Cidades

Doutoras-palhaças ajudam médicos a amenizarem o sofrimento dos pequeninos

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postado em 23/04/2009 07:43
Elas roubaram a cena na emergência infantil. Vestiram jaleco branco. Pintaram todo o rosto. Colocaram nariz vermelho. Calçaram sapatos e tênis engraçados. Uma roupa igualmente engraçada. A tiracolo, levaram os instrumentos musicais: viola caipira, violão, percussão. E as quatro soltaram a voz naquele lugar. As crianças espiaram, meio desconfiadas. Aos poucos, soltaram-se dos colos dos pais. Arregalaram os olhos. Vibraram. Algumas, mais espevitadinhas, caíram na dança. Os adultos pediram bis. E aquelas moças de jaleco branco, com cara de palhaças, fizeram a tarde ficar menos triste naquele lugar onde geralmente a tristeza é quem rouba a cena. Estamos no Hospital Regional da Asa Sul (Hras), a convite de quatro moças que ainda acreditam em sonhos e num fiapinho de alegria. Juntas, elas encantam crianças que sofrem. Viraram doutoras da música e do riso. Quando vão embora, tem sempre alguém, cheio de dor e agulhas espetando o corpo, a lhes perguntar: ;Vocês vão voltar amanhã?;. Elas juram que sim. É assim há um ano, quando faziam tudo voluntariamente. Agora, toda quinta-feira, estarão o dia inteiro ali. De manhã e à tarde, cantando e fazendo crianças acreditarem que sonhos existem. O que era voluntário passará a ser profissional. O projeto das Doutoras Música e Riso foi aprovado pela Petrobrás. Durante seis meses, as quatro desembestadas de jaleco branco e nariz de palhaço invadirão 80 leitos do Hras, levando alegria em forma de música para as crianças ali internadas. No próximo sábado, elas vão participar de uma apresentação festiva no hospital, para marcar o início dos trabalhos. Essa é muito mais que a história de um projeto. É a história de vida de uma mulher que acreditou que podia fazer o mundo ficar melhor. Mesmo que fosse dentro de uma UTI de um hospital. Antônia Vilarinho ; moradora do Cruzeiro, 47 anos, dois filhos (21 e 14 anos), maranhense de um lugarejo que nem existe no mapa ; é a mentora das palhaças. Atriz (com formação acadêmica) e pesquisadora, há dez anos ela participou de várias oficinas com os Doutores da Alegria, ministradas por um grupo de atores de São Paulo que veio a Brasília ensinar a técnica da representação dentro de hospitais. E lá estava Antônia, ligada a tudo. ;Foi o meu aprofundamento na arte do palhaço;, reflete. De cara, ela se encantou com o projeto. Seguiram-se mais cursos de interpretação de palhaço, até na Inglaterra, e muitos planos. Há um ano, ela se juntou à outra palhaça. Manuela Castelo Branco, de Sobradinho, 32 anos, um filho de 12, formada em artes cênicas pela Universidade de Brasília (UnB) e musicista. Inventaram a intrépida dupla. Antônia virou a palhaça Fronha. Manuela, a Matusquella. Besterologia A dupla invadiu o Hras. Levou magia e encantamento para crianças hospitalizadas. O resultado foi muito positivo. Uma funcionária comentou, na tarde de ontem, ao ver as moças transformadas em palhaças: ;É o melhor trabalho que existe dentro desse hospital;. Fronha e Matusquella correram todos os leitos do Hras. Cantaram músicas conhecidas, cantigas de roda, fizeram paródias, satirizaram, sempre com bom humor e focadas em temas que falam de saúde e alegria. A ;consulta; era muito simples. Quer ver? ; Para tirar calo da voz, nada melhor que doses diárias de música. Remédio que serve, aliás, como curativo para todas as dores;, receitava Fronha, a doutora-palhaça. Por que escolheu o nome Fronha? ;Porque adoro dormir, sonhar;, ela explica. As duas tocaram fogo no Hras. Crianças que ficaram muito tempo internadas estabeleceram com elas, e consequentemente com os doutores de jaleco branco de verdade, uma relação de amizade e confiança. A melhora foi significativa; o tempo de internação, reduzido. Atestam pais e os próprios médicos. ;O que tentamos é humanizar as relações;, diagnostica a ;doutora; Fronha. Antônia elaborou um projeto e correu meio mundo atrás de patrocinadores. Há uma semana, Doutoras Música e Riso foi aprovado. Elas correram atrás de mais duas palhaças, que já haviam passado pelo treinamento. Trouxeram ao grupo a ;dra.; Berruga (Elisa Carneiro, 21) e a ;dra.; Savana (Karine Ribeiro, 20). Estudantes de artes cênicas da UnB, as duas toparam na hora. O quarteto estava formado. A partir da semana que vem, sempre às quintas-feiras, durante oito horas, elas dividirão, em duplas, os 80 leitos do Hras. Vão tocar, cantar, rebolar, fazer cara e bocas e emocionar crianças de 0 a 12 anos de idade. Os ensaios têm sido intensivos. Na tarde de ontem, com exclusividade ao Correio, elas deram um aperitivo do que vão aprontar dentro no hospital. O encontro foi na entrada da emergência infantil. A equipe de reportagem não teve acesso às dependências do hospital, para fotografar a reação das crianças internadas. A Secretaria de Saúde informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que a proibição se deve a uma determinação do Ministério Público, que garante a privacidade dos pacientes. Interessante é que naquele mesmo lugar a mesma equipe de reportagem já fez várias matérias com as crianças hospitalizadas, mediante autorização dos pais. As normas mudam de tempos em tempos. Do lado de fora, as quatro doutoras-palhaças arrancaram sorrisos incontidos das crianças. Fronha avisa: ;O que fazemos é a musicologia da besterologia;. O quê? ;A gente sutura música e besteira;. E a música, com todo o gestual irreverente das atrizes, se agiganta. Elas tocam e cantam: ;Você pensa que o soro é água, o soro não é água, não. O soro vem da enfermaria; e a água, do ribeirão;. Lian, de 1 anos e oito meses, que esperava uma consulta de reavaliação, pulou do colo mãe num pinote. E começou a dançar. Bateu palma. Rodopiou. A mirradinha Ana Júlia, 1 ano e seis meses, estava com a garganta inflamada. Quando viu, do colo do pai, a aprontação das palhaças naquele lugar, deu um show. Dançou, saracoteou e rebolou como gente grande. Ganhou até aplauso. A garganta? Nem reclamou mais. Alívio para a dor Amanda Vitória, 5, esperava a consulta para marcar a cirurgia de hérnia. Ao ouvir a cantoria, a menina dançou e cantou junto. A mãe dela, Cláudia Virgínia da Silva, 40, vibrou com o espetáculo inesperado: ;Ajuda a descontrair as crianças, que normalmente têm medo de hospital;. Quando as doutoras da irreverência estavam indo embora, Inês Oliveira, de 60 anos, moradora do Guará, pediu: ;Já vão? Tá cedo, fiquem mais. Vocês ajudam a passar o tempo;. Eram 16h25. Inês chegou ali no começo da tarde. Levou a neta, Milena Yasmim, 3, para uma consulta. ;Ela tá com infecção na garganta e febre. Tá bem molinha, mas logo se animou quando viu as palhaças. Até esquecemos a demora no atendimento;, comentou a avó. Edielza Amorim, de 23 anos, moradora do Gama e mãe de Lian ; aquele menininho que pulou do colo dela e caiu no embalo ;, elogia: ;Com certeza, a presença delas, com essa alegria toda, vai fazer uma enorme diferença para as crianças que estiverem internadas;. Hora de tirar a maquiagem. Vida real. Mundo real. Gente real. Fronha, Matusquella, Berruga e Savana voltaram a ser, respectivamente, Antônia, Manuela, Elisa e Karine. Estão impregnadas de emoção. Levaram pra casa a memória do riso bom daquelas crianças. Manuela não tem dúvida: ;A gente não cura, mas remedia;. E o remédio a que a moça se refere não está na farmácia do hospital nem em qualquer outro lugar. Só a alma será capaz de sentir os efeitos.

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