCS, SHN, SAS, SIG, SMU%u2026 Andar por Brasília é passear pelo alfabeto. Acostumado com tantas siglas, quem mora na capital sabe que a combinação de algumas letras forma os setores, aqueles locais que concentram vários estabelecimentos de uma mesma atividade. O SCS, por exemplo, é o Setor Comercial Sul, o centro comercial da cidade. O SHN, ou Setor Hoteleiro Norte, é o espaço que reúne boa parte dos hotéis próximos aos principais monumentos. E assim por diante: o SAS é o Setor de Autarquias Sul, destinado a prédios de negócios; no SIG ficam as indústrias gráficas e os quartéis estão no Setor Militar Urbano, ou SMU. Brasília nasceu assim, planejada por setores. Ao fazer o projeto do Plano Piloto, Lucio Costa organizou a capital de forma que moradia, diversão, comércio e trabalho ficassem dispostos sem se misturar. Prestes a completar 50 anos, no entanto, a cidade ganhou vida própria. Em meio aos clubes, surgiu um shopping. Na área de oficinas, obras de prédios residenciais em ritmo acelerado. No setor de rádio e TV, as empresas de comunicação são minoria. Muitos estabelecimentos começaram a funcionar ilegalmente e obtiveram alvarás precários. É o caso das empresas do SIG. Estudo da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (Seduma), realizado no fim do ano passado, constatou que 60% dos empreendimentos da região desrespeitam as normas de gabarito do setor. Pouco mais de 70 gráficas estão em funcionamento no SIG e a Seduma encontrou três igrejas evangélicas, duas sedes de transportadoras, três salões de festa, duas boates de strip-tease, uma academia de ginástica, além de escritórios, estacionamentos e quitinetes. Técnicos da Seduma elaboram um projeto de lei para permitir a mudança de uso dos terrenos. A ideia é legalizar as atividades existentes no local e impedir mais desvirtuamento. O trabalho deve terminar no mês que vem. ;O SIG nasceu sob uma demanda da década de 1960 pela criação de uma área que abrigasse as revistas, os jornais. É difícil que ele se mantenha de uma maneira tão artificial assim;, avalia o arquiteto e urbanista professor da Universidade de Brasília (UnB) Frederico Flósculo. Mas também há alterações permitidas por lei. Luxuosos condomínios residenciais e comerciais são erguidos no Setor de Múltiplas Atividades Sul (SMAS), no Setor de Garagens e Concessionárias de Veículos Sul (SGCV) e no Setor de Oficinas Sul (SOF Sul), nas margens da Estrada Parque Indústria e Abastecimento (Epia), atrás do ParkShopping. A destinação dos setores foi mudada pelo Plano Diretor Local (PDL) do Guará, elaborado em 2006. O próprio governo permitiu o uso residencial de nove lotes da região. Mudanças radicais Os exemplos estão em todos os lados. O Setor Hospitalar consegue, de maneira geral, manter a destinação de origem. No lado sul, ficou até pequeno e as clínicas e consultórios invadiram o setor de edifícios públicos, nas quadras 900. Alguns prédios abrigam um ou outro banco, loteria, papelaria. Mas nada que fuja do padrão. Na Asa Norte, o único prédio que parece fora do lugar é o da Justiça do Trabalho, que tem no endereço a sigla SHLN, cujo significado é Setor Hospitalar Local Norte. Nem só de clubes vive o Setor de Clubes Esportivos. Um dos principais shoppings da cidade está no trecho 2 do setor, no lado sul, entre uma academia e uma famosa churrascaria. Próximo a um restaurante, também no trecho 2, existem dois prédios residenciais entre piscinas e quadras esportivas. No lado norte, a fuga do que foi pensado para o setor é mais perceptível. Casas de festa e luxuosos complexos residenciais foram erguidos às margens do Lago Paranoá. O espaço destinado originalmente a empresas de rádio e televisão não vingou. Em um prédio do setor na Asa Sul, apenas uma das 230 salas é ocupada por um estúdio de rádio. O restante abriga, em sua maioria, escritórios de advocacia e consultórios médicos. O Setor Hoteleiro é outro que começa a abrir brecha para edificações comerciais. Um prédio de 15 andares está sendo construído às margens da ala norte do Eixo Monumental. Terá salas e lojas, mas nada de quartos para hóspedes. No lado sul, um complexo quase pronto tem seis prédios: três são hotéis e três, não. Para a administradora de Brasília, Ivelise Longhi, a flexibilidade é uma tendência natural que não fere o pensamento original da cidade. O Setor de Rádio e TV, por exemplo, não sobreviveria exclusivamente com atividades voltadas a rádio e televisão, na avaliação dela. ;Com o tempo, começou-se a perceber que não podia ser algo tão engessado e rígido. Não era bem esse o conceito que se pretendia com a setorização;, comenta. ;O próprio Lucio Costa sabia que algumas atividades acabariam sendo mescladas.; Ruas temáticas involuntárias A cultura da setorização se impregnou em Brasília. Quer comprar remédio? Vá à Rua das Farmácias, na 102/302 Sul. Alugar roupa para festas? Existe a Rua das Noivas, na 304/305 Norte. Luminárias ou ferragens? Não tem erro: procure a Rua das Elétricas, na 109/110 Sul. Mesmo sem constar no projeto original, as comerciais tomadas por lojas de um único segmento viraram moda. E, nesse caso, não foi planejado. Com o tempo, sem muito esforço, os comerciantes foram percebendo que a ideia de setorizar podia dar certo na capital federal. Quando o austríaco Fritz Klinger, hoje com 80 anos, inaugurou o restaurante que leva seu nome na 404 Sul, em 1979, havia apenas mais dois restaurantes. Os chefes de cozinha foram chegando e, de repente, estava batizada a Rua dos Restaurantes por ali. ;No auge, todos os taxistas do aeroporto indicavam para os passageiros nossa rua. Hoje, apesar da tradição, já existem locais até com mais restaurantes que aqui;, comentou Fritz. Atualmente, há cerca de 30 restaurantes na 404/405 Sul. O casal Alexandre Moura, 38 anos, e Flávia Goulart, 30, mudou-se de São Paulo para Brasília dois anos atrás. Não demorou para descobrir a Rua da Informática na comercial das quadras 207 e 208 Norte. Na última quinta, eles precisavam comprar um estabilizador e foram direto para lá. ;É mais fácil porque está tudo aqui;, disse ela, arquiteta. ;Pode facilitar o acesso, mas às vezes dificulta porque fica distante;, ponderou o marido, engenheiro agrônomo, ao contar que percorreram cerca de 20km para chegar ali. Inácia Gomes da Silva, 71 anos, dona de uma loja de roupas desde 1987, sente-se privilegiada por ter um ponto na Rua das Noivas. ;Virou tradição. As pessoas ligam e perguntam: ;Fica na Rua das Noivas?;;, contou. ;Aqui é bom. Se a cliente não gostar da minha roupa, pode sair e procurar do lado se tem melhor;, completou, garantindo que geralmente elas voltam depois de pesquisar. Quem sai do Hospital de Base do Distrito Federal com receita médica em mãos se depara com um universo de pelo menos 30 farmácias nas comerciais da 102 e 302 Sul, do outro lado da rua. ;Só não encontra medicamento aqui se o laboratório não fabricar mais;, disse Juarez Ribeiro, 68 anos, dono de uma loja de homeopatia. Ele chegou a Brasília vindo do Rio de Janeiro em 1975. Desde então, assiste ao fenômeno da Rua das Farmácias. ;Estão vendendo ponto para farmacêutico aqui por até R$ 180 mil;, contou. De consumidor assíduo da Rua das Elétricas, Humberto Ayres, 68 anos, virou dono de loja na comercial. ;Não tinha ponto melhor. Quando se pensa em material elétrico em Brasília é quase intuitivo pensar na Rua das Elétricas;, comentou ele, em tom de propaganda. Os exemplos não param aí. São muitos. E mostram que a setorização, não aquela estabelecida pelas siglas, mas a que surgiu naturalmente, é marca registrada de Brasília. (DA)

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