Cidades

Coral e Orquestra dos Meninos de Itapoã deu um novo sentido à vida de 250 crianças

;

postado em 28/03/2009 08:00
Era uma vez um menino pobre do Gama que um dia, aos 8 anos, se encontrou com a música. O pai, um operador de trator, e a mãe dona de casa colocaram-no numa escola pública. Lá, por meio de um projeto social, ele conheceu um violão. Depois, deram-lhe uma flauta doce e um trambone para tocar. E fez dos sons que saíam daqueles instrumentos sua nave espacial para voar dali. Um dia, o menino cresceu. Virou homem. Casou-se. Planeja ter filhos. Formou-se na Escola de Música. Fez curso de extensão na Universidade de Brasília. E ninguém nunca mais o segurou. Há um ano e seis meses, ainda inebriado com a ideia de mudar o mundo, aterrissou num lugar onde falta quase tudo. Só não a vontade de sonhar. [VIDEO1] E lá, no meio de meninos e meninas tão carentes como um dia foi, o homem levou o desejo de transformar. Num lugar onde asfalto ainda é luxo, o violino e a flauta chegaram para mudar a rotina e a perspectiva daquela gente. Numa ruela feia, cheia de barro e lama depois da chuva, de repente se ouve o som de um violino. É inacreditável. a música paralisa. É um menino, que acabou de completar 10 anos. Ele aprendeu a tocar violino pelas mãos daquele homem que um dia, como ele, quis voar. O visionário maestro Júlio ensaia com os alunos na Escola Classe 1, a única da ex-invasãoQuinta-feira, 15h30, tarde chuvosa em Itapoã, a 30km de Brasília. A ex-invasão, que começou a existir há 8 anos e hoje tem perto de 100 mil habitantes, virou cidade em 2005. É lá que o maestro Júlio César Pereira Angelo, de 33 anos, o menino pobre do Gama, foi fazer sonho virar realidade. E fundou, em 2007, o Coral e Orquestra dos Meninos de Itapoã. São 250 crianças, com idades que variam de 7 a 16 anos. O projeto, uma parceria da única escola pública do lugar com a administração regional e parceiros (todos os instrumentos são doados), mudou a história da ex-invasão. ;Uma vez um aluno me disse: ;Professor, você tirou o cigarro da minha boca e colocou uma flauta;. Isso é muito gratificante. Foi por isso que insisti nesse projeto;, conta Júlio. E assim, todos os dias logo cedo, o maestro deixa o Gama, viaja 65km até Itapoã (ele é contratado pela assessoria de cultura da regional) e leva fantasia àquelas crianças que o esperam na Escola Classe 1, a única da cidade. Ali, naquele lugar com instalações muito modestas, a música invade o espaço. A diretora da escola, Sihami Mudarra, 37, moradora do Condomínio Entrelagos, ao lado de Itapoã, abraçou a causa como catarse. ;Alunos que eram problemáticos hoje viraram destaque. Melhorou a autoestima, o foco, o comportamento;, constata Sihami. O projeto teve uma repercussão tão maravilhosamente desvastadora na cidade que foi preciso estendê-lo a crianças que não estudam na escola, mas moram na comunidade. ;Todo dia tem um pai aqui procurando vaga;, comemora a diretora. E hoje, filhos de garis, pedreiros, faxineiros, rodoviários, mecânicos, domésticas falam de música. Tocam, cantam. Escancaram a voz. E faz o pai de um deles, o servente de pedreiro Waldemar Barbosa, 34, chorar toda vez que Rafael, 9, toca violino numa apresentação. ;É lindo demais. Quando é que eu um dia ia pensar que meu filho fosse dar pra isso? indaga o homem, comovido como menino. Letícia e Vinícius estão desde o início do coral: transformação de vidaE olha que não faltaram apresentações. Desde que foi criado, o grupo já cantou e tocou em mais de 40 eventos. No aniversário da cidade, em outubro do ano passado, estiveram ao lado do genial Artur Moreira Lima, numa tenda armada na entrada de Itapoã. O pianista se encantou com aquelas crianças e a história do projeto. Na flauta e violino, todos vestidos com o uniforme de festa do coral, tocaram Asa Branca para o mestre. E arrancaram aplausos e lágrimas daquela gente tão carente que assistia, pela primeira vez, a um concerto. O servente Waldemar, mais uma vez, não segurou o choro. O mirradinho Rafael, no palco, era seu maior orgulho. Módulos Para dar conta de 250 crianças, o maestro Júlio dividiu os alunos em seis grupos. Três vezes por semana, durante duas horas, no pátio da Escola Classe 1, a música inebria todos os sentidos. Aos sábados, é a vez do grande ensaio, com todos reunidos. Os pais acompanham. Itapoã até esquece suas tragédias. Esquece a miséria, a violência e o céu sempre avermelhado pela poeira das ruas ainda sem asfalto. Os meninos começaram com aulas de canto ; musicalização por meio da flauta. Num segundo estágio, chegaram à alfabetização musical (hora de aprender a ler partituras). Estão agora no módulo chamado música de câmara (oficinas musicas). A quarta e última etapa é a formação da orquestra, que tem como objetivo profissionalizar os alunos. ;Em torno de 30% deles podem virar músicos de verdade;, calcula o maestro. E logo comemora: ;Se alguns a gente conseguir livrar dos caminhos errados e mesmo que apenas um deles faça da música sua carreira profissional já terá valido a pena;. Se Júlio torce, o pequeno Vinícius Oliveira Mendes, 10, que toca violino no meio da rua, tem certeza de que o futuro está mais claro. ;Vou ser bombeiro. Soube que lá tem uma orquestra. Vou ser bombeiro e músico.; A mãe de Vinícius, Maurivânia Oliveira Moreira, 30, percebe em casa a transformação do filho: ;Ele mudou muito. Ficou até mais carinhoso e atencioso;. E agradece ao maestro pela modificação do garoto: ;Ele não só ensina música. Ele diz o que é certo, mostra o caminho do bem para as crianças. Às vezes, acho que meu filho tá vivendo um sonho...; ;Sem fazer nada; Vinícius mudou. Aos 10 anos, faz planos de gente grande. Letícia Albuquerque, 12, também quer um futuro melhor. ;Antes, eu ia pra escola e no resto do tempo não fazia nada. Agora, eu canto, toco flauta e violino. Acho que quero ser música (sic), me apresentar em teatros, numa orquestra bem grande;, ela sonha. ;E o que eu sinto quando toco? Uma harmonia incrível. É como se eu voasse, saísse daqui;, sente a menina, filha de um mestre de obras e uma diarista. O professor Júlio chama seus alunos. Pega o violão. As crianças, seus violinos e suas flautas. A rua sem asfalto lota. O povo para. Aquilo é mágico e fascinante para aquela gente. Na frente da escola, eles tocam Asa Branca, de Luiz Gonzaga. Depois, Amigo, de Roberto e Erasmo Carlos. E arrasam em Cai, cai balão. Sihami, a diretora, se comove: ;Eu choro em toda apresentação. Esse coral, hoje, é o maior espelho da nossa escola. Crianças carentes de tudo hoje tocam como gente grande. Estou realizada profissionalmente;. Júlio, o maestro visionário, admite, com a voz embargada. ;Eu choro nos ensaios, nas apresentações. Choro sempre. Vejo em cada um deles a minha própria história;. E num desabafo mais que comovente, ele diz por que está, afinal, ali: ;Meu sonho não era tocar em orquestra do Teatro Nacional. Eu queria mesmo era dar a essas crianças carentes a chance que um dia, lá no Gama, tive na vida. Sou fruto de um projeto social como esse que hoje tô à frente. É a prova de que tudo pode ser possível;. Tão possível que em agosto, quando o coral completa dois anos, será lançado o primeiro CD do grupo. O repertório terá música clássica, MPB, cantos infantis e sertanejo. Em Itapoã, a vida é dura. Os caminhos lembram labirintos. A cidade parece não ter fim. Mas é feita de concreto, aquela gente. O asfalto, quando chega (e tem chegado aos poucos), é motivo de alegria. Vira festa. A cidade quer tomar rumo. Sair do noticiário quase sempre das páginas policiais. E, numa escola acanhada, a única do lugar, 250 crianças inventaram de cantar e tocar flauta e violino. A música venceu. Os violinos e as flautas daqueles pequenos artistas enfeitiçaram seus moradores. Essa é uma grande história. POR UM SONHO Quer marcar uma apresentação com o coral dos meninos de Itapoã? Ligue para o maestro Júlio ; 8571-2262 Veja: Videorreportagem sobre o assunto

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação