Cidades

Leitor do Correio flagra pedintes que vestem farrapos para sensibilizar motoristas

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postado em 04/02/2009 09:48
Roupas sujas e rasgadas, andar arrastado, um olhar cabisbaixo, choroso, de apertar o coração. Vizinhos no Jardim Ingá (GO), a 65km do centro de Brasília, Raimundo Nonato da Silva, 42 anos, e Francisco da Silva, 43, trabalham juntos nas ruas da capital. Especialmente no semáforo em frente ao Setor Bancário Norte, mas também perto da Rodoviária do Plano Piloto ou na Avenida W3. A jornada varia, mas no fim do dia, cada um volta para casa com cerca de R$ 30 em esmolas. Dá uns R$ 600 por mês. Raimundo e Francisco são mendigos profissionais. Disciplinados, os dois incorporam o papel diariamente. No fim do expediente, a dupla lava os pés e o rosto, troca de roupa, esconde as calças e as camisas sujas numa mochila e envolve em sacos escuros as placas que seguram enquanto pedem dinheiro. Nelas está escrito, com letras tortas, que os dois estão desempregados. Na de Francisco há, ainda, o aviso de que ele é ;doente do coração e do pulmão;, pois foi diagnosticado com doença de Chagas. A mendicância virou profissão há, pelo menos, dois anos. Ambos são casados e têm dois filhos. E é o sustento das famílias que, justificam, os leva a pedir dinheiro das pessoas que param no sinal. Com uma renda mensal superior ao novo salário mínimo, de R$ 465, a atividade pode, de certa forma, ser considerada bem-sucedida. Para o servidor público Adauto Oliveira, 51 anos, que trabalha perto do ponto preferido da dupla, no Setor Bancário Norte, a descoberta de que Raimundo e Francisco se vestem de mendigos incomodou. Adauto passa pelos dois quatro vezes por dia e, numa delas, no início de dezembro do ano passado, se espantou ao flagrá-los trocando de roupa embaixo de uma árvore e guardando as placas. Ficou indignado. Movido pelo desejo de que as pessoas repensem a esmola, resolveu registrar, da sala onde trabalha, a transformação dos mendigos. Foram cerca de 45 dias com a máquina fotográfica a postos. O flagrante veio na última sexta-feira. ;Enquanto as pessoas derem esmola, eles vão continuar fazendo isso;, disse Oliveira, que entregou as fotos ao Correio. ;Eles se revestem até psicologicamente de mendigos para enganar as pessoas. E enganam;, sustenta. A sequência de fotos mostra a dupla entre os carros, andando com as placas penduradas no pescoço. Raimundo aparece uma calça de moletom, camisa de manga comprida, boné e sandália de dedo. Francisco veste uma bermuda rasgada, camisa e, novamente, boné e chinelos. Três horas depois, os dois vão até a uma árvore próxima ao semáforo, lavam os pés e o rosto com a água guardada em garrafas pet e trocam de roupa. Raimundo tira o boné, põe uma calça jeans e uma camisa regata limpa. Francisco veste uma calça sobre a bermuda rasgada. A reportagem do Correio os encontrou ontem no semáforo do Setor Bancário Norte. ;Se a gente vier de roupa jeans, óculos escuros, todo sapatado, ninguém vai dar nada, ninguém vai ajudar. Vão dizer assim: ;Esse cara tá é mentindo;;, explicou Raimundo. E ;vestir-se de mendigo;, não é enganar? ;Estamos enganando sobre a roupa, mas sobre a verdade de que somos pobres, não. Deus sabe da nossa situação;, disse Raimundo, preocupado em esconder o relógio e a corrente no punho esquerdo. Ontem, ele usava uma blusa rasgada. ;Eu ficaria com vergonha de pedir dinheiro bem vestido. Mas também tenho vergonha de pegar ônibus desse jeito;, completou, referindo-se aos andrajos. Os dois trabalharam durante anos, quase sempre como caseiros de chácaras. ;Não aguento mais;, afirmou Raimundo. ;Aqui é mais leve, é só ficar andando.; Os dois alegam que, por não terem estudo e devido à ;idade avançada;, já não conseguem mais nenhum bico. Restaram, então, as ruas. Não porque querem, segundo eles. Mas porque não há outra saída. ;É errado fazer isso? Roubar eu não vou. Acho que sou inocente;, destacou Raimundo, antes de dizer que, para viver da mendicância, tem de se apresentar ;do jeito que as pessoas se acostumaram a ver; os mendigos. ;Tem que trocar de roupa, né? Para não ficar muito sujo. E nós não vamos vir de ônibus desse jeito, né?;, disse Francisco. Os dois juram que, se conseguissem um emprego, largariam a vida de pedintes. Cultura do jeitinho Tirar pedintes das ruas é desafio de governos há anos. Em todo o mundo é assim. O sociólogo Pedro Demo, da Universidade de Brasília (UnB), acredita que sempre haverá quem dê esmola, por mais que sejam feitas campanhas contra isso. ;Muita gente dá e não fica se perguntando se aquela pessoa precisa mesmo ou não. Dá e acabou;, comentou ele. É por isso, lembrou o professor, que a mendicância virou uma indústria. Em relação aos dois pedintes no Setor Bancário Norte, ele não se espanta. ;Precisa ficar claro que esse tipo de esperteza não é coisa de pobre. A elite também usa dos seus jeitinhos para se virar quando as coisas não vão bem;, ressaltou. ;Quando os dois reconhecem que se vestem de mendigos, eles, no fundo, querem dizer que estão jogando o jogo;. A secretária de Desenvolvimento Social do Distrito Federal, Eliana Pedrosa, estima que 50% dos pedintes que ocupam as ruas do DF têm residência fixa, a maioria no Entorno. ;Às vezes, as pessoas não precisam, mas se valem do bom coração de muitos para viver melhor;, afirmou. Para a secretária, pouco importa se o pedinte precisa ou não do dinheiro. ;O que interessa é que dar esmola na rua não é a solução;, ressaltou. Nas ruas, os pedintes viram agentes econômicos. E alimentam um ciclo vicioso: ;Enquanto tiver quem dê esmola, eles estarão ali. As pessoas acham que dando dinheiro vão tirá-los da rua. Mas é o contrário;, acredita a secretária. Viver da mendicância pode virar um vício e acomodar o pedinte. Mas muitos dão dinheiro por entender que o Estado é omisso e a esmola pode ocupar esse espaço. ;Quando o Estado diz que faz algo, não é muito confiável;, comentou o sociólogo Pedro Demo. A própria secretária assumiu que falta eficácia nas ações. Mas culpou a esmola. ;Tiramos gente da rua todos os dias, mas eles voltam porque a rua é um lugar de dinheiro fácil;, disse. Ela contou que há casos de mendigos que ganham muito mais. ;Os da Rodoviária (do Plano Piloto), sabemos que tiram, em média, R$ 2 mil.;

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