postado em 03/02/2009 07:50
Naquele 10 de março de 2004, apenas uma coisa lhe perturbava: não ter R$ 28 para pagar a conta de luz. E ela seria cortada. Ainda, assim, insone, atormentado ; dormira mal na madrugada pensando em como arrumar o dinheiro ; ele seguiu para o trabalho. Seriam 12 longas horas faxinando os banheiros do aeroporto. Havia 26 anos fazia o mesmo ofÃcio. Perto das 19h, quando encerrava a jornada, ele deu a última verificada nos banheiros. Precisava conferir se tudo estava em ordem. Num deles, encontrou a história que mudaria para sempre sua vida. Em uma das cabines, alguém esquecera uma bolsa de couro com US$ 10 mil ; à época cerca de R$ 30 mil.
O homem tomou um susto. Resolveu abrir a bolsa de couro. Encontrou passaportes e documentos. E uma quantia em dinheiro. O susto foi maior ainda. Nunca tinha visto tanto dinheiro. Muito menos naquela moeda estrangeira. Começa aqui o primeiro dia da radical mudança da vida de Francisco BasÃlio Cavalcante ; então com 55 anos, cearense de Sobral, terceira série, casado com sua Raimunda Nonata, cinco filhos, quatro netos, auxiliar de serviços gerais numa empresa terceirizada, salário bruto de R$ 370 à época e dono de uma bicicleta usada, presente dos filhos. E apenas um sonho: voltar ao Ceará e viver o fim da vida num sÃtio.
O faxineiro corou. Tremeu diante da inusitada descoberta. O que fazer? Nos banheiros não existem câmeras. Se pegasse o dinheiro, ninguém nunca saberia. Pagaria a conta de luz e ainda lhe sobraria muito. Em tempo: para juntar R$ 30 mil com o salário que ganhava como auxiliar de serviços gerais, Francisco levaria longos sete anos. O miudinho cearense suou. Respirou fundo, enxugou o suor do rosto e resolveu fazer o que mudaria de vez sua anônima história de vida.
Francisco correu para o seu chefe, que procurou o supervisor, que varreu o aeroporto e chamou pelo sistema de som o dono daquela bolsa. Pertencia a um distraÃdo turista suÃço que, em conexão em BrasÃlia (ia a Manaus), a esquecera no banheiro. Atordoado, o dono conferiu todo o dinheiro. Conferiu nota por nota, todas de US$ 100. E partiu. Deixou um ;muito obrigado; quase incompreensÃvel para o faxineiro, que à quela altura estava dentro de um ônibus de volta para casa, bem longe dali, no Céu Azul, cidade goiana a 40km do Plano Piloto.
Na viagem de volta para casa, o homem ia num desassossego de dar pena. Como pagar a conta de luz? Uma coisa, porém, o confortava. O carnê de R$ 79 do sofá, comprado em 15 prestações nas Casas Bahia, estava em dia. Francisco chegou ao Céu Azul. ;Ô, Fransquim, o que tu tem, homem? Tá com a cara tão preocupada...;, inquietou-se a mulher ao ver o marido tão desolado. ;Não é nada, Raimudinha. É que trabalhei muito hoje...;, respondeu. Nem lhe contou o que achara no aeroporto.
Encarregado
Em 12 de março daquele mesmo 2004, o Correio contou com exclusividade a história de Francisco e seu feito heróico. No primeiro encontro na casa humilde do Céu Azul, de chinela de dedo e camisa branca manchada de graxa (consertava o vazamento de um cano), ele se espantou com a reportagem batendo à sua porta. Pensou logo que fizera algo errado. E disse, ao ser indagado por que devolvera o dinheiro: ;Moço, o que não é da gente é pra ser devolvido;. E continuou: ;Dinheiro que não é nosso não pode ser do bem. Não traz felicidade;.
Daquele 12 de março em diante, a vida do faxineiro nunca mais foi a mesma. Toda a imprensa, local e nacional, se acotovelou em sua casa e no aeroporto. No paÃs do jeitinho, da roubalheira, da corrupção, dos desmandos, escândalos polÃticos e sobretudo da impunidade que reina em todas as esferas, um homem que acha dinheiro alheio e devolve vira notÃcia. Torna-se exceção, quando devia ser regra. É visto como herói, quando é apenas honesto. ;Vixe, meu filho, essa casa nunca teve tanta gente. Era saindo uma reportagem e entrando outra. A gente não podia nem comer nem cochilar direito;, lembra Raimundinha, sorriso bom, hoje com 58 anos.
É verdade. Francisco ficou famoso. A fama estava em jornais, revistas, televisão, rádio, na internet. Não houve, no paÃs inteiro, quem não tivesse sabido de sua história. Duas semanas depois que devolveu o dinheiro do turista suÃço distraÃdo, o faxineiro, de macacão vermelho, foi recebido pelo presidente Lula, no Palácio do Planalto. Mais repórteres à sua volta. Mais capas de jornais. Lula o elogiou. Disse que era de homens como ele de que o Brasil precisava. Começava a pipocar o escândalo dos Bingos e sua figura máxima, Waldomiro Diniz, assessor especial do então ministro da Casa Civil, José Dirceu. Lembram-se? O Planalto e o paÃs estremeceram.
Em 13 de abril, Francisco deixou a vassoura e o balde que carregou ao longo de 26 anos. Aposentou o macacãozinho vermelho. Vestiu, pela primeira vez, terno e gravata. Virou encarregado geral do setor. O salário quase triplicou. Pulou para R$ 1 mil. ;Mas nunca deixei de comer com meus colegas de trabalho. Não mudei nada, só a roupa;, diz. Em maio, viajou com sua Raimundinha para o Ceará. Foi de avião, pela primeira vez. Foi recebido no aeroporto de Fortaleza como autoridade. Em Sobral, o prefeito o recepcionou com batedores da polÃcia e carreata. O ex-agricultor voltara à terra natal como rei. Para completar, em 2005, virou garoto propaganda do governo federal. Estrelou um filme enaltecendo o orgulho de ser brasileiro. E ganhou da Câmara Legislativa o tÃtulo de Cidadão Honorário.
Tudo de novo
Quatro anos e 11 meses depois, o Correio voltou à casa de Francisco BasÃlio, no Céu Azul. Ainda é encarregado no aeroporto. O salário agora é perto de R$ 1,5 mil. A casa está reformada. Ganhou pintura e móveis novos. O telhado subiu. A cama e o guarda-roupa com que Raimundinha tanto sonhou chegaram. A mesa da sala e armário da cozinha também. Acabaram de chegar do Ceará (foram de avião novamente). Foram pagar promessa em Canindé, pela recuperação de uma cirurgia dele no instestino. Francisco e Raimunda vestiram-se de São Francisco de Assis. A famÃlia aumentou. Agora são seis netos. O casal completou 39 anos de união. ;A gente vive um pro outro;, derrete-se a impagável Raimunda. Ele a beija. Ele a chamega. ;Isso é amor pra 100 anos;, ela brinca.
No aeroporto, turistas ainda o reconhecem. Param para tirar fotos, perguntam, parabenizam-no. Dentro do ônibus, andando nas ruas simples de Céu Azul. Valeu a pena ter devolvido os US$ 10 mil? Abraçado à mulher, deitado na redinha que comprou no Ceará, o miudindo que completou 60 anos não hesita: ;Foi a melhor coisa que fiz em toda a minha vida. E eu nunca pensei que tudo isso fosse acontecer. Fiz o que mandou minha consciência. Se achasse de novo, devolveria novamente;. O sonho de voltar de vez ao Ceará está mais forte. ;Daqui uns três anos me aposento. Vendo minha casinha aqui e compro um sÃtio lá. Quero plantar, colher, mexer com a terra. Acho que já andei demais...; A honestidade, que deveria ser obrigação, virou virtude. E foi esse pequeno gesto que mudou pra sempre a vida do homem humilde que só queira, naquele 10 de março de 2004, pagar a conta de luz. E virou sÃmbolo de honestidade num paÃs tão carente de bons exemplos.
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