postado em 04/03/2009 08:10
Passa das 15h. Depois da soneca religiosa da tarde, ele nos espera na porta. É altivo, ereto, firme. Inacreditavelmente lúcido. O aperto de mão é forte, com jeito de gente que se importa e gosta de cumprimentar gente. O sorriso é bom, sereno e acolhedor ; sorriso de quem conhece um tanto de vida e sabe os segredos do tempo. Ele está na moda. Veste camisa polo laranja, calça verde-clara e nos pés uma sandália. Ela tem cabelos brancos e usa um vestido rosa enfeitado com um colar de imitação de pérolas. Nos pés, uma simpática chinela de dedo, dessas de ficar em casa mesmo. Está simples, mas elegantíssima.
Naquela casa de esquina do Núcleo Bandeirante, o homem de aperto de mão forte completou, ontem, um século de existência. Ao lado dele, a mulher, a companheira de 74 anos de vida em comum. Essa história é de Joaquim Pereira da Silva, 100, e Francina Messias da Silva, 89 (completa 90 em 15 de agosto). Ele, ainda hoje, a chama de boneca. Ela o beija no rosto. Ele confessa: ;Toda a vida ela foi bonita;. Ela devolve: ;Até hoje ele não tá feio, não;. No dedo anelar da mão esquerda de ambos, a aliança, posta em 1935, nos confins da Bahia.
A prosa começa: ;É verdade que o senhor faz hoje 100 anos?;. Já sentadinho no sofá, ao lado da sempre Francina, ele dispara: ;Dizem. Eu não sei dessa conversa;. E ri, como menino peralta. Em seguida, admite: ;É sim. E com muito prazer. A vida acaba sendo um mistério...; A mulher ajeita o colar de pérolas de mentirinha. Compreende o que o homem com que se casou aos 16 anos diz.
Voltemos ao começo dessa história, em Palmeiras, interior da Bahia. Lá, Joaquim, então com 26 anos, se casou com Francina, dez anos mais nova. Ela jurou que, ao tirar aquela menina da casa dos seus pais, lhe daria tudo que o trabalho pudesse proporcionar. Foi lavrador e comerciante. Joaquim labutava de sol a sol. A barriga de Francina aumentava todos os anos. Foram onze ao todo. Ele brinca: ;A culpada de tanta barriga é ela. Eu não tive nada a ver com isso;. Francina também gargalha e lembra, com memória intacta: ;Os três primeiros tive com minha mãe. Os outros, com parteira;.
Um dia, pela falta de água que assolava as terras onde a família vivia, Joaquim não tardou a tomar uma decisão. Se ficasse ali, a vida seria um martírio. Catou mulher e até então dez filhos (a caçula já nasceu em terras goianas) e partiu. Viajou dias e noites sem cessar, até chegar ao estado de Goiás. ;Era agosto de 1956, quando passamos pelo Distrito Federal quando nada existia. Alguém disse pra gente que aqui seria a nova capital do Brasil. Eu nunca esqueci isso;, ele conta.
E finalmente chegaram a Itapirapuã (GO). Lá, com água farta, Joaquim comprou uma terrinha. Plantou e criou gado. Trabalhou como nunca. A terrinha virou uma fazenda. Queria garantir aos filhos uma vida melhor do que teve. ;Só fiz o primário, mas todos eles se formaram;, ele diz, com orgulho incontido. Francina enumera, cheia de satisfação: ;Tem economista, engenheiro, advogado...;.
Nova vida
Era 1971 quando Joaquim comprou um lote no Núcleo Bandeirante. Ali, construiu uma casinha. Era para que os filhos estudassem mais e se tornarem doutores. De fato aconteceu. Todos foram para a faculdade. Raimunda , hoje com 57 anos, a filha que mora e cuida eles, formou-se em agronomia, na Universidade de Brasília. ;Eles trabalharam uma vida inteira juntos, sempre pensando no bem-estar da gente;, ela reconhece.
E de pouquinho em pouquinho, Joaquim e Francina foram deixando as terras em Goiás. Aprenderam a gostar de Brasília. E hoje voltam à fazenda quando querem descansar da barulheira da cidade grande. Ela adora ver, sentadinha no fundo do quintal, as galinhas correrem soltas. Ele vai ver a plantação. E acordam com o cantar do galo. ;Eu nasci pra mexer com terra, gosto da roça. Cidade pra gente velha não presta muito não;, ele constata.
Será mesmo? Fala a verdade, seu Joaquim! Logo depois, o danadinho desdiz o que disse: ;Aqui é bom porque eu caminho pela manhã e fico olhando as moças bonitas andando no calçadão;. Dá-lhe! Mas logo percebe que Francina, de ouvido em pé, está na sala. E se penitencia: ;Tô brincando...; E explica por que se pela de medo: ;Ela é valente toda, moço!”.
E fala sério, aliás com uma sinceridade inacreditável para os dias atuais: ;Desde que me casei, nunca mais vi outra mulher. Eu viajava muito, pra vender e comprar mercadoria, tinha dinheiro, mas nunca traí a Francina;. E explica a opção de se manter fiel por 74 anos: ;A fidelidade eleva as pessoas. É na verdade o respeito por si mesmo. Quem não se respeita não pode respeitar a outra pessoa;.
Vinho tinto
A família cresceu. Os filhos lhes deram 38 netos, 44 bisnetos e até agora três tataranetos. ;É gente pra tapar rancho;, ele gargalha. Francina gosta desse tanto de gente. Sempre preferiu a casa cheia. Na Páscoa, a família irá comemorar o centenário de Joaquim. Vai ser gente saindo pela janela. Mas é tudo que Francina quer: os dez filhos reunidos (ela sabe de cor a data de nascimento, com o dia da semana correspondente, de cada um deles), movimento, falação, crianças correndo e muita alegria. ;Tive onze filhos, perdi um, mas até hoje me lembro dele. É ruim demais. Nunca consegui esquecer;, ela admite, emocionada.
A prosa segue. Não é hora de tristeza. Por uns instantes, os papéis se invertem. Francina vira repórter. ;Você nasceu onde? Quantos anos você tem? Seus pais moram aqui? Trabalha há muito tempo em redação? ;Tem filhos?;, pergunta a mulher de 89 anos e olhos cheios de inquietação e vida. O homem de 100 anos conta peripécias. Ri de suas próprias histórias. Entre uma risada e outra, ensina o que aprendeu com a vida: ;A gente precisa respeitar para ser respeitado. É a primeira condição para existir. Outra coisa: nunca dar ouvidos a disse-me-disse. A vida alheia não interessa a ninguém. Cada um vive da forma que quiser e ninguém tem que se meter nisso;.
Joaquim diz que nunca fumou. ;Pra quê? Só faz mal;, explica. Em compensação, não dispensa um bom copo de vinho tinto até hoje. ;Ah, gosto muito;, anima-se. Francina intervém: ;Peixe, quiabo e vinho é com ele mesmo;. Serelepe, ele emenda, completando a lista dita pela mulher: ;E moça bonita também;. Francina é obrigada a rir.
O aniversariante da tarde de ontem não se apegou ao passado. Ao contrário disso, aprendeu com ele. ;O que passou, passou. Tudo tem seu tempo determinado. O que importa é o presente;, ensina. Católico praticante (com sua amada vai à missa todo domingo), profetiza: ;Se uma coisa não dar certo hoje, pode dar amanhã. Mas a pessoa não pode esquecer que o maior planejamento da nossa vida é feito pelo Pai. Ele sabe a hora da chegada e da saída de cada um de nós. Eu acho que é isso é que me dá tranquilidade de espírito;. Francina mostra uma colcha de fuxico bem colorida que prepara. ;Não tô caduca ainda não;, repara. Joaquim explica o sentido de felicidade: ;É andar sempre com a verdade. Só isso;.
E numa cena absolutamente comovente, no final da conversa, o homem de 100 anos olha para a mulher de 89, com quem vive há 74, e diz, como se fosse o primeiro dia de suas vidas: ;Nós dois tiramos um bilhete premiado da loteria;. Com um sorriso, Francina concorda. Estão um ao lado do outro, de mãos dadas, no banquinho de madeira da garagem. Parece cena de filme. Parece ficção. Mas a cena é encantadoramente real. Como foto, precisa ficar congelada. Impregnada na retina. E na alma.