Cidades

Idosos e adolescentes trabalham juntos com artesanato em asilo de Sobradinho

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postado em 28/02/2009 08:37
Era pra ser uma brincadeira ; terrivelmente de muito mau gosto, é bom que se diga. Um susto. Uma amiguinha, entediada da vida, queria fugir de casa e simulou um sequestro. A amiga mais velha, então com 15 anos, ajudou no plano. Juntos, estavam dois rapazes maiores de idade. Eles, os rapazes, pensaram em pedir resgate. Era a forma que teriam para bancar a farsa da fujona. Nem deu tempo do tal pedido. O plano saiu errado. A polícia logo descobriu. Na mesma noite do ;sequestro;, a menina mais velha foi encaminhada para a Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA). Na tarde de ontem, em companhia da mãe, Lorena estava num asilo. No Natal do ano passado, Fernando, 15, em companhia de outros três menores e um adulto, participou de um assalto à mão armada. Era a segunda tentativa. Por quê? ;Porque eu queria ganhar dinheiro fácil;, ele justifica o injustificável. Deu zebra de novo. Da DCA, o garoto foi direto para o Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje). Ficou ali por 45 dias. Paulo, então com 16 anos, também se aventurou pelos descaminhos do crime. E da vida pária. Tentou assaltar. Chamou dois outros adolescentes. O plano era perfeito, eles pensaram. Assalto frustradíssimo. De São Sebastião, onde foi detido meia hora depois do feito malogrado, numa perseguição policial, levaram-no direto para o Caje. Amargou ali, entre homicidas e latrocidas, 45 longos dias. Numa briga de gangue, que acabou em pancadaria e objetos surrupiados, Pedro, 15, se deu muito mal. Foi para DCA. Na tarde de ontem, ao lado de Lorena, Fernando e Paulo, Pedro também estava no asilo. Não, nada foi escrito errado. E nem o lugar onde estão é uma miragem. Duas vezes por semana, Lorena, Fernando, Paulo e Pedro passam tardes inteiras ali, no meio de uma gente com histórias muito diferentes das que um dia eles protagonizaram. E, especificamente na tarde de ontem, estavam ao lado da encantadora e sorridente Vicentina, uma negra de 86 anos, com alma de quem só fez o bem a vida toda. Da sossegadinha Josefina, 80. Da cheia de bom humor Maria Rita, 78. Da namoradeira Margarida, 77. Da tímida Maria Augusta, 69. E do caladinho José, no auge e contemplação dos seus 90 anos. É ali, no Lar dos Velhinhos Bezerra de Menezes, em Sobradinho, num lugar onde vivem 60 idosos, o passado é quase sempre mais nítido que o presente e as horas perderam a importância, que essa gente toda se encontrou. Os adolescentes infratores cumprem medida socioeducativa, por determinação da Vara da Infância e da Juventude (VIJ). Os idosos não entendem muito o que é essa tal medida socioeducativa. Nem precisam, a essa altura da vida. Eles só entendem que aqueles jovens sorriem para eles. Juntos, com mãos literalmente sujas, idosos e adolescentes transformam tudo, assim como a vida. Sob a coordenação da voluntária e artesã Cândida da Costa, de 58 anos, jornal vira sacola, relógio, porta-retrato. A caixinha de leite, um delicado porta-lápis. E tudo mais que a imaginação der conta. Estamos na oficina de reciclagem de papel. As mãos enrugadas de Maria Augusta pedem ajuda para as mãos de seda de Lorena. A vista já cansada e opaca de Josefina pedem os olhos emprestados de Paulo. Maria Rita se deixa ser ajudada por Fernando. E Margarida aceita que Pedro lhe dê os jornais para o recorte. Renascimento É nessa convivência quase improvável que a vida tem se transformado. E para quem ainda tem o tempo a favor, nem todos os meses e anos no Caje poderia ser mais eficientes. Lorena, que termina a medida socieducativa em março, sabe exatamente o que fará depois: ;Vou voltar como voluntária. Nunca mais deixarei de vir aqui. Esse lugar me ensinou muita coisa. Quero ouvir histórias que eles têm para me contar;. Comovida, a menina bonita deixa escapar: ;Quando chegamos, eles sorriem pra gente. Isso é a prova do carinho que sentem por nós;. No asilo, Fernando sente que refletiu. ;Parece que tô mudando. Tenho amigos que ainda estão no Caje. Não quero isso pra mim;, ele diz. Paulo descobriu que pode fazer do aprendizado no asilo uma profissão: ;Gosto de trabalhar com gente idosa. No futuro posso seguir esse caminho;. Pedro só tem certeza de uma coisa: ;Fazer coisa errada não compensa;. Artista aos 86 Enquanto os menores um dia infratores decidem e planejam o futuro com força e voz de vida, Vicentina se importa com o hoje ; a única coisa concreta que lhe restou. Amanhã pode estar muito longe para todos eles. Doméstica a vida inteira, a mineira criada em São Paulo perdeu os filhos gêmeos ainda na barriga. Assim, criou, como se dela fossem, os filhos dos patrões. Hoje, vive num asilo. É a mais assídua na oficina de reciclagem de papel. Adora ver o que suas mãos transformam. Sente prazer em se tornar artista aos 86 anos. Emocionada, a diretora do asilo, a voluntária Inês Alves Miranda, de 49 anos, 17 dos quais dedicados àquela causa, confessa: ;A convivência entre os jovens e os idosos é uma troca. E todos ganham;. Ela conhece cada história de vida dos seus ;hóspedes;. E agora está aprendendo a entender os descaminhos pelos quais aqueles adolescentes um dia trilharam. Cheia de orgulho, comemora: ;Nosso asilo é o único do DF que tem registro no Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente e convênio com a Vara da Infância e da Juventude. É mais um espaço onde o adolescente pode prestar serviços à comunidade;. Poema da paz Passa das 16h. Mãos, dos jovens e dos moradores do asilo, continuam sujas. A oficina está com cara de oficina. Mas é hora do lanche. Numa parede simples, um quadro ainda mais simples. Nele, uma foto de Madre Teresa de Calcutá. Junto, sua melhor mensagem, o Poema da Paz: ;O dia mais belo? Hoje. A coisa mais fácil? Equivocar-se. O obstáculo maior? O medo. O erro maior? Abandonar-se. A raiz de todos os males? O egoísmo. A distração mais bela? O trabalho. A pior derrota? O desalento. O que mais faz feliz? Ser útil aos demais;. A mensagem continua: ;O mistério maior? A morte. O pior defeito? O mau humor. A pessoa mais perigosa? A mentirosa. O sentimento pior? O rancor. O presente mais belo? O perdão. O mais imprescindível? O lar. A estrada mais rápida? O caminho correto. A sensação mais grata? A paz interior. O melhor remédio? O otimismo. A maior satisfação? O dever cumprido. A força mais potente do mundo? A fé. As pessoas mais necessárias? Os pais. A coisa mais bela de todas? O amor;. Haverá ainda muito tempo para que Lorena, Fernando, Paulo e Pedro entendam cada uma daquelas linhas e as transformem em verdade. Vicentina, Josefina, José, Maria Rita, Margarida e Maria Augusta, porém, já compreenderam tudo. E hoje, de cabelos brancos, mãos enrugadas e olhos que perderam o brilho, reciclam papel velho como se reciclassem a própria vida. Não poderia haver encontro melhor: o menino um dia assaltante e a idosa que cuidou dos outros para que ela mesma pudesse existir. E tudo isso acontece numa oficina, nos fundos de um asilo. Essa história é feita de emoção, cumplicidade, mãos entrelaçadas e de um afeto comoventemente silencioso. FEIRA BOTÂNICA As obras produzidas no Lar dos Velhinhos Bezerra de Menezes ficarão expostas até amanhã, no Casa Park, na Praça Central do shopping. Hoje, das 10h às 22h. Amanhã, das 12h às 20h. Entrada gratuita

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