Cidades

Ivan, o andarilho-jardineiro, constrói jardim em gramado da 307 Sul

Ele conta histórias delirantes, mas planta arbustos e flores de verdade. Depois, pendura nelas objetos coloridos. Tudo para controlar a ansiedade e ;humanizar a estupidez;

postado em 03/04/2009 08:00
É para driblar a ansiedade que Ivan da Cunha, carioca, 57 anos, quixotescamente magro e inquieto, constrói um jardim de plantas naturais enfeitadas com peças de plástico, de metal, de papel que o lixo lhe oferece em sua vida de morador de rua. Ivan entremeia natureza e objetos, realidade e delírio no seu errático viver. O andarilho-jardineiro começou a criar seu jardim há pouco mais de um mês, ao lado do Bloco K e em frente ao Bloco J da SQS 307. Tem por ferramenta apenas uma pá de pedreiro, presente de um motorista de táxi do ponto ao lado. Acocora-se na grama e vai retirando entulhos (;isto aqui estava feio demais;) e abrindo pequenas covas com as mãos de dedos longos e ossudos. Ivan da Cunha o: ;espero Fernando Henrique Cardoso, meu vovô, me buscar;Retira mudas de jardins abandonados nas proximidades e monta o seu próprio paraíso verde. A verdejante monotonia o intriga. ;Está tudo muito verde. Está faltando cor. Isso aqui estava muito sem graça.; Ivan trouxe então a policromia: pegou tampas coloridas de garrafas pets e fez delas botões de flor. Embalagens vazias de amaciante, por exemplo, se transformaram em flores penduradas na ponta de um galho. ;A cor anima o estado de espírito, humaniza a estupidez;, diz com surpreendente fluência de vocabulário. ;Faço isso pra passar o tempo, pra não ficar muito ansioso, enquanto espero Fernando Henrique Cardoso, meu vovô, vir me buscar. Ele vem com minhas irmãs Gisele Bündchen, Celine Dion e Juliana Paes. Vamos para Toronto, no Canadá, Celine tem uma propriedade lá. Eles vão me trazer um belo par de tênis, roupa limpa, mas antes vou ter de tomar um banho de sabonete.; Pedaços da vida Há uma coerência interna no delírio de Ivan. Ele repete a mesma história diversas vezes para quem se dispuser a ouvir. Em alguns momentos, conta pedaços de sua vida que parecem estar conectados com a realidade. Diz que nasceu no Rio de Janeiro quando ainda se chamava Estado da Guanabara, que morou em Laranjeiras. O sotaque carioca é a prova de que Ivan não vive apenas na imensidão da fantasia. Conta que teve mãe, mas não teve ;papai humano;. Que tem duas irmãs ;de carne e osso;, Rosinha e Teresinha, ;mais as três outras que eu não sabia (Gisele, Celina e Juliana), as celebridades;. Que já foi operador de máquina, servente de pedreiro e vigilante. Que veio de Vilhena, Rondônia, ;a dois mil quilômetros daqui;. Que conhece a América Central (;Nicarágua, Guatemala, Costa Rica, Panamá, El Salvador;). Diz que não entrou no México porque ;a imigração não deixou;, mas que agora vai à Polícia Federal providenciar o passaporte ;com uma foto cinco por sete;. De Toronto vai para Tóquio e Bagdá, ele, o vovô e as três irmãs. Esta não é a primeira vez que Ivan constrói jardins na 307 Sul. Há cinco anos, ele esteve por lá, conta o motorista de táxi José Mendonça, 71 anos, 37 de praça, 26 no mesmo ponto. ;Fez um jardim, só que, coitado, era época de seca, mas mesmo assim ele fez. Agora voltou e do mesmo jeitinho, não ficou nem um pouquinho mais velho;. Da vez anterior, Ivan não falava do vovô ilustre. Mas contava que Deus estava ;umbicando o planeta;. (Nem o Houaiss nem o Aurélio registram o verbo ;umbicar;. O que mais se aproxima, foneticamente, é ;imbicar;, dar rumo certo, dirigir). Ivan continua crente que Nosso Senhor está umbicando a Terra, o que significa ;levando para baixo tudo o que não presta, ladrão, traficante, assaltante;. Ele conta que, dia desses, um adolescente se sentou ao lado dele, no banquinho do seu jardim, e perguntou se ele ;não tinha um bagulho pra vender;. Ivan lembra o episódio com alguma indignação. Diz que as únicas coisas de errado que faz são fumar (;cigarro de palha porque não tem nicotina;) e tomar café. Que já bebeu cerveja, mas hoje quer distância. Moradores solidários Passava pouco das 11h, quando uma moradora da quadra trouxe para Ivan, na volta do supermercado, dois sacos plásticos: um com metade de um frango assado e outro com uma garrafa de iogurte de morango. Ana Luiza Rodrigues diz que ela e o marido se encantaram quando, num passeio de fim de tarde pela quadra, viram o cuidado com que Ivan põe tampinhas coloridas de garrafas sobre as pedras que delimitam um dos jardins. ;Que capricho! Que delicadeza a dele;, ela diz. ;Ele é muito carinhoso. Fica na chuva cuidando das plantas.; Outra moradora, Walkyria Oliveira, 81 anos, 47 morando em Brasília, na mesma quadra, traz um saco plástico com pães. Conta que todos os dias passa por ali e leva algo para Ivan comer. ;Ele alimenta os passarinhos.; Ivan agradece e comenta, depois que dona Walkyria sai: ;Comer não é problema. Recebo a solidariedade dos moradores dos edifícios. Já fiz muitas amizades. Se as pessoas estão gostando de mim, isso é muito bom;. Ivan divide o mundo entre o bem e o mal, Deus e ;aquele; (Ivan pronuncia o nome Lúcifer só uma vez e com uma expressão de repulsa). O jardineiro das flores de tampa de garrafa diz que, quando Nosso Senhor umbicou o mundo, separou os bons dos maus, porque ;esse progresso todo, carro, moto, micro-ondas, amaciante de roupa, não serve para nada. A responsabilidade é pessoal. Ninguém é julgado pela cabeça de ninguém;. Avisa que, depois que Deus umbicou o mundo, ;só vai cair quem estiver com perfume podre por dentro;. O ;Chifrudo; o impediu de ter filhos de carne e osso. ;Ele estava me roubando, mas Nosso Senhor mandou me pagar. Me deu uma linda mulher e cinco filhos, três meninas e dois meninos; ; todos em outro plano, o imaterial. E sorri sorriso de plenitude. A essa hora, se não for tarde da noite, Ivan está plantando flores de verdade e de mentira no seu jardim.

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