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Aventura que levou dois ciclistas a pedalar 1,7mil km na mesma bicicleta vai virar livro

Em 18 de janeiro, o Correio relatou com exclusividade como seria a aventura sobre duas rodas do adestrador de cães e do empresário

postado em 06/03/2009 08:15
Uma viagem de sentidos à exaustão. E agora, mais do que nunca, de um significado muito mais latente: o da amizade construída diante de todas as improbabilidades. Uma viagem onde cada um trouxe mais do que levou. Exceto os quilos a menos. O que leva duas pessoas que mal se conheciam a pedalar, na mesma bicicleta, por mais de 1,7mil km, numa verdadeira aventura, rumo ao desconhecido? O que leva dois homens, um que enxerga e outro que vê apenas vultos, a partirem sem saber ao certo se realmente chegariam? Loucura? Não. Eles provaram que ainda há humanidade. Provaram entre eles mesmos. E nas histórias e pessoas com as quais esbarraram ao longo da aventura. E tudo isso vai virar um livro. Essa é a história de Weimar Pettengill, de 37 anos, empresário, morador do ParkWay, casado, dois filhos. E de Adauto Xavier da Trindade Belli, também de 37 anos, solteiro, sem filhos, morador da zona rural do Tororó, adestrador de cães e cego. Um dia, Weimar pensou em fazer sozinho uma grande viagem de bicicleta. E a Estrada Real ; que parte de Minas Gerais, mais precisamente de Diamantina, ao litoral do Rio de Janeiro ; lhe veio à cabeça. Seriam 900km. Mas ele queria mais. ;Por que não sair de Brasília, por Unaí;, pensou. E logo em seguida pensou novamente: ;Vai ser muito egoísmo não dividir tanta beleza com alguém?;. Mas quem seria? No grupo ciclista Rebas, projeto que promove passeios de bicicleta com cegos, Weimar ouviu falar de Adauto, um cara que corria e gostava de aventuras radicais. Ligou para ele. Do outro lado da linha, o adestrador de cães não pensou duas vezes. ;Eu topo;, respondeu, sem nunca ter encontrado Weimar na vida. E sozinho, se perguntou: ;Quem me convidaria para uma viagem dessas?; Ele mesmo achou a resposta: ;Ninguém. É a minha chance;. E combinaram uma coisa: até o dia da partida, teriam poucos encontros. Deixariam para se conhecer na estrada. Essa sim, além das subidas e descidas, da estrada de terra (a maior parte do percurso), da Serra do Espinhaço e seus 28km de subida, seria a maior prova dos dois desconhecidos. Weimar e Adauto (D) contaram como foi pedalar em uma só bicicletaEm 18 de janeiro, o Correio contou com exclusividade a aventura que os ciclistas fariam dali a alguns dias. Era o segundo encontro da dupla, em treinamento, já na bicicleta Tandem (que leva duas pessoas), toda adaptada para a viagem ; novas rodas, suspensão, freios a disco. No dia 29, os dois partiram. De concreto, apenas o mapa que Weimar carregava. Tudo mais seria um mistério. Até mesmo se terminariam a aventura. Na tarde quente de ontem, no Parque da Cidade, Weimar e Adauto reencontraram o Correio. E contaram como foi a viagem que se tornou mais que uma aventura: foi a redenção dos próprios limites. ;Durante todo o percurso, apenas cinco pessoas perceberam que o Adauto tinha deficiência visual. Ele é incrível;, elogia Weimar. E continua: ;Se hoje eu tivesse que convidar alguém pra outra viagem, acho que teria problemas;. Escondendo os olhos que não enxergam por trás dos óculos escuros, Adauto se emociona. E responde: ;O companheirismo dele foi o que mais me marcou;. Encontros inusitados A chegada a Paraty, no Rio de Janeiro, destino final da aventura, foi em 15 de fevereiro, 18 dias depois da saída. ;Quinze dias foram de pedal e três ficamos parados, em função do atoleiro da estrada e dos problemas com a bicicleta;, conta Weimar. E a peleja começou logo aqui, bem pertinho, faltando 20km para chegar a Unaí (MG), depois de pedalar 160km. ;Enfrentamos 35 graus, a água acabou. Pensamos que não daríamos conta;, diz o inventor da viagem. Diante do cansaço, Weimar perguntou a Adauto se ele queria parar. Ele não hesitou: ;Nunca;. E lá se foram. Chegaram à cidade, arrumaram um canto para dormir e partiram no dia seguinte. E eis um encontro inusitado. Na estrada, encontram um homem que também viajava de bicicleta. Era inevitável não parar para uma prosa. Weimar perguntou o que o rapaz fazia ali. Ele não se demorou a responder: ;Tô com problema na Justiça de Brasília e vim me esconder aqui em Unaí;. E o que você fez? ;Tava puxando 12 (leia-se: preso por tráfico). Nesse momento, passou um carro da polícia. E acenou para os ciclistas. Adauto não contou conversa. ;Vamos nessa, Weimar...; E pedalaram até se perderem do rapaz. No terceiro dia da viagem, em Brasilândia (MG), mais uma cena inusitada. Acabados de cansaço, procuraram um hotelzinho para dormir. E deixaram a bicicleta na porta, sob a responsabilidade do vigia. O vigia dormiu. E, quando os ciclistas acordam, cadê a bicicleta? ;Dois bêbados estavam zanzando com ela pela cidade;, conta, ás gargalhadas, Weimar. E ao pedirem explicação por que os dois bebuns tinham pegado a bicicleta, um deles prontamente explicou: ;Uai, sô, quando é que a gente ia andar num trem tão doido desse?; E a viagem rumo aos sentidos prosseguiu. Cada dia, uma nova aventura. Em todo o lugar aonde chegavam, duas perguntas eram feitas: ;De onde vocês vêm? E tão indo pra onde?;. ;As crianças seguiam a gente em suas bicicletinhas;, conta Adauto. Os dois viraram heróis. Pessoas os acolheram. Contaram suas histórias, seus causos. Teve até quem falou, com categoria, sobre a Inconfidência Mineira. Foram presenteados com uma folhinha de Santo Expedito. Pediram para avisar quando chegassem a Paraty. E o povo lhes desejava sorte. A viagem também foi feita de outras aventuras. Houve pausa para uma escalada. Adauto subia os paredões apenas ouvindo a voz de Weimar e tateando o que sentia diante de suas mãos. Depararam-se com cachoeiras cinematográficas. E mergulhos que os faziam recuperar as forças. Weimar foi os olhos de Adauto. E o rapaz que não enxerga encorajou o ciclista que o conduzia a seguir. E o ensinou coisas que ele nunca tinha visto. Na subida da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, ouvindo as belezas que Weimar lhe narrava, ele disse: ;Essa é a minha igreja;. Na tarde de ontem, ainda emocionado, Weimar revelou: ;Antes da viagem, eu achava que o Adauto era bruto. Ele me surpreendeu com a sutileza de suas percepções. Aguentou calado situações que ninguém suportaria. Ele é um herói;. Detonados O calor de 41 graus e as pedaladas dia e noite foram tirando a resistência dos dois aventureiros. A perna de Adauto travou. ;Não tinha mais como eu triscar o pé no pedal;, ele diz. E assim, tomando remédio, pedalou dois dias só com um pé. ;Eu não podia desistir;, insiste. Para completar, em São Gonçalo do Rio das Pedras, já na Estrada Real, o freio estragou, o eixo da roda traseira não suportou e as forças dos dois estavam quase minando. Houve trechos, em função do atoleiro, que foi impossível pedalar. A bicicleta teve que ser empurrada por mais de 60km. Foram os momentos mais difíceis da viagem. E chegou o asfalto. A Via Dutra, os carros, o trânsito infernal, o perigo em potencial. ;Os últimos 20km que faltavam pra chegar a Paraty foram os piores. Meu pé estava em carne viva. E parecia que não chegaríamos nunca. Estávamos alucinados. Não conseguíamos mais nem falar;, lembra Weimar. Mas chegaram. E dormiram como nunca dormiram antes. Passaram dois dias na cidade-destino. E voltaram a Brasília de carro. A bicicleta, na carroceria. A aventura foi registrada por Weimar numa espécie de diário de bordo. Todas as suas anotações vão virar um livro, que deve ser lançado em 60 dias. E os ciclistas, agora amigos de verdade, já pensam em novas aventuras. Novas viagens. ;Eu peguei carona no sonho de Weimar;, reflete Adauto, ainda extasiado. Comovido, Weimar apenas ouve. O silêncio é a melhor resposta. Na verdade, o sonho e a loucura foram de ambos. Tinha tudo pra dar errado. Deu amizade, companheirismo, respeito e a certeza de que as adversidades aproximam e tornam as pessoas iguaizinhas. Tanto faz enxergar ou não. Ser empresário ou adestrador de cães. Espie Saiba mais sobre a viagem no site

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