Cidades

Condenada à invalidez, Marlene Fleury dribla os próprios limites

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postado em 15/02/2009 09:03
A 180km de Brasília, depois de Pirenópolis, em direção a Anápolis (GO), há uma história inimaginável. E ela reúne todos os ingredientes: dor, resignação, fé, reconstrução e superação. Todos os dias, é um renascimento. E de tão comovente, ela, a dona desta história, emociona quem a conhece. Ser e viver Marlene Fleury é de uma intensidade tamanha. Entender sua trajetória é como compreender a própria vida. Diante dela, se faz necessário um mergulho interior. Nada mais será como antes, depois de ficar cara a cara com essa mulher. Conceitos, valores, sentido, tudo terá que ser revisto. E repensado. O sorriso que contagia e a força sobre-humana de Marlene são o termômetro desta história. [VIDEO1] Quarta-feira, 11 de fevereiro, 10h45. Trinta quilômetros depois de Pirenópolis, do lado direito, avista-se uma plaquinha: Povoado de Caxambu. É lá. O asfalto termina. E a viagem continua por uma estrada de terra batida. São 4km a mais. Mas finalmente se chega. Na entrada do lugarejo, uma parada para informação: ;Onde é a casa de dona Marlene?; Um homem corpulento, sentado na varanda do bar, responde: ;É essa aí;. E aponta para a primeira casinha à direita, na entrada do povoado, com muro alto e cacos de garrafas no topo, para dar mais segurança. O portão está aberto. A porta da casa também. Os visitantes se aproximam. E a cena que ficará para sempre guardada na memória: a dona da casa, na sala, deitada de bruços numa cama com rodinhas. Naquela posição, ela faz pacientemente crochê. Termina a decoração de um pano de prato que prepara para uma sobrinha. Está sozinha. Sem televisão ou mesmo um radinho (ela preferiu não tê-los), o único barulho é produzido pelo contato da linha com a agulha e pela respiração da mulher que faz crochê. A dona daquela casa é paraplégica. Vive naquela posição há 55 anos. Não pode se sentar em decorrência de uma fratura permanente no fêmur, depois da paralisia. E mesmo assim, de bruços, decidiu que viveria. Começa aqui a comovente história de Marlene ; 68 anos, goiana de Pirenópolis, sorriso bom, olhar de quem cuida, alma iluminada. A mulher que transformou dor em alegria, a limitação em completa possibilidade e todos os nãos que ouviu na vida em renascimentos diários. E assim, de bruços, ela mudou a vida dos moradores de um povoado. Sem imaginar, mudou a própria vida. O começo Início dos anos 1940. Nasce, na então pacata Pirenópolis, a primeira filha da costureira Ilda e do caminhoneiro Boanerges Fleury. O casarão de 14 cômodos, ao lado da igreja matriz, indicava que a família era remediada. ;Meu pai trabalhava muito. Minha mãe ajudava no orçamento. Ela costurava lindos vestidos de noiva;, conta Marlene. Desde criança, a filha de Ilda acalentou o desejo de ser freira. ;Cresci dentro de uma igreja. A gente escutava o padre falar da minha casa;, lembra. Mas Marlene era diferente. Conta que nasceu com um grave desvio na coluna. ;Era meio tortinha. Minha mãe consertava todos os meus vestidos. Sempre tirava uns três dedos de um lado, para poder ficar igual;, revela. Uma radiografia, feita com um médico conhecido, na cidade goiana de Morrinhos, revelara o mal: a menina tinha um grave desvio nas vértebras. Marlene contava 13 anos. ;Meu pai procurou especialista em Goiânia. Mas ali disseram que não arriscariam a cirurgia;. Em fevereiro de 1954, o pai caminhoneiro catou as economias e partiu com a filha para São Paulo. Lá, no Hospital das Clínicas, havia a esperança de resolver o problema. Examinada por uma junta médica, depois de exames e avaliações, um especialista decidiu operar Marlene. Em maio daquele 1954, a menina entrou no centro cirúrgico. ;Era como se fosse cena de filme. Nunca tinha visto tanto médico junto;, recorda-se. Nove horas de cirurgia. ;Depois, no quarto, a enfermeira me mandou mexer os pés. mas eu não sentia mais nada, da cintura pra baixo. Ela dizia: ;É manha sua, goianinha. Tenta!’ Eu não conseguia;. Sem saber, nem mesmo a enfermeira, Marlene ficara paraplégica. ;Depois, por causa de complicações da cirurgia, fiquei em coma e fui pra UTI.; Em dezembro, a menina retornou a Pirenópolis. Completara 14 anos. Chegou sem andar. A mudança Na cidade, logo a notícia se espalhou. ;Marlene voltou paralítica;, diziam. E o pior: nem se sentava mais. O povo se juntou na porta para vê-la. E a vida da menina mudou para sempre. ;Parei de estudar na 4ª série. Não tinha como subir os degraus da escola. Não era justo minha mãe me carregar todos os dias;, ela conta. Foi quando Marlene teve que reinventar a própria vida. Aprendeu crochê e bordado por correspondência, no Instituto Universal Brasileiro. Formada, arrumou, tempos depois, emprego na prefeitura. Dava aulas para meninas em casa. Adolescentes aprenderam com ela a bordar e a costurar. Sozinha, aprendeu a tocar violão. Colocava o instrumento perto do travesseiro e dedilhava as cordas do violão. Fez da música sua inspiração. Tornou-se, em cima de uma cama, de bruços, professora de violão e canto. E ainda preparava crianças para a catequese. Passaram-se os anos. Muitos anos. Os pais de Marlene morreram. As três irmãs mais moças se casaram. Foram viver suas vidas. Em 1989, aos 48 anos, ela resolveu que se mudaria de Pirenópolis. Precisava ensinar o que sabia a uma gente que precisava de tanto. Com sua cama de rodinhas, partiu para os povoados da região. Em 20 anos, morou em 12 lugarejos. Aposentou-se em 2000 e resolveu que viveria em Caxambu. Ali, com todas as economias que fez ao longo da vida, juntou R$ 1,2 mil e comprou um lote. Desenhou a planta da casa. E, com ajuda de amigos, num verdadeiro mutirão, a construiu. Tem sala espaçosa, banheiro e cozinha. As paredes são da cor salmão. E sua cama com rodinhas circula livremente por todos os cômodos. Ela mora sozinha, faz sua própria comida (num fogãozinho de duas bocas), toma banho também sozinha (usa uma maca pra isso), dá aulas de catecismo, ensina tricô, crochê, bordado e pintura às mulheres. Não cobra um centavo por isso. E ainda restaura imagens da igreja. Tornou-se a pessoa mais conhecida do lugar ; hoje com 99 casas e pouco mais de 400 habitantes. Conselhos? Problemas? Todos batem à porta de Marlene. O renascimento Quarta-feira, 11 de fevereiro, 15h. A casa da mulher que não anda está lotada. São crianças e adolescentes estudando para a crisma. Ela fala sobre os sete vícios capitais e os sete sacramentos. Gustavo, de 12 anos, que quer ser padre, se emociona com a professora que vive de bruços: ;Ela me ensinou tudo;. Liliane, 17, se empolga: ;Ela também ajuda a gente na peça do teatro;. Raul, 14, emenda: ;Desde que ela chegou aqui, tudo mudou;. A vizinha Divina Moreira, 54, que a ajuda no banho diário e limpa a casa, mediante remuneração, fala com gratidão: ;Dona Marlene iluminou a nossa vida. Guerreira igual, nunca vi;. Ilma Pontierie, 52, que empurra sua cama com rodinhas até a Igreja do Divino Pai Eterno, não se contém de admiração: ;É a pessoa mais inteligente que conheci em minha vida;. Nazaré Mesquita, 48, amiga das missas, se rende à força daquela mulher cheia de limitação: ;É uma santa que veio pro nosso povoado. Se você tá chateado, vem cá que ela te levanta;. Maria da Paixão de Jesus, 60, companheira da igreja, resume tudo: ;Ela se tornou um exemplo de vida pra todo mundo desse lugar. E fez a gente acreditar que tudo é possível;. É nesse lugar, hoje transformado, que Marlene decidiu morar pra sempre. Humildemente, responde ao repórter: ;O que eu quero da vida? Quero aprender pra viver. Todo dia eu aprendo um bocadinho;. ;Se eu sou feliz? Sou, sim, uai! O que mais me falta? Não tem motivo pra tristeza.; Com um sorriso que encanta e paralisa todos naquela sala, ainda brinca: ;Esse negócio de andar não tá com nada. Cansa demais. Vê só na missa: o padre fica de pé e eu, deitada, só no bem bom...; Há 55 anos, antes de voltar para Pirenópolis, a menina perguntou ao médico paulista que a operou: ;Isso tem cura, doutor?;. Laconicamente, sem encará-la (na época houve suspeita de erro), ele respondeu: ;Só o tempo dirá;. Mais de meio século depois, Marlene descobriu que esse tempo foi longo demais. ;Eu vi que o tempo não responde e não para;, reflete. E assim, de bruços, ela não assistiu à vida passar deitada na sua cama com rodinhas. Renasceu e reescreveu seu destino. Dia a dia, mesmo que a humildade não a deixe enxergar, ela muda a vida de todos com quem convive. ;Se não for pra fazer o bem e servir ao próximo, de que adianta viver?;, ela indaga. Marlene é inacreditável. Conhecê-la é como levar um soco no meio do estômago. É como acordar de um torpor. E ter a boa certeza de que nem tudo está perdido. De tão inacreditável, ela parece ficção. É demasiadamente boa para ser humana. Colaborou Diego Amorim

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