Cidades

Criança abandonada em Ceilândia ganha um novo lar

Pouco mais de oito meses depois de ser abandonado, o menino de perninhas grossas e cabelos lisos ganha um lar. Renato estava em um abrigo e foi adotado por um casal que mora em Taguatinga

postado em 21/01/2009 08:17
Uma vida sem história. Um menino sem passado. Um futuro incerto. E nada mais se podia dizer ou saber daquele menino. Sem saber de nada, ele corria pelo pátio da casa, se atrapalhando com suas perninhas grossas e curtas. Os cabelos bem lisos voavam. Ele chegou àquele abrigo sem nenhuma referência. Em 2 de maio de 2008, policiais da 19ª Delegacia de Polícia (Ceilândia) receberam um chamando. Havia um menininho abandonado no Setor de Chácaras do P Norte. O menininho sem história chorava de fome e de sede. Sentia medo do escuro. Chorava pelo desamparo. Levaram-no àquela instituição, que acolhe meninos e meninas com histórias despedaçadas de vida. A Vara da Infância e da Juventude (VIJ) foi informada da sua chegada. Começaram as investigações sobre a origem daquela criança. Soube-se que naquela região rondava uma família de ciganos. Um dia, eles derrubaram o barraco e foram embora. No tal barraco derrubado, apenas uma pista. Uma foto em que um homem aparece carregando duas crianças. Uma delas era o menino sem história. Fotos foram divulgadas no site do SOS Criança. Até em contas de luz. Nada. Ninguém reclamou sua ausência. Ou foi à delegacia dizer que o filho havia desaparecido. E ele, o baixinho de pernas grossas e sorriso encantador, continuava sem história. E nenhum passado, nenhuma referência. Em outubro, o Correio contou o drama do menino com exclusividade. A história comoveu Brasília. Assim que chegou à Casa da Criança Batuíra, em Ceilândia Norte, deram-lhe um nome. Todo mundo precisa de um nome. Passaram a chamá-lo de Renato. E ele começou a se sentir Renato. Gostou da sonoridade. E passou a rir. Quando alguém lhe perguntava o nome, ele sapecava, sem hesitar, com a voz miudinha: ;Renato;. O menino sem passado e sem história ganhou um nome. Era tudo que tinha. E uma ;data de nascimento;. A direção do abrigo anotou em sua ficha: ;Dois de maio de 2008;. Foi o dia em que chegou ali ; sedento, faminto, com os cabelos compridos desgrenhados, sem roupa, sem calçado e com um corte no pé esquerdo. Idade? Exames ósseos feitos posteriormente revelaram que ele tinha entre 1 ano e seis meses e 2 anos. Logo conquistou todo mundo do abrigo. Danou-se a falar. E a contar historinhas que só ele entendia. Tornou-se amigo das outras crianças. E virou o xodó dos funcionários. Comoveu sua mãe social, a mulher que cuidava dele todos os dias. Beijava-a. E passou a chamá-la de mãe. Renato virou pop. Não havia quem visitasse a instituição que não o percebesse. E um dia, ele amanheceu todo cheio de pintinhas vermelhas espalhadas pelo corpo. O miudinho teve catapora. Nem assim desanimou. Continuou brincando, comendo e aprontando da mesma forma. Nada deixa Renato triste, a não ser quando quer fazer alguma coisa e é contrariado. Aí, o baixinho se agiganta. DNA de alma E o tempo passou. Renato, ainda sem passado e uma história, continuava no abrigo. E poderia ficar ali por muito tempo. Ou todo o tempo, caso nenhuma família demonstrasse interesse em levá-lo para casa. Na VIJ, esgotadas todas as possibilidades de encontrar a família biológica, o juiz determina o processo de adoção do menino. À época, pelo menos 500 pessoas aguardavam na fila a possibilidade de adotar uma criança. Uma delas era um casal que morava pertinho da instituição. A professora Elisete Novais de Almeida dos Santos, de 42 anos, e o técnico judiciário Edvaldo Vieira dos Santos, 40, esperavam havia três anos por uma chance de ter um filho. Ou uma filha. Um dia, fim de novembro, receberam uma ligação da Vara da Infância. Contaram-lhes que havia uma criança pronta pra ser adotada. Elisete e Edvaldo, que moram em Taguatinga Norte, mal dormiram. No dia seguinte, foram até o abrigo. De longe, Elisete viu aquela criança. ;Ele estava sentado no colo da mãe social, chupando pirulito;, ela conta. Edvaldo não teve dúvida: ;Quando eu vi aquele menino, falei pra mim mesmo: ;Ele é meu filho;. Nunca vou esquecer aquele dia;. Renato olhou para os dois e riu. Elisete quase morreu de felicidade. ;A vontade foi de levar ele, naquela mesma hora;, ela conta. Uma funcionária da instituição disse ontem ao Correio: ;Eles são ligados pelo DNA de alma;. Começou, então, o período de convivência, autorizado pela Justiça . Durante um mês, o casal passou a ir todos os dias ao abrigo. ;Eles explicam que é pra desenvolver os laços de afetividade;, ela diz. Quando Elisete voltava pra casa, era com uma sensação enorme de vazio: ;Tinha medo de perder ele. Ficava querendo saber se tinha dormido, se comeu, tava com frio, essas coisas de mãe;. Chegou a hora de Renato passar o primeiro dia na casa do casal. Sem que ninguém ensinasse, ele começou a chamar Elisete de mãe e Edvaldo, de pai. ;Quase morri quando tivemos que levá-lo de volta ao abrigo. Queria que aquelas horas não terminassem nunca;, revela a mãe. E, finalmente, a autorização para passar o Natal e o ano-novo com a futura família. Renato ganhou presentes, o aconchego da avó, tios e primos, de todas as idades. Sentiu-se um deles, parecia ter nascido ali. E passou a dizer: ;Minha casa, meu quarto;. Há um mês, Renato está na nova casa. Há um quarto verde só pra ele, com seus brinquedos e sua cama branca. Tornou-se filho único. Os pais deram entrada, na Defensoria Pública, à certidão de nascimento, o que caracteriza a guarda definitiva. Eles mantiveram o nome que o filho ganhou no abrigo. E 2 de maio, dia em que foi abandonado, como a data de nascimento. Ou do renascimento. Três meses depois da primeira reportagem, o Correio conta o desfecho dela, também com exclusividade. Várias gestações Desde 2005, Elisete espera a chegada de Renato. É o tempo em que se inscreveu na Vara da Infância. Mas o desejo de ser mãe a acompanha desde que se casou com Edvaldo, 18 anos atrás. Vieram sucessivos abortos espontâneos. Um, aos dois meses de gravidez de gêmeos. Outro, aos cinco meses. E o último, no sétimo mês. Por fim, uma gravidez tubária (fora do útero) lhe tirou a esperança da maternidade. Em cada perda, a frustração. Dor, lágrimas e o desalento. Um dia, há 14 anos, ela soube que no Hospital Regional de Taguatinga (HRT) havia um bebê de 10 meses abandonado pela mãe, com graves problemas de saúde. A criança usava colostomia, procedimento cirúrgico em que se faz uma abertura no abdome para a drenagem de fezes do intestino grosso. Esperava a cirurgia para a formação do reto. Elisete e Edvaldo levaram, com autorização do hospital, o menino pra casa, até que a cirurgia fosse realizada. Edgar era o seu nome. Elisete amou aquele menino como se dela fosse. Lutou pela vida dele. Mas durou pouco. A criança não resistiu a uma grave infecção, depois da cirurgia. O casal chorou muito. A tristeza se instalou naquela casa. Para suportar a dor, ela resolveu estudar. Formou-se em pedagogia, fez pós-graduação e concurso para professora. Conseguiu, junto com o marido, tudo material que a vida pode lhes oferecer. ;Mas faltava alguma coisa. Nossa vida era monótona;, ela admite. Ele também: ;A gente sempre quis um filho;. A vontade de ser mãe reascendeu o desejo dela. O casal procurou os meios legais para adoção. Até que em novembro um telefonema lhes encheu de esperança. E mudaria para sempre suas vidas. No sábado, depois de soltar pipa com o filho, Edvaldo disse à mulher: ;Éramos um casal. Agora, somos uma família, como sempre sonhamos;. Semana passada, ao acordar, Renato sorriu e cochichou no ouvido de Elisete: ;Amo mamãe;. Agarrada ao filho, ela desabou no choro. Foi o melhor e mais prazeroso choro de sua vida. O menininho que não tinha história, agora, de verdade, começa a escrever uma. Com nome, sobrenome, endereço e fotografias. Muitas fotografias... Dormindo no seu quarto verde, usando sua mochila nova que levará para a escolinha, brincando com o Homem Aranha, lambuzado de manga, empinando a pipa do Batman, mergulhado na piscina de bolinhas coloridas, assistindo, ao lado dos pais, à primeira missa, dirigindo o carrão vermelho, na bagunça com os priminhos. E nos beijos sapecados no pai e na mãe. Essa, sim, é a sua história. A melhor que ele contará daqui por diante.

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