postado em 22/03/2009 08:02
Goiânia ; A capital do país entrou na rota do tráfico internacional de seres humanos, servindo de porta de saída de prostitutas para a Europa. Desde que o Aeroporto Internacional Juscelino Kubitscheck, em Brasília, consolidou o oferecimento de voos regulares para Lisboa, as goianas, principais alvos dos aliciadores, usam o terminal como ponto de partida para o comércio do corpo em cidades de Portugal, Espanha, Bélgica e Suíça. São mulheres, às vezes adolescentes, que abandonam a família e o país de origem na esperança de voltarem ricas. Mas a realidade que encontram revela condições de vida duras e, em alguns casos, próximas da escravidão.
Durante três dias, o Correio se aprofundou no mundo do tráfico de brasileiras para o exterior. Uma equipe de reportagem viajou a Goiânia (GO), a 210km do Distrito Federal, e entrevistou autoridades locais e dois tipos de garotas de programas: as vítimas da exploração sexual na Europa e as assediadas por quadrilhas nas ruas da capital goiana. A outra dupla de repórter e fotógrafo ficou de plantão no Aeroporto JK. E ouviu histórias de mulheres mandadas de volta ao Brasil após arriscarem tudo para tentar faturar euros em prostíbulos do velho continente.
O tamanho do problema, agora com contribuição da capital do Brasil, pode ser medido pela atuação de duas divisões especializadas no combate ao crime no estado vizinho ao DF. Enquanto a Polícia Federal em Goiânia conta com a Delegacia de Imigração, o governo de Goiás investe recursos na Assessoria Especial para Assuntos Internacionais. A secretaria, criada em 2000, tem dados que revelam o estrago no estado. Cerca de 1,6 mil goianos acabaram deportados da Europa em 2008. Do total, cerca de 80% tiveram de sair por ordem das autoridades locais, sendo que 30% por causa da exploração sexual.
O chefe e criador da Assessoria Especial, Elie Chidiac, acredita que o problema se intensificou na Europa por conta da recente obrigatoriedade de visto para entrar no México. O continente europeu, assim, virou destino natural para garotas de programas convencidas a arriscar a sorte no exterior. Até alguns anos, as portas de saída se limitavam aos aeroportos do Rio de Janeiro e São Paulo (veja arte). ;Brasília talvez tenha se tornado uma das melhores saídas, pois conta com voos internacionais e fica próxima de Goiânia. Por trás disso, porém, há histórias de assassinatos e desaparecimentos;, afirmou.
Antes da alternativa da saída por Brasília, as goianas enfrentavam pelo menos uma viagem aérea doméstica para alcançar Portugal ou Espanha ; os dois países são os principais destinos das mulheres nascidas em Goiás e aliciadas pelos exploradores sexuais estrangeiros. Seguem agora de carro ou de ônibus pela BR-060 e chegam a Brasília em duas horas e meia. Ganham, então, uma chance a mais para escapar da fiscalização da Polícia Federal nos aeroportos brasileiros, já que algumas não conseguem nem mesmo embarcar.
Rejeitadas
Em média, quatro brasileiros voltam diariamente no voo Lisboa-Brasília separados dos demais passageiros. São extraditados, deportados ou inadmitidos ; rejeitados pelas autoridades portuguesas assim que desembarcam no país europeu, principalmente por não convencerem que desejam apenas fazer turismo. Dos quatro, três são mulheres. Delas, duas goianas. Poucas dizem ser prostitutas. Mas todas admitem terem atravessado o Oceano Atlântico com a intenção de trabalhar ilegalmente na Europa. De preferência na Espanha, onde está o maior número de prostitutas nascidas em Goiás.
No voo que partiu de Lisboa e desembarcou na tarde da última quinta-feira, havia uma moça deportada e duas inadmitidas. Estas deram entrevista, sob condição de não serem identificadas. Uma nasceu e mora em Santa Helena, cidade goiana de 35 mil habitantes distante 219km de Goiânia e mais de 400km de Brasília. A mulher de 40 anos e corpo em forma embarcou na rota Brasília-Lisboa de terça-feira, com 400 euros em espécie (cerca de R$ 1,2 mil), nenhum cartão de crédito ou cheque de viagem. ;As passagens foram pagas pelo meu namorado. Ele é português. Conheci em Goiânia;, disse, enfeitada com anéis e brincos dourados.
Desempregada, divorciada e sem nenhuma renda, a goiana disse não saber a profissão do tal namorado, nem quis falar o nome e a idade dele. Mas revelou a intenção da viagem: ficar na Europa mais que os três meses permitidos a um turista. ;Eu estive lá ano passado. Fiquei seis meses. Voltei há dois. Deu para trazer um bom dinheirinho;, contou. Ela, no entanto, não disse o que fez para trazer os euros. Mas garantiu não ter trabalhado em casa de família como babá ou doméstica. ;Não vou sair do meu país para lavar privada de gringo;, ressaltou.
Nova tentativa
Ainda no aeroporto, sem tomar banho há dois dias, fazia planos de embarcar para Europa novamente em no máximo 20 dias. Mas, desta vez, não para a terra do namorado. ;Vou para Paris, por São Paulo. É mais fácil entrar por lá;, comentou. Como sabe disso? ;Tem uma amiga minha de Santa Helena que faz isso há 10 anos e nunca foi pega pela polícia. Ela é prostituta em Barcelona. Fica seis, sete meses lá e volta para Goiás. Já tem três casas na nossa cidade;, contou. A amiga tem 34 anos e uma filha de 7, fruto de relacionamento com um espanhol. A menina mora com a avó, em Santa Helena. ;Ela teve a filha para conseguir cidadania (espanhola), mas não rolou. Então, largou o marido gringo;, completou.
A outra inadmitida ouvida pelo Correio mora em Governador Valadares (MG). Queria mudar para Lisboa e arrumar emprego lá. Para executar o plano, pagou R$ 2,8 mil pelas passagens Brasília-Lisboa-Brasília, R$ 1,2 mil para nove dias de hotel e ainda comprou 890 euros. Tudo para se passar por turista. O sonhou terminou na fila do desembarque do aeroporto de Lisboa. ;Acho que por eu ser mulher e estar viajando sozinha. Falaram que tinham certeza que eu queria ficar lá. Queria, mas não era para me prostituir como outras duas goianas que passaram a noite comigo detidas no aeroporto. Elas moravam em Madri e falaram. Voltariam em um voo para São Paulo, onde tinham embarcado;, contou a mineira.
Liderança
Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) ressalta a migração de mulheres no planeta e aponta a existência de cerca de 70 mil brasileiras trabalhando como prostitutas em países da América Latina, Europa, América do Norte e Japão. Segundo o levantamento, o tráfico para exploração sexual é uma das atividades ilegais mais lucrativas do mundo e só perde para o contrabando de armas e de drogas. No Brasil, Goiás ocupa o primeiro lugar na rota do tráfico internacional.
As investigações de tráfico de mulheres por meio do aeroporto de Brasília é feita pela Superintendência da PF em Goiânia porque a Delegacia Especial do terminal candango ainda não existe formalmente. Os 70 servidores da PF ; entre eles um delegado e 35 agentes ; na seção de emigração do aeroporto JK cuidam da burocracia de embarque e desembarque dos três voos internacionais regulares. Na área criminal, se preocupam mais com traficantes de drogas. Além de Lisboa, aeronaves ligam Brasília a Buenos Aires e Rosário, ambas cidades argentinas. O voo para Portugal é o único diário.