Cidades

Desde 2001, 12 pessoas morreram ao se jogar do vão do Pátio Brasil

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postado em 02/05/2009 08:27
Nove de março de 2009, segunda-feira pela manhã. Um rapaz veste uma bermuda clara, camisa e tênis preto e sai de casa, no Guará II. Ele diz à mãe que vai caminhar. Não é verdade. Pega um ônibus e segue para o Pátio Brasil, no início da W3 Sul. Espera as portas do shopping se abrirem. Às 10h, o centro de compras começa a receber o público. O rapaz entra. O shopping ainda está meio vazio. Ele vai até o último andar. Ali, na praça de alimentação, Pedro Lucas despenca para a morte. Não há ninguém passando por baixo naquele momento. Ele tem 21 anos. São 10h08. Brigadistas do shopping correm. Uma espécie de biombo é colocado em volta do corpo. Sobre ele, uma lona preta. As pessoas vão e voltam. Uns viram. Outros ouviram o barulho. Correm para o último andar, para ver o que aconteceu, lá de cima. Seguranças impedem que as pessoas filmem ou tirem fotos. Afastam-nas do lugar. Outros nem imaginam o que acabou de ocorrer. As lojas continuam abertas. A vida segue. Somente às 13h o corpo é retirado e o lugar e onde Pedro caiu é higienizado. Uma moça que estava lá no momento da morte de Pedro escreveu em um blog: ;Eu cheguei pouco tempo depois do ocorrido. Havia duas ambulâncias do bombeiro em frente ao shopping e dentro tinha uma senhora que chorava muito, parecia estar apavorada. Acredito que ela deve ter visto todo o acontecido. O corpo foi isolado por biombos e coberto com uma espécie de lona preta para que as pessoas dos andares de cima não vissem. Demoraram uma média de quase três horas para retirarem o corpo do local;, escreveu a internauta, que se identifica como Fernanda. Em 1º de março de 2007, a estudante de design de interiores Keiny Luiza de Souza, de 25 anos, moradora do Guará II, chegou ao Pátio Brasil para tirar fotos para documentos. Eram 10h15. O shopping ainda estava meio vazio. Às 10h24, ela ouviu, bem atrás dela, um barulho forte e abafado. De repente, pessoas gritaram. Algumas correram. Havia um rapaz de 27 anos no chão, que acabara de pular do último andar. Estava morto. ;O que mais impressionou foi o esquema de segurança do shopping. Em menos de 10 minutos, tudo estava cercado para que ninguém chegasse perto nem visse lá de cima. A sensação que tive é que eles estão preparados para isso;, diz. Desde então, Keiny contou as vezes em que voltou ao local. ;Fiquei muito tempo traumatizada, em estado de choque e com dificuldade para dormir. O corpo caiu atrás de mim. Podia ter sido em cima de mim. Hoje, quando volto ali, nunca ando pelas partes abertas, sempre procuro circular pelos lugares onde sei que ninguém pode desabar em cima de ninguém.; Assunto proibido Voltemos a 9 de março. Do shopping, o corpo de Pedro Lucas segue para o Instituto Médico Legal (IML). Em casa, a mãe, preocupada, começa a estranhar a demora do filho em voltar da ;caminhada;. Liga para o pai de Pedro, seu ex-marido, que mora na Asa Norte. Os dois começam a ligar insistentemente para o celular do filho. Nada. ;Até as 16h, o telefone chamou. Depois, a bateria deve ter acabado;, conta o pai. Anoitecia e Pedro não respondia às chamadas. O pai foi à 4ª DP (Guará) para fazer ocorrência de desaparecimento. Lá, um policial o levou para uma sala. Ele tinha a informação de que um rapaz, ainda não identificado, havia se matado em um shopping. As características batiam. Na delegacia, o pai soube que seu filho havia se jogado do último andar da praça de alimentação do Pátio Brasil. Foi reconhecer o corpo do filho morto no IML. O rapaz de 21 anos é, desde 2001, a 12ª pessoa que dali se joga. ;Ele tinha o livre arbítrio, mas não dessa forma;, reflete o pai, mortalmente ferido. E faz um apelo pela vida: ;Se houvesse mais segurança naquele shopping, meu filho não teria se jogado dali. A minha luta agora é para que outros jovens não se matem nesse lugar;, promete o servidor público federal Marcos Dantas, de 51 anos. De acordo com o estudioso em prevenção de suicídio e psicólogo Marcelo Tavares, dificultar o acesso de uma pessoa em sofrimento a locais de risco pode ajudar a evitar a morte e abrir possibilidades de tratamento (leia mais na página ao lado). No Pátio, o assunto é proibido. Virou tabu. Nenhum funcionário comenta as mortes. Dantas constatou isso, ao voltar ao local da tragédia sete dias depois. Ele entrou numa loja. Foi ao Pátio para levar uma carta, na verdade um pedido desesperado de socorro ao superintendente (leia a carta ao lado). Ao entrar na loja, segurando a emoção e o choro, perguntou a uma vendedora se ela ouvira falar que um rapaz havia se jogado dali. Ela o fitou, desconfiada. Depois, lhe disse, sem imaginar que o homem em frangalhos à sua frente era o pai do último rapaz que se matou no lugar onde ela trabalha: ;É verdade. Mas a gente não pode falar disso com os frequentadores do shopping;. O homem saiu da loja e chorou. Era só o que lhe restava. E prometeu que faria o que fosse possível para que ninguém mais dali se matasse. ;O superintendente me recebeu. Ficou emocionado e disse que ia formar uma comissão de segurança para analisar o caso. Disse a ele que em 90 dias (o prazo termina em junho) voltaria para ver se alguma coisa tinha sido feita. Eles precisam colocar grades, vidros, redes...; Marcos soube que o shopping tem um vídeo onde a morte do filho está registrada. ;Só pedi que nunca divulgasse essas imagens. Eu e minha família não precisamos mais de tanta dor.; Choque O rapaz que se jogou do último andar do shopping era um garoto como tantos outros. Gostava de sair com amigos, ir às baladas. Dominava bem a informática. ;Às vezes, a timidez lhe deixava ruborizado. Ele era o calminho da turma;, lembra uma amiga do Colégio Rogacionista, no Guará II. Outro comenta: ;A morte dele nos chocou demais. O Pedro às vezes era bem engraçado, gostava da vida;. Outra amiga, do prédio, emenda: ;Com o término do namoro (havia sete meses o relacionamento tinha acabado), ele ficou deprimido (fez terapia com psicólogo). Andava triste, meio paradão. Não tava mais como antes, andava afastado da gente;. De acordo com outro amigo, ele ;sempre foi reservado, mas estava mais do que o de costume. A gente até comentava que ele estava passando por um problema;. O pai, entretanto, conta os planos que o filho fazia: ;Ele tinha se matriculado num curso de Tai Chi Chuan. A natação estava paga por 90 dias. Ele programava o futuro;. Pedro Lucas era o segundo filho (e caçula) de um casal de pais separados. A mãe, com quem ele morava, vive no Guará II. O pai, na Asa Norte. Mas, mesmo com a separação, a família está sempre junta. O pai casou-se pela segunda vez. Com a nova mulher, teve mais dois filhos ; um menino de 6 anos e uma menininha de 2. Pedro era padrinho do irmãozinho de 6 anos. O menino não compreende a morte. Pergunta por Pedro. Está em tratamento com psicólogo. A irmãzinha de 2 anos vai à janela do apartamento para ver ;a estrelinha; que virou o irmão. Em noites nubladas e chuvosas, ela chora. Não consegue achá-lo. Marcos, o pai, sufoca o choro. Precisa ser forte. Dias antes de morrer, no sábado, 7 de março, Pedro almoçou na casa do pai. ;Notei, de fato, ele mais triste;, admite. ;Mas pensei que fosse apenas um momento. Meu filho era pra cima.; Depois do almoço, o pai o levou em casa. Ele desejou ao pai ;um bom futebol;, naquela tarde. Beijaram-se, na despedida. Foi a última vez que viu o filho vivo. O que levou, afinal, Pedro a se matar? O pai, com a voz embargada, responde: ;Me faço essa pergunta todos os dias. Talvez não consiga nunca a resposta. Ele era um menino normal, não tinha motivos para se matar;. A mãe, uma professora de 52 anos, chora sem cessar. A dor é infinda. O pai não se conforma: ;Rompeu-se a lógica da vida. Um pai não podia enterrar um filho...; A resposta que Marcos Dantas tanto procura talvez não venha nunca. Pedro a levou consigo, naquele pulo rumo à morte. Deixou pai e mãe órfãos de filho (ainda não inventaram um nome para pais que enterram filhos). Deixou irmãozinhos sem entender nada. A menina procura a estrelinha no céu. O menino conversa com uma psicóloga para entender por que ;seu padrinho; nunca mais voltou. A vida, agora pela metade, acompanha aquela família. Shopping se isenta Ninguém do Pátio Brasil quis dar entrevista. A administração se pronunciou por meio da assessoria de imprensa. Alegou que ;atende todas as normas construtivas e, embora tomadas as providências de segurança que evitam acidentes dentro do empreendimento, torna-se impossível conter uma decisão de alguém que, em um momento de desespero, decide atentar contra a própria vida.; Em e-mail enviado ao jornal, o shopping alegou que as medidas de segurança adotadas ;são criteriosas e diariamente checadas, primando sempre pelo bem-estar dos clientes, segurança e conforto.; O Pátio Brasil ressaltou ser ;apenas uma vítima que serviu de palco para o desfecho de algo que muito provavelmente aconteceria em qualquer outro lugar, a qualquer momento;. Também destacou que ;não cabe ao Pátio Brasil o acompanhamento prévio e a atenção relativa aos sinais emocionais de pessoas que merecem atenção médica específica;. Prevenir é possível O Correio ouviu o professor Marcelo Tavares, 52 anos, coordenador do Núcleo de Intervenção em Crise e Prevenção do Suicídio, do Instituto de Psicologia da UnB, e a maior autoridade no assunto em Brasília. Para ele, o suicídio configura hoje sério problema de saúde pública em todos os países. ;Dados da OMS (Organização Mundial de Saúde) mostram que, no mundo, há pelo menos uma tentativa de autoextermínio a cada três segundos. É uma das três maiores causas de mortes de pessoas de 15 a 35 anos.; Tavares acredita que a prevenção demanda atenção de toda a sociedade. ;Por ser um fenômeno complexo, resultante da interação de diversos fatores biológicos, psicológicos, sociais, culturais e ambientais, o suicídio não pode ser combatido a partir de ações isoladas;, define. E complementa: ;O suicídio é um ato impulsivo. Portanto, quando a pessoa encontra uma pequena dificuldade, um esforço a mais para executar a ação, isso pode provocar uma desistência do ato, o suficiente para impedir;. E ele vai além: ;O controle de acesso ao método retira a oportunidade, ameniza a impulsividade, reduz a letalidade e cria novas condições, como a possibilidade de apoio ou de tratamento.; De acordo com o psicólogo, no artigo Suicídio: possível prevenir, impossível remediar, ;as escolhas dos meios de suicídios são influenciadas por numerosos fatores relacionados à sua visibilidade, como a facilidade e a disponibilidade;. ;Lugares bonitos e públicos podem criar um contexto para imortalizar e glorificar a própria morte na forma de um eloquente discurso final;, argumenta. Tavares faz um alerta: ;Edifícios altos, como shopping centers e hotéis, são locais preferidos para a atuação suicida de altíssima letalidade. No entanto, os profissionais que projetam e constroem tais espaços ainda não estão sensibilizados para desenvolverem uma estrutura preventiva desde a concepção da obra até sua administração. Ainda mais grave é a falta de controle de acesso;, critica. Estudos da OMS indicam que cada suicídio afeta significativamente pelo menos seis pessoas. Membros da família ficam mais suscetíveis a considerá-lo como uma alternativa a seus problemas. Tornam-se também pessoas em risco. ;Se o suicídio ocorre em lugar de ampla circulação pública, seu alcance é ampliado. Muitos do que presenciam o fato podem sofrer danos, sobretudo aqueles já vulneráveis;, observa o especialista. O psicólogo lembra que não existem suicidas, mas ;pessoas em sofrimento; que, em momentos de desamparo, buscam alternativas desesperadas para sair daquela situação. ;Isso é transitório. Tenho pacientes que fizeram apenas uma tentativa, superaram e hoje estão muito bem.; Um dos maiores estudiosos da prevenção em suicídios do país, que se debruça no tema desde 1987, Tavares acredita que o silêncio, o ;não falar sobre isso;, apenas prejudica. ;A responsabilidade da prevenção é de todos, mas a mídia tem um lugar especial, pois atinge as pessoas, sendo dificilmente neutra nesta questão;, avalia. E prossegue: ;Uma constatação fundamental é que a prevenção não se faz pela glamorização dos problemas ou dificuldades, mas pela informação de como obter apoio psicológico; pelo desenvolvimento de habilidades positivas de enfrentamento, como, por exemplo, a autoestima, a habilidade de expressão afetiva-emocional, o relacionamento e suporte social, entre outras; e pelo relato de histórias bem-sucedidas de superação de dificuldades, principalmente dos fatores positivos envolvidos na superação;. Leia mais na edição impressa deste sábado do Correio Braziliense

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