Cidades

Teatro, magia e fé no maior espetáculo católico do DF

Mais de 100 mil pessoas passaram ontem pelo Morro da Capelinha. Fiéis se emocionaram diante do sofrimento de Cristo rumo ao calvário

postado em 11/04/2009 08:07
O céu escureceu em Planaltina. A tarde, por alguns instantes, virou noite. Mas logo as nuvens se esconderam. E o sol, que nem era tão esperado, surgiu. A multidão aos poucos foi chegando. Mais de 100 mil passaram por lá ao longo de todo o dia. O Morro da Capelinha se transformou em Jerusalém. E Jesus foi julgado e condenado. Morreu e subiu aos céus no terceiro dia. Esse é o maior espetáculo de fé daquela cidade. E carregou gente de muito longe para assistir à via-crúcis do filho de Deus. Jacinta Lopes Andrade, de 76 anos, deixou Monte Alegre (GO), a 350km de Brasília, para agradecer bênçãos. ;Eu tenho fé. E tô aqui hoje para exaltar Deus;, ela diz, vestida numa camiseta de malha com o rosto de Nossa Senhora Aparecida estampado. Entrelaçado nas mãos, um terço de madeira. Visivelmente emocionada, ela contou: ;Tive câncer de útero e duas paradas cardíacas na cirurgia. Fiquei em coma. Fui desenganada pelos médicos. Ninguém dava nada pela minha vida. Mas eu sobrevivi. Fiz quimio e radioterapia. Hoje, quero dizer a Deus que foi Ele quem me curou. Isso pra mim foi um milagre;. E a mulher subiu o morro, a passos calmos e firmes. Não demonstrou cansaço. Bateu pé: ;Só saio daqui quando Ele ressuscitar;. Momento mais esperado: ressurreição de Jesus arrancou lágrimas da multidãoJacinta desapareceu no meio da multidão. E mais gente veio atrás. De Taguatinga, uma família inteira. Carregando três cadeiras plásticas, o advogado Geraldo Magela, 37, atravessou Brasília inteira para chegar ao Morro da Capelinha. Mas na tarde de ontem, depois de 15 anos sem ir ali, havia um motivo especial. Ele trouxe a mãe, Lúcia Onives, 66, a irmã, Sônia, 39, e Bárbara, sua sobrinha. A mãe de Geraldo enfrenta um delicado problema de visão. Ainda assim, enxergando muito pouco, a dona de casa foi em busca de cura. ;Minha fé é enorme. Eu vou ficar boa;, ela garante. Sônia, a filha de Lúcia, só quis agradecer. ;A conquista da minha casa própria. A coisa pela qual mais lutei na vida;, comemora a servidora púbica. Geraldo, Lúcia, Sônia e a pequena Bárbara também desapareceram no meio do povo. Era a vez de Luzia Maria da Rocha, de 66 anos, subir. Cansada, sentou-se no chão, ao lado do Palácio de Pôncio Pilatos. ;Vim de Ceilândia, de ônibus. Gastei uma hora e meia. Esse é o quarto ano que venho e, enquanto vida e saúde eu tiver, estarei aqui. Isso me alimenta de esperança. Vale qualquer sacrifício;, ela se extasia. Mas, precavida, a piauiense de Parnaíba levou uma sacola plástica com água, refrigerante e beju. ;É pra aguentar o tempo que for necessário aqui;, explica, cheia de fé. Em uma das estações, Jesus recebe a coroa de espinhosRefeita do cansaço, Luzia Maria também desapareceu. Subiu para pegar um bom lugar na Praça do Calvário, onde Jesus morre e ressuscita. E lá se vêm a dona de casa Euda Cardoso, 37, o motorista Antonino Ribeiro, 44, e os filhos deles, Alice, 9, e Alisson, 16. De quebra, Antonino ainda trouxe um sobrinho, Wagner, 17. E a viagem foi longa para chegar a Planaltina. A família saiu de Valparaíso (GO), dirigiu mais de 80km para ver o espetáculo que tanto desejava. ;É a primeira vez que a gente vem. Não dá nem pra explicar a emoção. Acho que vai difícil é não vir mais;, diz o motorista. Rei dos Judeus Passava das 16h30 quando a via-sacra começou. No Palácio de Pôncio Pilatos, Cristo é julgado e condenado. O povo berra. Clama para que o crucifiquem. Preferem libertar Barrabás, o ladrão. O padre Paulo Renato Pereira da Silva, de 34 anos, da Paróquia de São Sebastião, em Planaltina, assiste à encenação. Nesse momento, segundo a Polícia Militar, 80 mil pessoas estavam ali, de olhos vidrados em Jesus. Emocionado, o pároco comenta: ;É um teatro de Deus. É reviver a experiência de fé. E as pessoas continuam vindo. Até mesmo aquelas que não têm fé se sentem tocadas;. Humilhação e açoite dos soldados: cenas marcantesOs homens de Pôncio dizem que Jesus subverteu o povo. ;Ele é contra as leis de César. É um impostor. Agora, deu pra dizer que cura doente e faz paralítico andar...; Diante de tantos argumentos e da ira do povo, Pôncio lava as mãos. Entrega Cristo aos soldados romanos. O teólogo Glauco Cornélio, 68, que já perdeu as contas de quantas viu o espetáculo, não se conforma: ;A atitude dele (de Pôncio) em lavar as mãos é a estranha lógica do covarde. Ele sabia que Jesus era inocente. Qual o crime de Jesus, ser o Rei dos Judeus?;. Com ou sem lógica, Jesus é condenado ali, diante da multidão. E começa o seu calvário, rumo à morte. Carregando a cruz, ele é humilhado e açoitado covardemente pelos impiedosos e sádicos soldados romanos. Cai três vezes. Apanha mais ainda por isso. Encontra-se com Maria, sua mãe. Tem o rosto, já desfigurado, enxugado por Verônica. Segue seu martírio. O povo foi chegando e se formou um mar de genteO céu escurece no Morro da Capelinha. Disparam as luzes dos flashes das máquinas fotográficas e dos celulares. O povo chora. Uma mulher amamenta o filho no peito. A baiana Maria Balbina Gomes, de 58 anos, vai às lágrimas. O choro vem em soluços. ;Parece tudo tão real, meu Deus! A vontade é entrar no meio daquele povo e tirar Jesus de tanta malvadeza. Queria salvar Ele...;, desespera-se. E Jesus morre crucificado. A plateia vai ao delírio. Passam-se três dias e Ele ressuscita, em meio a um show de luzes, cores e efeitos especiais. Um telão mostrava as imagens de Cristo. Neste ano, a surpresa final ficou por conta de um enorme letreiro. Cada pessoa representava uma letra. No meio da Praça do Calvário, surgiu a frase: ;Chagas que curam;. A multidão se emociona. Uns escondem as lágrimas. Outros mal disfarçam. O padre Paulo Renato tem razão. É um teatro de Deus. Ano que vem, vai ter mais. O Morro da Capelinha novamente se encherá de gente. Carregando uma cruz (a de todos nós), um homem morrerá. E o céu de novo vai escurecer. Fim do espetáculo. A multidão desceu em debandada. No alto, ficou a cruz. E a estranha constatação de que, mesmo há dois mil anos, a história continua viva. Cada vez mais real. No morro, depois que o povo desapareceu, restou apenas o silêncio em forma de eco. Leia a cobertura completa na edição impressa do Correio Braziliense

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