Cidades

Amor incondicional: casal completa 60 anos de casamento

Há exatos 60 anos, Slauka e Hotemio, netos de ucranianos, começavam uma linda história de união. Nem o Alzheimer, que o afastou do mundo real, foi capaz de separá-los

postado em 05/02/2009 07:59
Numa casa com fachada dos anos 1960, na Avenida Comercial de Taguatinga, há uma história de amor infinita. E ela, essa história, foi escrita por Slauka e Hotemio Bespalhok. Ela, 79 anos; ele, 86. Hoje, completam seis décadas de vida em comum. São bodas de diamante. Assim que acordar, ela o chamará, logo cedo, como faz há 60 anos, de ;meu bem;. Colocará a roupa dele em cima da cama. Escolherá a camisa que combinará com a calça. E não se esquecerá da meia e do sapato cuidadosamente engraxado. Depois, passará o pente nos seus cabelos da cor de neve. E o beijará ternamente. Ele sorrirá para ela, mas não a reconhecerá. Há cerca de sete anos ; e mais rapidamente nos últimos seis meses ;, as lembranças de Hotemio ficaram turvas. Cada dia, um pouco mais turvas. O passado, de vez em quando, lhe vem de supetão, como se fossem flashes de um filme bom. É quando ele se lembra de si mesmo. E um pouco da própria história. O presente é um vazio. Slauka, de cabelos brancos e com menos brilho nos olhos castanhos, não lhe é familiar. Hotemio tem Alzheimer, doença degenerativa do cérebro, que produz atrofia progressiva e causa a perda das habilidades de pensar, raciocinar e memorizar. Em Taguatinga, onde vivem desde 1966, ela cuida do marido com todo o carinhoHoje, Slauka e Hotemio, nascidos no interior do Paraná, mas netos de ucranianos, vão acordar mais uma vez juntos. O convite do casamento desbotou. Mas ainda dá pra ler o texto dos pais da noiva convidando os amigos para a festa. Slauka volta ao passado. E mostra a foto do grande dia. Ela, com um lindo vestido branco de grinalda; ele, de terno e gravata. Ela havia completado 19 anos; ele, 26. ;Foram três dias de festa. Teve música e dança. Antes de ir para a igreja ucraniana, me despedi dos meus pais. Tinha um músico tocando violino na porta. Depois, na volta, meu pai me esperou com uma garrafa de vinho. Minha mãe carregava o pão. Eram nossos costumes;, conta Slauka. Uma foto sobre a mesa chama atenção de Hotemio. Ao vê-la, as lembranças ficaram um pouco mais nítidas. Ele se reconhece. E diz, sem hesitar, olhando aquele homem jovem, com cara de galã de cinema amerino: ;Sou eu!” E quando se pergunta quem é a linda moça ao seu lado, ele se vira para a mulher de cabelos brancos e indaga: ;É você?; Slauka concorda com a cabeça. Por uns instantes, ele sabe que aquela é a sua Slauka. Estamos na casa dos Bespalhok, em Taguatinga Norte. Eles recebem com carinho, como se os visitantes fossem amigos de tempos. A família chegou ali em 1966. Um dia, Hotemio visitou Brasília. Pressentiu que seria um bom lugar para criar os dois filhos adolescentes, Arlete e Hotemio Enéas. Slauka não gostou muito da ideia, mas veio. Era sua família. Era o homem que amava. ;Tudo era muito estranho, diferente. Não tinha nada. No Sul, havia mais amizade entre os vizinhos. Aqui, ninguém queria conversa;, ela diz. Mas aqui Hotemio, vendedor de madeira no Paraná, decidiu fincar raízes. Arrendou, na Taguatinga que começava, uma loja que vendia tijolinho aparente. Fé e coragem Hotemio trabalhou como nunca. Construiu seu pequeno patrimônio. Os dois filhos estudaram. Seguiram suas vidas. Casaram-se. Vieram os três netos do casal. E a primeira bisneta. O amor dos dois virou amizade infinda. ;Estamos nos aturando faz 60 anos;, ela brinca. Ele passeia pela casa. Estranha aquela gente que nunca viu. O interlocutor diz que ele está elegante. Ele devolve: ;Quando eu era jovem, não se saía de qualquer jeito. Era de gravata;. E reflete: ;Mas a vida é isso mesmo...; Slauka lembra os tempos de mocidade. Conta que, antes de conhecer Hotemio, namorou a distância um brasileiro. ;Mas meus pais não aceitaram. Eu tinha que me casar com um ucraniano.; E revela que o marido também se engraçou, antes dela, por um moça brasileira chamada Dalila. Pelo mesmo motivo, a família dele foi contra. E o destino uniu os dois. ;Tinha 14 anos quando comecei a namorar com ele;, lembra Slauka. E suspira: ;Ele era um dos moços mais bonitos da colônia onde nós morávamos;. Hotemio ri, sem entender nada do que se passa. Há seis anos, Slauka cuida sozinha do marido. Prefere assim. Não aceita empregados. Tem medo que o maltratem. Hotemio ainda faz algumas coisas sozinho, como tomar banho, escovar dentes e vestir suas roupas. Mas tudo com a supervisão da mulher. Ela coloca a pasta na escova, escolhe suas roupas e o vigia no banho. A barba é feita por ela, com medo de que se corte. Há dias que ele a chama de vó. E quando sente a ausência dela fica angustiado. Procura-a pela casa inteira. ;Olha, meu filho, pra viver 60 anos juntos é preciso ter paciência, coragem e fé;, ela explica. E chora ao falar da doença do homem que, há pouco tempo, lia muito, dirigia seu carro e tomava conta dos negócios: ;É duro ver meu marido assim. Precisei entender a doença pra poder cuidar dele. Acompanhei ele na terapia, no hospital. Tinha que ficar forte para conseguir ajudar;. Hoje, 60 anos depois do dia em que Slauka saiu de casa para se casar, ela só faz um pedido: ;Só peço a Deus que me dê força. Não quero partir e deixar ele;. Hotemio continua andando pela casa. Abre a janelinha e vê a comercial. É a vida que um dia ele viveu, mas que dela se perdeu. Olha para sua Slauka. Chama-a de ;vó;. Depois, na sala, ela o aconchega. Ele se sente seguro. Ela o ama como no primeiro dia. Ele não a reconhece mais. Mas ela tem certeza de que um dia ele a amou também da mesma forma. ;Foi uma caminhada longa, meu filho. Você passaria a vida toda escrevendo. Mas eu faria tudo de novo;, ela admite. Ele sorri, como se não estivesse ali. Há histórias tão bonitas que nem o tempo será capaz de sucumbi-las. Nem mesmo o Alzheimer.

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