postado em 02/05/2009 08:40
É cada vez maior a interferência de líderes das testemunhas de Jeová nos tratamentos de seguidores da religião em que os médicos consideram essencial a transfusão de sangue, técnica inaceitável à doutrina. Representantes dos pacientes intervieram em ao menos 60 casos no Distrito Federal em 2008. Somente em janeiro e fevereiro últimos, houve 20 intervenções. Algumas pararam no Tribunal de Justiça. Cirurgias só puderam ser realizadas após a ordem por escrito de um magistrado. Em outras, prevaleceu a decisão do doente ou dos familiares de rejeitar a transfusão.
As intermediações com as unidades de saúde ou os médicos são feitas pelas Comissões de Ligação com Hospitais (Colih). Compostos de fiéis voluntários, esses grupos foram criados 30 anos atrás no mundo inteiro. Há 1,6 milhão de testemunhas de Jeová no Brasil, que contam com 115 Colihs no país. Uma delas fica em Brasília e tem 13 membros. Eles pregam o esclarecimento da doutrina aos profissionais de saúde e o fim de conflitos entre pacientes, familiares e corpo médico. Mas é comum os lados recorreram à Justiça.
Foi o que ocorreu há quatro meses. Em 29 de janeiro, um juiz autorizou médicos do Hospital de Base (HBDF) a realizar transfusões de sangue em uma testemunha de Jeová, mesmo contra a vontade dela. O pedido à Justiça partiu da filha de uma mulher internada em estado grave e inconsciente para uma cirurgia na cabeça. Por meio de procuração reconhecida em cartório em 2006, a paciente de 55 anos havia manifestado o desejo de não receber sangue de outra pessoa.
Integrantes da Colih em Brasília, onde moram 17 mil testemunhas de Jeová, apresentaram o documento à direção do HBDF. Os médicos disseram à filha da paciente que só levariam a cirurgia adiante com autorização judicial. Laudos comprovavam que a senhora corria risco de morrer sem a cirurgia neurológica, com transfusões. A decisão partiu do juiz Luís Eduardo Yatsuda Arima, da 2ª Vara da Fazenda Pública do DF. ;Entre o direito à liberdade religiosa e o direito à vida, deve prevalecer o direito à vida;, sentenciou ele.
Alternativas
Líderes das testemunhas de Jeová orientam os fiéis a procurar um integrante da Colih regional sempre que o seguidor da doutrina seja hospitalizado e a transfusão, mencionada. ;As comissões têm uma lista de médicos de diversas especialidades disponíveis a tratar testemunhas de Jeová sem a transfusão;, conta Wladimir Costa Teixeira, 46 anos, um dos integrantes da comissão local. A lista inclui cerca de 100 profissionais do DF.
As testemunhas de Jeová adultas carregam consigo um documento com a recusa em receber sangue ou qualquer um de seus componentes principais ; glóbulos vermelhos, glóbulos brancos, plaquetas e plasma ;, bem como a rejeição a procedimentos como o armazenamento de sangue para posterior infusão. ;O ser humano tem o direito de tomar a própria decisão de acordo com sua consciência;, defende Adriano Rodrigues de Faria, 40, outro membro da Colih brasiliense.
Adriano recorreu a uma alternativa há 10 anos. Médicos de Brasília diagnosticaram um problema no coração da filha do servidor do Senado. A menina, então com 5 anos, precisaria de cirurgia. ;Tínhamos tempo para prepará-la para um procedimento sem o uso do sangue. Minha filha tomou medicamentos que eliminaram a transfusão;, lembra o pai. O tratamento e a operação foram feitos no Instituto do Coração de São Paulo. Hoje com 15 anos, a garota não tem qualquer sequela.
Decisão em emergências
Adriano de Feria reconhece que o tratamento a que foi submetida a filha ; para evitar a transfusão de sangue ; não é possível em emergências. ;Esses são os casos em que a nossa comissão é acionada com mais frequência, quando o médico tem que tomar uma decisão imediata e, às vezes, não respeita a consciência do paciente;, comenta. É comum o paciente testemunha de Jeová se manifestar contra a transfusão de sangue e o médico ou hospital ir atrás de uma decisão judicial para fazer o procedimento. Isso ocorreu em um hospital do Sudoeste há dois anos. Assim que deu entrada na unidade, a paciente de 82 anos, testemunha de Jeová, afirmou não querer receber sangue em hipótese alguma.
Integrantes da Colih conseguiram ser ouvidos pelo juiz de plantão encarregado de analisar o pedido de liminar do hospital para a realização da transfusão, se necessário. Eles defenderam que a mulher não recebesse sangue. Após ouvir os dois lados, o magistrado decidiu que os médicos deveriam considerar a opinião da paciente. Ela morreu de infecção generalizada 10 dias após ter dado entrada no hospital, sem passar por uma transfusão.
MP é acionado em casos extremos
Rolam Costa, do HBDF, é um dos médicos brasilienses que operam sem recorrer à transfusão
As testemunhas de Jeová têm o direito divino e civil de recusar a transfusão de sangue. Um médico é obrigado a usar todos os meios ao alcance dele para salvar a vida de uma pessoa. Se assim não agir, pode responder por omissão de socorro. Caso seja pressionado para não efetuar o procedimento em pacientes com hemorragia severa e risco de morte, deve acionar o Ministério Público. E se líderes religiosos ou familiares tentarem impedir a atuação médica, o hospital pode chamar a polícia.
As orientações são do promotor Diaulas Ribeiro, da Promotoria de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde (Pró-Vida). ;A recomendação é para casos extremos. Na rotina, há uma boa convivência entre a promotoria e os líderes das testemunhas de Jeová;, conta. Segundo ele, os médicos ou hospitais podem acionar a Pró-Vida por telefone ou mesmo fax em casos de divergências, pois há sempre profissionais de plantão. ;Sempre chegamos a um acordo;, diz.
A última situação-limite enfrentada pela Pró-Vida ocorreu em 2006, quando a equipe médica do Hospital Universitário de Brasília precisou de medida judicial no tratamento de uma criança, filha de membros da igreja. ;Porém, os pacientes que chegam ao pronto-socorro geralmente são vítimas de traumas e ferimentos graves, estão em estado de choque, alguns inconscientes;, observa o cirurgião Rolam Costa, chefe do serviço de cirurgia-geral do Hospital de Base (HBDF) e um dos médicos brasilienses que operam sem recorrer à transfusão sanguínea. ;Quem trabalha em emergência precisa tomar decisões em poucos minutos para salvar uma vida. Aí podem surgir os conflitos;, ressalta.
Legislação
A dubiedade da legislação brasileira deixa brechas para o conflito entre médicos e testemunhas de Jeová. O Código de Ética Médica, de 1981, manda que a vontade do paciente deve ser respeitada desde que não comprometa a vida dele. No Código Civil, consta que o paciente tem total autonomia para recusar procedimentos. Já o Código Penal estabelece que, em risco de morte, o médico pode e deve adotar procedimento médico ou cirúrgico sem consentimento do doente ou seu representante legal.
Entre esses procedimentos está a transfusão de sangue. ;Se o médico não segue a determinação legal, pode ser processado por omissão;, comenta o cirurgião Roberto d;Ávila, coordenador da Comissão Nacional de Revisão do Código e vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM). A entidade reuniu mais de 3 mil sugestões de mudanças ao documento. Elas serão discutidas em agosto, num encontro em Brasília, que contará com mais de 500 representantes médicos e da sociedade civil. ;O novo Código Médico será mais preciso sobre a conduta profissional para pacientes testemunhas de Jeová;, prevê d;Ávila. Nos Estados Unidos e na Europa, o que prevalece é a vontade do paciente.
Mas o que fazer para substituir a transfusão para quem perdeu grande quantidade de sangue? ;A medicina oferece mecanismos que podem descartar a bolsa sanguínea;, garante Rolam Costa. Ele cita o aparelho Cell save (salvador de células), disponível nos centros cirúrgicos do HBDF e de três hospitais particulares do DF. O equipamento aspira o sangue do ferido, limpa e devolve a substância purificada ao paciente.
;Não há doação de sangue alheio. O paciente recebe o próprio sangue;, explica. Segundo Costa, outra opção são as cirurgias minimamente invasivas por laparascopia, em que não há grandes cortes nem sangramento, apenas pequenos furos em pontos estratégicos, capazes de atingir órgãos como fígado, rins, pulmões e até coração. ;São técnicas muito usadas em cirurgias eletivas;, explica o cirurgião.
Interpretação da Bíblia
As testemunhas de Jeová dizem basear na Bíblia a sua recusa a usar ou consumir sangue, humano ou animal. Citam alguns textos bíblicos, como o que está escrito no livro do Gênesis (9:3-4): ;Todo animal movente que está vivo pode servir-vos de alimento. Como no caso da vegetação verde, deveras vos dou tudo. Somente a carne com sua alma ; seu sangue ; não deveis comer.; No Levítico (17:10), há outra restrição: ;Quando qualquer homem da casa de Israel ou algum residente forasteiro que reside no vosso meio comer qualquer espécie de sangue, eu certamente porei minha face contra a alma que comer o sangue e deveras o deceparei dentre seu povo.;
No entanto, o principal fundador da religião testemunhas de Jeová, Charles Taze Russel, apenas proibiu, por volta de 1892, comer sangue, mas nada falou de transfusão de sangue. Igualmente, seu sucessor, o juiz Rootherford, em 1939, disse que não se deveria comer a carne de animais com o seu sangue, mas não tratou de transfusão de sangue. A proibição começou a ser implantada a partir de 22 de dezembro de 1943, quando saiu um artigo na revista Consolation defendendo a ideia. Daí para a frente, vários artigos em publicações voltadas às testemunhas de Jeová consolidaram a proibição.