Cidades

Nordestina de 66 anos dribla todas as adversidades e revela-se artista

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postado em 25/03/2009 08:33 / atualizado em 13/10/2020 13:43

Quando a gente acha que já viu tudo, que já escutou quase todas as histórias e que muito provavelmente muito pouca coisa ainda seria capaz de emocionar ou surpreender, eis que num coreto no meio de uma quadra residencial da Asa Norte, uma mulher de cabelos brancos, sem uma perna e enxergando muito mal — ela só tem visão do olho esquerdo — paralisa a cena. Rouba o dia. Ao chegar perto dela e vê-la sorrindo, tocando aquela sanfona de metal é hora de repensar. Ainda há, sim, muita coisa para se contar. E as lições estão no meio da rua, num dia qualquer, numa hora improvável, num coreto com bancos azuis. E do instrumento que toca sai Luiz Gonzaga, com Assum Preto: “Tudo em vorta é só beleza, Sol de Abril e a mata em frô, mas Assum Preto, cego dos óio, num vendo a luz, ai, canta de dor (bis) Tarvez por ignorança Ou mardade das pió...” Ouça trecho da música "O Xote das Meninas", por Gracinha e sua Sanfona Ouça trecho da música "É Proibido Cochilar", por Gracinha e sua Sanfona Depois, ela arrasa com Você não me ensinou a te esquecer, de Fernando Mendes, ressuscitada por Caetano Veloso: “Agora, que faço eu da vida sem você? Você não me ensinou a te esquecer, você só me ensinou a te querer e te querendo eu vou tentando te encontrar...” Depois que termina, ela mesma se impressiona: “Essa música é linda demais...” Só resta aplaudir. E a melhor personagem desta história é uma mulher que se chama Maria Vieira da Silva. Pelo menos esse é o seu nome de batismo. O que está escrito na certidão de nascimento. Maria o quê? Ninguém nunca a chamou de Maria. Uma tia, que a criou, bateu pé. Ralhou. E sacramentou: “O nome dela é Gracinha”. E assim, em Floriano, no Piauí, cresceu a menina que nasceu quase cega do olho esquerdo. Zé Manduca, marido da tia, era mestre de obras. Das mãos calejadas do tio, vinha a música. Ele tocava contrabaixo, clarineta e saxofone. Era um homem elegante. Aprendera tudo sozinho. A menina cresceu vendo e ouvindo aquele homem elegante tocar. E inevitavelmente se apaixonou pela música. A menina sempre soube o que era bom. Um dia, o tio lhe deu uma gaita de boca. Sem nunca ter estudado, a menina desembestou-se a tocar. Aos 7 anos, ele lhe deu mais um presente: uma sanfona 4 baixo de botão (bem rudimentar). E mais uma vez, sem nunca ter visto uma nota musical, ela começou a tocar. E nunca mais parou. Faz 59 anos que ela fez da música a sua única razão de viver. E não é nenhum exagero afirmar isso. “Quando eu toco, esqueço de tudo, até do tempo. Esqueço de mim mesma. Hoje, eu vejo que a música me salvou”. Ainda menina, aos 10 anos, em companhia do tio tocador, Gracinha correu a redondeza do Piauí. Não houve um pedaço de chão onde ela não tivesse chegado. “A gente ia num lombo dos jumentos pelos interiores. Tocava em fazendas, festejos de igreja. Onde tinha uma festa, lá tava nós (sic)” , ela conta. Bonecas nunca fizeram parte do imaginário da menina. “Nunca gostei. Brincava de brincadeira de menino. Gostava de brincar de revólver”, lembra. A sanfona, cada vez mais presente, deixou de ser apenas o instrumento que usava nos finais de semana. Era o alimento que a saciava. “Eu ficava esperando o dia da festa pra tocar minha sanfona. E Gracinha cresceu. Chegou aos 18 anos. “Foi quando virei sanfoneira de verdade”, ela diz. Cresceu e ninguém nunca mais a segurou. Com o instrumento agarrado ao peito, ela virou o Piauí do avesso. E todo ali passou a conhecer a Gracinha sanfoneira, a moça que tocava Luiz Gonzaga como só Luiz Gonzaga sabia. Passaram-se muitos anos. Os irmãos mais velhos de Gracinha (ela teve 11 — seis mulheres e cinco homens) ouviram falar que “uma tal de Brasília” iria virar a capital do país. Os rapazes não pensaram duas vezes. Deixaram o Piauí e partiram. Aqui, no começo de tudo, viraram operários, marceneiros, alfaiates. Lá em Floriano, Gracinha continuava tocando sua sanfona. E encantando o povo da região. “Vixe, Maria, toquei até em cabaré”, ela ri. A mudança Em 18 de janeiro de 1970, a sanfoneira também deixou o Piauí. Os tios — a mulher que lhe deu o nome de Gracinha e o homem que lhe apresentou o melhor da vida — haviam morrido. Na mala, pouca coisa. Gracinha nunca foi mulher vaidosa. Nunca furou orelha nem usou colar. “Vaidade mesmo eu só tenho uma: fazer as unhas a cada 15 dias”, conta. E a moça de Floriano, então com 27 anos, desembarcou em Brasília. Veio morar com uma irmã, professora, em Sobradinho. “Nos primeiros dias, achei a cidade ruim. Era muito diferente do Piauí. Mas o tempo foi passando, e eu me acostumando.” Ali, Gracinha começou a fazer a única coisa que sabia. E tocou sua sanfona em festas juninas de escola, em aniversários, churrascos, batizados, casamento. Os convites nunca pararam de chegar. As pessoas começaram a ouvir falar daquela moça que hipnotizava com o som que tirava daquele instrumento. “O povo dançava até o dia amanhecer”, ela vibra. E o nome dela agora estava completo: Gracinha sanfoneira. Um dia, em 1984, um acidente mudaria sua vida. Ela desceu de um ônibus e, por trás dele, foi tentar atravessar a rua. Atropelaram-na na hora. No hospital, o médico constatou que ela havia fraturado a perna direita. Engessou-a. Gracinha reclamou de dores. “O médico me dizia: ‘toma um remédio que passa’. A dor só piorava. Quando voltei pro hospital, minha perna tava toda preta. O jeito foi amputar”, ela conta. E pela primeira vez durante a conversa deixa transparecer um fiapinho de melancolia: “Chorei muito tempo, mas depois resolvi que ia tocar minha sanfona e ser feliz”. E Gracinha fez um pacto com a felicidade. Mudou de Sobradinho, morou na Vila Planalto e há quase duas décadas vive na 314 Norte. Ainda em companhia da irmã, hoje professora aposentada. Na quadra, aos poucos, foi tocando sua sanfona. Começou debaixo do bloco, depois no parquinho e descobriu o coreto. Toca forró pé de serra, bolero, tango, seresta, valsa até pagode. Aos poucos, conquistou a simpatia dos moradores do bloco E, onde mora. Cena comum é ouvir, depois de uma música, alguém batendo palma da janela de algum bloco da quadra. Timidamente, ela agradece. E toca, toca como se tocasse a vida. O porteiro João de Deus Alves, de 48 anos e há 22 no bloco onde a sanfoneira mora, elogia: “Ela toca muito bem. O pessoal adora”. A faxineira do prédio, Maria Angélica da Silva, 51, emenda: “Teve uma festa no salão daqui e um morador chamou ela pra tocar. Dona Gracinha é uma pessoa muito feliz”. O jornalista Flávio Linhares, 68, morador, se comove: “Ela é um exemplo de vida”. CD e prêmio E, andando de muletas, Gracinha voou. Em 2004, ela foi à Vila de São Jorge, na Chapada dos Veadeiros (GO), para participar de um encontro de cultura da região. Ali, conheceu uns jovens músicos de Brasília. A amizade e a afinidade foram imediatas. Há cinco anos, ela e os três músicos formaram A Banda de dona Gracinha. Tem sanfona, triângulo, violão e zabumba. O quarteto já se apresentou diversas vezes em cafés e restaurantes de Brasília. Gracinha é aplaudida de pé. O músico profissional Flávio Leão, 34, que toca zabumba no grupo, fala com emoção: “Ela é uma musicista nata. Nos surpreendeu. A alegria dela emociona e contagia as pessoas. Encontrá-la em São Jorge foi, pra mim, um momento de felicidade”. E o encontro rendeu façanhas à sanfoneira. Ano passado, ela recebeu uma homenagem do governo do Piauí e, no Ministério da Cultura, foi agraciada com o prêmio Humberto de Maracanã — Mestre de Cultura Popular e Tradicional. Levou para casa R$ 10 mil. E, para completar, ela e seus músicos estão se preparando para gravar um CD. O primeiro trabalho da sanfoneira, aos 66 anos de vida. O CD, com apoio do Fundo de Apoio à Cultura (FAC), da Secretaria de Cultura do GDF, ficará pronto em junho. O nome do álbum? Dona Gracinha. Nada mais justo. “Amanhã (hoje), a gente vai ensaiar, no Sudoeste”, diz, ela, orgulhosíssima, com fôlego de menina. Gracinha é uma dessas mulheres que vale a pena conhecer, sobretudo se for num dia improvável, quando tudo parece não ter foco. No fim da entrevista, pergunto — depois de me contar que na vida dela não há espaço para a tristeza, que amou e se casou com sua sanfona e que nasceu pra tocar — se alguma coisa lhe dá medo. Com honestidade comovente, ela responde: “Não, nem da morte. Aliás, quando eu morrer, quero levar uma caixa de cerveja e minha sanfona. Vou fazer uma festa danada lá em cima. Mas não coloca isso aí, não. Minha irmã é crente e não vai gostar dessa parte da cervejinha....” Bobagem, Gracinha. Joana não vai ralhar, não. Ela deve ter um orgulho incontido de você. Vale a pena Quer um pouquinho da sanfona de Gracinha? Falar com Flávio Leão — 8183-2882

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