Cidades

Vidas entrelaçadas

Viúvas e lúcidas, uma mãe às vésperas de completar 100 anos e uma filha de 80 moram na mesma casa na Asa Sul há quase três décadas. Invertendo o que se esperava nesta altura da vida, é a mais velha que ainda cuida e protege a mais nova

postado em 11/03/2009 12:43
Maria, com a filha TerezinhaTodos os dias, por volta das 17h, ela vai até o quarto da filha, dobra cuidadosamente a colcha, busca o lençol e os travesseiros e os deixa sobre a cama. Hoje mesmo, a cena se repetirá. A filha, sabedora da ação da mãe, nem se dá mais ao trabalho de preparar o lugar onde dormirá. Que luxo! A mãe, afinal, sempre o fará. Ou melhor: tem feito isso nos últimos tempos. E aí, o que tem de mais em mães arrumarem os quartos das filhas? Nada. É a cena mais comum que se pode imaginar. Mas quando a mãe está às vésperas de completar 100 anos e a filha caminha para os 81, a história muda completamente de rumo. Nessa época da vida, quase sempre, os papéis de invertem. Mães, já meio cansadas, às vezes esquecidas, adoentadas, viram filhas. Não é esse o caso de Maria Mesquita Meira. Ela continua mãe de Terezinha Meira Magalhães. Continua arrumando a cama onde a única filha dorme. É essa história que o Correio conta hoje. E o tempo, esse que apaga, distancia, turva emoções, continua um aliado naquele apartamento espaçoso da 307 Sul. Há 24 anos, as duas moram juntas. Viúvas, uma virou companheira da outra. Cúmplices na arte de encarar a vida, driblar dificuldades pelas quais passaram (ambas dizem que o sofrimento e as dificuldades foram muito grandes, principalmente lá no Acre, em meio ao seringal) e refazer sonhos. Maria fica aflita quando Terezinha sai e não avisa. ;Eu pergunto: ;Cadê Terezinha?;. Aí, a moça que trabalha aqui me diz: ;Foi ali;. Ela já caiu uma vez e não me contou nada. O mundo tá muito perigoso. Fico preocupada;, explica a zelosa mãe centenária. Terezinha tenta justificar: ;É que às vezes eu não vou demorar. E caí porque as calçadas estão cheias de buracos...;. Enquanto a filha octogenária não chega, o desassossego consome Maria. A mulher de cabelos brancos e corpo magrinho anda de um lado para o outro, espia pela janela, liga para uma neta, bisneta. Caça a filha nos quatros cantos. Terezinha não usa celular. E eis que Terezinha, serelepe, dá o ar da graça. Aliviada, Maria recebe a filha, mas não deixa barato. Ralha com ela: ;Como pode sair sem me dizer aonde vai? Já lhe disse que fico aflita!” Terezinha, como menina, tenta logo explicar. E logo a vida volta ao normal. Terezinha está sã e salva. Maria, então, corre para a saleta de televisão e assiste ao seu programa preferido: entrevistas com políticos e analistas na TV Senado. Por que não novelas? ;São muito bobas;, tasca ela. Terezinha, porém, gosta de novelas. As duas, na saleta, disputam a programação. ;Quando dou fé, ela muda de canal;, entrega a filha. Maria adora política. Dá conta de tudo que se passa no país. E tem exercido, com dignidade, o direito ao voto. Na eleição em que Lula disputou a presidência com Serra, ela estava lá. Fez questão de apertar a tecla da urna. Sabia de cor o número. ;Ele (Lula) pensou que pudesse governar sozinho. Agora, tá vendo o que é ser presidente. Fiquei um pouco decepcionada.; E Obama? ;Espero que ele acerte, que faça um bom governo. A eleição dele vai ajudar a diminuir preconceito com os negros;, ela responde, com firmeza impressionante. Terezinha, em vez de política, prefere fazer aulas de alongamento e musculação, no Clube Vizinhança. É pop toda! Aos 80 anos, parece ter bem menos. Depois da viuvez, vida difícil em função do problemas de alcoolismo do marido, as filhas e netas (teve seis filhos) insistiram para que ela se arrumasse mais. Voltasse a viver. Pintou os cabelos e procurou cuidar melhor do corpo. Também gosta de fazer seu tricozinho e crochê. Maria? Ah, minha gente, não sabe nem pra que rumo vai a agulha. Nunca foi chegada a esse tipo de trabalho. Maria é ;papo-cabeça;. Parada gay Maria tem vivido de acordo com o tempo. Católica praticante, devota de Santo Expedito ; santo das causas urgentes e impossíveis ;, às vezes se assusta com a evolução das coisas, mas não mais se choca. É capaz de entender, sem julgar. Quer uma prova? Há quatro anos, uma das netas da mulher centenária, Maria Tereza, 53, a levou para a Parada Gay de Brasília, na W3 Sul. Choque? Imagina! Maria achou tudo muito divertido. E lá estava ela, no meio do povo, tentando entender aquela festa. ;É moderno demais. A gente vai acostumando...;, repara. ;Vovó virou atração. Todos queriam tirar foto com ela;, conta a neta. A bisneta Marcela Magalhães Scafuto, psicóloga de 27 anos, emenda: ;Ela não julga ninguém, não critica. Tem uma visão linda da vida;. Terezinha é mais conservadora. Nunca se atreveu a tanto. Essa é um pouco da muita e longa história de Maria, que nasceu em Feijó, no Acre. Casou-se ainda muito menina, aos 15 anos, com Raul, homem que tinha o dobro da idade dela. Teve dois filhos. Em 1963, desembarcou em Brasília, com o marido. E daqui nunca mais saiu. ;Há alguns anos, voltei ao Acre. Tava muito diferente;, diz. O tempo passou. Aqui, Maria viu netos (13), bisnetos (20) e tataranetos (até agora 5) nascerem. Teve duas dores: a morte do marido e a do filho mais velho, José, que, se vivo estivesse, faria 82 anos. Mas ela decidiu que viveria. Foi morar com Terezinha. Virou hóspede da filha. E, juntas, as duas somaram vidas. Uma sente, no olhar, o que a outra sente. Às vezes, nem é preciso palavra. Na tarde de ontem, lá estavam elas, no mesmo apartamento, falando sobre a festa de aniversário de 100 anos (26 de agosto). Maria já avisou que não quer festa. Prefere uma coisa mais quietinha. As netas, deliberadamente, pela primeira vez, não lhe darão ouvidos. ;Ela merece uma grande comemoração;, reconhece Maria Tereza. Maria só espia a conversa. Pergunta indiscreta Maria decidiu que não quer mais caminhar pela quadra, como fazia até pouco tempo. Pergunto se ela anda meio cansada. Cansada? Maria olha para o interlocutor e responde: ;Não, é que o povo me para e pergunta a idade que tenho. Aí, quando respondia, todo mundo se espantava. Ninguém tem nada a ver com isso;, ela diz, dando boa risada. Tem mesmo não. Segredo para viver tanto? Maria não dá fórmula, mas deixa pista: come pouco, evita gordura e fritura, e dorme bem. Às 19h, pontualmente, já está cochilando. Mas também acorda cedo. E ralha, ralha muito com a filha quando acorda no meio da noite e a flagra fazendo tricô. Diz que, com a luz artificial, quase no escuro, pode prejudicar a visão da ;menina;. Com medo de levar mais bronca, Terezinha lhe obedece. Maria ralha, mas é de uma generosidade sem tamanho. ;Pra ela, dinheiro não tem valor. Tudo que é dela é para os outros;, entrega a bisneta Marcela. Maria ri, quietinha. Depois, baixinho, conta que ajudava muita creche. ;Mas agora, só estou com duas;, contabiliza. Na tarde de ontem, no meio daquele dilúvio que escureceu Brasília, Maria e Terezinha receberam o Correio. A mãe usava um vestidinho de algodão, desses que as avós gostam de usar. A filha, jovial, estava de bermuda e tamanco. As duas falaram da vida e do tanto que ainda querem viver. ;É tão duro viver, mas é bom. Todo dia se aprende alguma coisa nova;, reflete a mulher que em cinco meses completará 100 anos. Terezinha quer muitas aulas de musculação e alongamento. Quer dar muitas voltas. E quer mais. Viúva, passou a se lembrar, com saudade, de um rapaz que conheceu ainda muito menina, por volta dos 17 anos, em Fortaleza, quando naquela cidade estudava. Ela jura de pé junto que foi apenas um flerte, um namorico de adolescente. ;Ele se chamava Antônio e era do Piauí. Soube que se formou em engenharia. Nunca mais tive notícia dele;, diz, com os olhos perdidos. Maria Tereza, a filha, lhe prometeu procurar na internet (nessas páginas de relacionamento) por um certo ;Antônio, que morava numa pensão de nome Sobral, na Fortaleza dos anos 1940;. Terezinha arregalou os olhos. Empinou-se na cadeira. Maria, caladinha, escutou o bafafá e só espia a conversa. Então, tá. Enquanto Terezinha faz sonhos, é quase hora de Maria dobrar cuidadosamente a colcha da cama da filha. Ali, como deveria ser, os papéis nunca se inverteram. Aos 80 anos, ela ainda tem mãe. Mãe que cuida. Que privilégio, Terezinha!

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