Cidades

Uma costureira e uma cabeleireira vivem Nossa Senhora e Madalena no Morro da Capelinha



postado em 10/04/2009 08:10
O encontro foi marcado na Praça do Calvário. Lá, o tempo pararia. Uma mulher de olhos comoventemente verdes e uma moça de longos e negros cabelos nos esperam. Estão vestidas como se vivessem há dois mil anos. A de olhos verdes e voz de veludo se chama Maria de Lourdes Maciel, tem 59 anos. A outra, Damiana Alves da Silva, 34. Hoje, daqui a pouco, a primeira se transformará em Maria, a mãe de Jesus. A segunda virará Maria Madalena, a prostituta que escapou do apedrejamento. E, numa verdadeira catarse, o maior espetáculo teatral a céu aberto do DF ; que espera receber mais de 150 mil pessoas ; começará. Quarta-feira, 11h10. A chuva deu pequena trégua. O céu ficou um bocadinho azul. No Morro da Capelinha, em Planaltina, são feitos os últimos retoques para a maior festa de fé daquela cidade. No topo daquele morro, a 1,2 mil metros de altura, Maria e Damiana contam suas vidas. Ouvi-las é como repensar a vida. É entender como a fé pode até ressuscitar. ;Eu choro até quando tô na sala de costura, preparando mais um túnica;, admite Maria, nesse exato momento em lágrimas. Há 19 anos, ela voltou à via-sacra e assumiu todo o figurino e a costura geral da encenação. Damiana e Maria de Lourdes ajudarão a contar o sofrimento de Jesus, interpretado por Saulo HumbertoDamiana, a Madalena, também se emociona. ;A gente chora de verdade mesmo. Não estamos apenas representado um papel. É lágrima de fé;, revela a moça de graúdos e expressivos olhos pretos. No alto do morro, a conversa continua. Em alguns momentos, a paisagem, o silêncio e a roupa das mulheres remetem a uma data que não é a atual. É uma viagem no tempo. Hoje, esse mesmo lugar será invadido por uma multidão ávida por qualquer coisa. Seja ela qual for. ;As pessoas vêm em busca de algo. Vêm pela fé, pela angústia, pela penitência...;, explica Maria. Damiana sabe bem o que é ser perdoada: ;Jesus acolheu verdadeiramente Madalena. Ele perdoou os pecados dela. E ela foi com Ele até os últimos momentos;. Maria confirma: ;No sofrimento do filho, Nossa Senhora foi amparada o tempo inteiro por Madalena e João;. E clama pela iluminação divina: ;Quem nos comanda é a força de Cristo. É nela que todos nós, depois de amanhã (hoje), nos apegaremos;. Será essa a força que norteará os 1,4 mil participantes (entre atores, produtores, diretores e pessoal de apoio) da via-sacra. Da costura à Nossa Senhora Maria, a mãe do Jesus de Planaltina, nasceu na roça. Filha de agricultores católicos, desde menina aprendeu a religião em casa. ;Minha família é muito humilde, mas sempre foi devota. Minha mãe me ensinou as rezas e ladainhas;, ela conta. Maria se casou. Mudou-se para Planaltina. E continuou dona de casa, costureira e mãe dedicada. Em 1974, grávida do quarto filho (Vanderson Francisco, hoje com 34 anos e um dos diretores de encenação), Maria participou, pela primeira vez, da via-sacra. Fazia parte do grupo de música, responsável pelas canções do espetáculo. E se lembra bem daquele 1974. ;Esse morro era terra e pedra. Um jipe, com megafone, levava a música. Muito diferente desse superespetáculo de hoje;, compara. O quarto filho de Maria nasceu. O quinto ; e último ;, depois. Maria se afastou da via-sacra. Dedicou-se apenas à família e ao marido. Sabia das histórias da encenação contadas pelos filhos, que já faziam parte. Há 19 anos, porém, o casamento de Maria chegou ao fim. Um dos diretores a convidou para voltar. Ela aceitou ser costureira do evento. Há quase duas décadas, todas as roupas do elenco são confeccionadas pela equipe que coordena. Um belo dia, há 4 anos, o maior desafio de sua vida: viraria Maria, a mãe de Deus. A costureira gelou. ;É muito pra mim;, penou. Depois, rezou. Sua fé dizia que ela poderia fazer aquele papel. E fez. ;Eu acredito na direção de Deus. Tudo tem seu tempo;, reflete. Vestida como Nossa Senhora, a mulher de sensíveis olhos verdes e olhar profundamente maternal encarnou o papel com uma dignidade que impressiona as pessoas. ;Quando eu tô atuando, não consigo nem ver a multidão. Não me sinto pessoa. Me concentro apenas na dor de Maria, no sofrimento da Virgem Mãe;, explica. Longe da via-sacra, comumente é chamada pelas ruas de ;Nossa Senhora;. Durante as mais de três horas de espetáculo, Maria de Lourdes sofre e chora várias vezes. ;O momento mais difícil é na quarta estação, quando Maria vai ao encontro de Jesus. Eu choro muito nessa hora. Aí, sou amparada pelo apóstolo João e pela Madalena.; Nas quedas de Jesus, Maria novamente vai às lágrimas. ;A primeira queda, na sétima estação, e a segunda, na nona, são muito dolorosas. Tenho vontade de ajudar meu filho a sair dali;, ela continua, como se fosse a própria Maria. E a redenção, ao pé do calvário: ;É quando o anjo da ressurreição vem anunciar que Jesus não está mais ali;. Maria de Lourdes fala e seus olhos verdes não disfarçam a emoção. Do alto do morro, a paisagem se torna majestosa. Escuta-se o som de Deus. De povo a Madalena Damiana tem um sonho: estudar faculdade de artes. Menina pobre, cedo aprendeu que a vida é feita de luta. Filha de uma dona de casa e um jardineiro, a moça que mora na Vila Roriz terminou o ensino médio. Descobriu que sonhos só se realizam com esforço. Enquanto a faculdade não chega, ela virou cabeleireira. Abriu um pequeno salão e ali toca sua vida. Há 8 anos, católica praticante, separada do marido, sem filhos, ela participou pela primeira vez da via-sacra. Fazia parte do povo ; a multidão que grita ensandecidamente para que Cristo seja condenado. O povo prefere Barrabás, o ladrão. No ano seguinte, Damiana virou anjo. E, numa bela tarde, num dia como hoje, em meio a mais uma apresentação, veio o convite de um dos diretores. Ela seria, no ano seguinte, entre toda aquela gente, a nova Madalena. ;Eu nunca esperei que isso fosse acontecer;, espanta-se, até hoje, a moça de longos e lisos cabelos negros. Mas ela se agarrou ao papel com unhas e dentes. E chora de verdade, como se Madalena fosse. ;É tudo muito intenso. E cada um de nós tem uma grande responsabilidade. É a vida de Cristo;, avalia. No meio da conversa, ainda em cima do morro, chega Jesus. De calça jeans e camiseta, Saulo Humberto Soares, de 35 anos, casado, dois filhos (Isac, 7, e Maria Luísa, 2), há 7 é Cristo. O professor de ciências naturais de duas escolas públicas de Planaltina abraça Maria de Lourdes. Pede sua bênção. E pergunta à reportagem: ;Como falar de uma flor? Nem imagino fazer o papel sem ela;. Maria, mais uma vez, chora. Saulo continua: ;Em 1991, perdi minha mãe. Vim pela primeira vez à via-sacra, só pra assistir. Fiquei emocionado. No ano seguinte, era um dos soldados. Depois, Tomé, João, fiz direção e hoje sou Jesus;. Ao lado de sua ;mãe;, ele faz um desabafo comovido: ;Dona Lourdes me lembra a minha mãe em tudo. Antes de abrir a boca, ela já sabe o que tô sentindo;. Maria o abraça e deixa as lágrimas caírem. Saulo mareja os olhos. Madalena assiste a tudo, igualmente emocionada. Hoje, a partir das 15h ; faça chuva ou sol ;, o Morro da Capelinha receberá uma multidão. Gente de todos os lugares do DF, do Entorno e de outros estados. Uma gente em busca de fé. De um espetáculo inesquecível. No meio de todo aquele povo, duas mulheres amparam o sofrimento de um homem que se tornou o Salvador. Uma o pariu. A outra foi salva pela misericórdia Dele. Ele ensinou a ela e ao mundo o sentido do perdão e da aceitação. Agradecida, ela o acompanhou até o último suspiro, no pé da cruz. ;É muito lindo;, encanta-se Madalena. Maria, a mãe, inquieta-se: ;Quando chega o dia, não como nem durmo direito;. Saulo já se acostumou com os 3kg que vai perder hoje, quando morrerá como Cristo. ;Mas tudo compensa;, ele aposta. Maria vai chorar de verdade. Madalena a seguirá, acreditando cada dia mais na transformação do ser humano. O maior espetáculo de fé e catarse humana do DF vai começar. Se eu fosse você, não perderia.

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