Cidades

Bailarina russa desembarca em Brasília para ensinar meninos e meninas carentes

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postado em 07/02/2009 07:58
Ela parece levitar. Não só parece, aliás. Levita mesmo. Anda com sofisticação rara. Até andando de costas, se percebe que ela é diferente. E fala português com sotaque especial. Às vezes, se confunde com o uso dos artigos. Mas, de resto, domina a língua como poucos estrangeiros conseguem. O nome dela? Olga Dolganova. Tem olhos azuis, cabelos longos, 1,62m e 51 kg. Ela é uma bailarina russa de 61 anos de idade. Quantos anos? Ela devolve, com sorriso espontâneo e simplicidade contagiante: ;Você perguntou e eu respondi;. Primeira lição: bailarinas não têm idade. Assim foi o primeiro contato com Olga. E ela já deixou o interlocutor à vontade. Sabe aquelas mulheres que a gente só vê pela televisão ou em filmes, que dançam na ponta dos pés em teatros lotados? Estávamos diante de uma delas. Mais precisamente no Instituto Ballet Brazil, na 616 Sul, uma organização não-governamental (ONG) que forma bailarinos pelo método russo ; ainda hoje o mais importante balé do mundo. E ela estava lá, encantada com seus alunos bolsistas. Como se fosse a primeira aula que daria na vida. Ela conserta a perna do bailarino. Indica a posição correta das mãos da menina. Faz cara de brava. E sorri quando, à exaustão, o aluno faz todos os movimentos corretamente. Olga é de uma elegância que só as bailarinas possuem. E ama dançar como só aquelas meninas que usam cabelos amarrados e sapatilhas amam. E ela, que foi solista do Teatro Tchaikovisky e pupila da temida e extraordinária Galina Kuznitsova, estava na 616 Sul. Veio para ficar muito tempo. Semana que vem, começa a dar aulas no instituto. Quer formar bailarinos com a técnica russa. A professora de estrelas de grandes companhias desembarcou em Brasília com uma bagagem enorme de sonhos. Os mesmos que tinha quando começou a dançar, na Rússia. ;Tudo que depender de mim farei para ajudar os alunos dessa escola;, ela diz. Há nove anos, Olga chegou ao Brasil. Não sabia nem dizer obrigado em português. Tudo era diferente, inusitado e ao mesmo tempo estranho para ela ; dos costumes à alimentação. Parou em Goiânia. A viagem tinha uma missão: ensinar balé russo aos bailarinos daquela cidade. Aqui, no Instituto Ballet Brazil, outros dois amigos e contemporâneos de Olga ; Serguei Alexandrov e Nadejda Alexandrova, a mulher dele ; traziam a mesma técnica para a capital da República. Na verdade, era a primeira vez que o método russo chegava ao Brasil. Serguei e Nadejda fizeram meninos e meninas, que normalmente não teriam oportunidade de dançar, acreditar que podiam ser bailarinos. Em Goiânia, Olga fazia a mesma coisa. Eventualmente, ela vinha a Brasília, para visitar seus amigos, com quem falava a mesma língua, e aproveitava para ir ao instituto. ;Eu acompanhei o desenvolvimento dessa escola. Sempre estive ligada a ela;, ela reflete. Passaram-se os anos. Em 2005, Serguei e Nadejda foram morar em São Paulo. Outros professores estiveram no instituto. Mas faltava a técnica russa. Faltava alguém para levar adiante o método livre, criativo, poético, musical e teatral do balé russo As primeiras conversas começaram a ser travadas com Olga, que sempre se mostrou receptiva. E eis que, finalmente, os detalhes foram acertados. Novos projetos Três dias na semana ; quinta, sexta e sábado ;, a professora viverá em Brasília. O caminho será o mesmo: 616 Sul. O instituto está em festa. Mudou de direção. Agora, as bailarinas brasilienses e ex-alunas de Serguei, Flávia Tavares, 36, Lorena Medeiros, 27, e Manuela Santos, 22, comandam o espaço. E já anunciam boas novas. Farão seleção para 30 novos bolsistas ; vagas destinadas a meninos e meninas carentes de todo o DF. Olga preparará os novos bailarinos ; a técnica russa exige estudos de nove anos. E fará uma gente sonhar que pode brilhar nas grandes companhias do mundo. Que um dia poderão fazer parte do Balé de Moscou e do Bolshoi. E que dançarão nos grandes teatros da Europa. Assim como ela. ;Ela viveu o tempo áureo do balé russo;, encanta-se Lorena. Flávia a olha com admiração. E não se cansa de admirar a professora: ;Ela é perfeita, sempre impecável;. Manuela acredita que a escola seguirá outro rumo: ;Todos precisamos do conhecimento dela;. Sexta-feira, 11h. Olga entra na sala de aula do Instituto Ballet Brazil. Os alunos, todos bolsistas, estão à sua espera. Rafael Cardoso, 22, veio do Jardim Botânico. Emanuel Santana, 26, do Guará. Regiane Queiroz, 16, de Samambaia. E Guilherme Guedes, 17, do Residencial Santos Dumont, no Gama. Ela os conquista logo na entrada. A leveza e o sorriso dela lhes passa tranquilidade. Emanuel e Rafael foram alunos de Serguei. E viram no bailarino russo o melhor exemplo a ser seguido. ;Ele sempre dizia que a gente podia ser melhor. Fazia nossa autoestima aumentar. Acreditava no nosso potencial;, conta Rafael, saudoso do mestre. Olga ajeita um detalhe na perna de Emanuel, que dança há cinco anos e começou embalado pelo frevo. Indica a posição correta da mão de Rafael, que desde os 15, escondido do pai policial, calçou pela primeira vez uma sapatilha. ;Havia muito preconceito dentro da minha casa. Só minha avó e uma tia sabiam que eu fazia balé. Hoje, meu pai vai aos meus espetáculos.; A música clássica invade a sala de aula. É como anestesia. Olga fala alguma coisa para Regiane. A menina se comove: ;Vim pra cá pela oportunidade da bolsa. Onde em Brasília eu teria a chance de aprender balé russo, com professores russos e sem pagar nada?;. Em seguida, ela não se contém ao saber que Olga estará lá por muito tempo: ;Vai ser um prazer enorme, espetacular ter aula com ela;. Recém-chegado ao instituto, Guilherme ainda dá os primeiros passos na dança. Sorte dele. E começará com uma das melhores professoras do mundo. E de graça. ;É minha vida; Conversar com Olga é como viajar. E essa viagem é feita pelos palcos dos grandes teatros do mundo. ;É o que sei fazer. Minha mãe conta que eu já nasci dançando;, ela diz. E confessa, com os olhos azuis encharcados de emoção: ;É a minha vida. Estou dançando até hoje;. Olga lembra também as dificuldades pelas quais passou e teve que enfrentar para não desistir: ;A vida artística é muito difícil. A minha foi de puro sofrimento;. Divorciada, um filho de 40 anos e dois netos (todos moram na Rússia), Olga fala de saudade. Para não morrer dela, de vez quando vai revê-los, do outro lado do mundo. É assim que se abastece e volta ao Brasil para continuar sua missão. E assim, com lágrimas de saudade, calos nos pés, dedos em carne viva, dores, lesões pelo corpo inteiro (uma vez quebrou o pé dançando), sonhos e aplausos, Olga seguiu sua trajetória profissional. O interlocutor pergunta o que uma menina precisa fazer para ser uma boa bailarina. Ela não titubeia: ;Uma bailarina já nasce bailarina. E não estou falando apenas de físico. É muito mais que isso;. E o que ainda a e emociona no balé, mesmo depois de tanto tempo: ;A música, ela me transporta. Às vezes, quando durmo, sonho que tô no palco, dançando. Também me emociona quando as pessoas se dedicam. Gosto de ver quando trabalham, captam e florescem. Sinto parte do meu trabalho dentro daquela pessoa...; Olga é exigente com seus alunos? ;Sim, muito. Tem que ser;, ela ri, ternamente. E explica: ;Não se pode perder tempo. Uma aula não levada a sério é um dia a menos. A vida de uma bailarina passa muito rápido;. E de quem a professora é tiete? ;Da elegância e da exuberância de Maya Plitskaya, que, aos 83 anos, ainda é uma grande bailarina russa;. O brasileiro tem talento? ;É um povo musical, com muita vontade de dançar. Mas precisa trabalhar muito para suportar as dificuldades do balé.; Alguma coisa a entristece? ;O preconceito que as pessoas ainda têm em relação a meninos dançarem balé. Na Rússia, não existe isso. É tradição cultural homem ser bailarino. É profissão. No Brasil, percebo que ainda é muito forte. Os pais não aceitam.; E como se acaba com o preconceito? ;Sinceramente, não sei essa resposta;, ela responde, desolada. A russa que aprende cada dia uma nova palavra em português conta um segredinho: está solteiríssima, ;com o coração aberto para o amor;. Em tempo: a palavra solteiríssima, quase sem sotaque, é dela mesma. ;Você não vai escrever isso!”, pede, envergonhada. Escrevi. Olga é uma mulher encantadora. E ainda, cheia de charme, dança na ponta dos pés. Bolsistas, corram! Site: Telefone: 3346-4233

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