Cidades

Medicamento abortivo é vendido à luz do dia

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postado em 03/05/2009 08:27
O mercado de compra e venda do principal abortivo em uso atualmente em todo o mundo é lucrativo e perigoso. Quem vende desconfia de todos os clientes e só encomenda a mercadoria após receber, pelo menos, metade do dinheiro. A outra metade é paga horas depois, com a entrega dos comprimidos. Para as clientes desesperadas, não há garantia da legitimidade do que se compra. Mas engana-se quem pensa que o comércio é feito na surdina. Os fornecedores de Cytotec são tão ariscos quanto ambiciosos. Para se ter uma ideia, na parada de ônibus do Setor Hospitalar Sul é possível adquirir o medicamento. A vendedora, uma mulher morena de 40 e poucos anos, fica em uma banca de ervas. Quando a cliente se aproxima pedindo remédio para baixar a menstruação, ela julga se é confiável ou não. Após uma longa conversa, a mulher revela detalhes do esquema: ;R$ 400 por quatro comprimidos. Dois para tomar e dois para ;colocar lá embaixo;;. De acordo com ela, o remédio é garantido, conseguido de um farmacêutico em menos de quatro horas. ;Pode confiar que é seguro;, afirma. Há também quem compre o remédio na Feira dos Importados, no Novo Gama e em Valparaíso. Michele*, de 21 anos, optou pela internet. Pagou R$ 250 e, dois anos depois, tem uma filha. O remédio era falso e, por sorte, não prejudicou a formação do bebê nem comprometeu o sistema reprodutor da jovem. O delegado Carlos Eduardo Sobral, da Polícia Federal, que atua contra crimes na rede mundial de computadores, alerta para o perigo. ;A compra de remédios pela internet é perigosa. Quem encontrar sites deve denunciar nas páginas da Vigilância Sanitária e da própria PF.; Úlcera O Cytotec é um remédio desenvolvido para combater úlcera. Depois de ficar conhecido como abortivo, foi tirado das farmácias, onde custava menos de R$ 50. Atualmente, só está disponível em hospitais. ;Ele é muito eficiente e é usado inclusive nos abortamentos legais e em casos de perdas naturais do feto;, explica o médico Edvaldo Dias Carvalho, que além de professor da UnB atende no Hospital de Sobradinho. A questão do abortamento é tão polêmica que mesmo mulheres amparadas pela lei muitas vezes preferem resolver sozinhas e comprar remédios por conta própria. O promotor Diaulas Costa Ribeiro, da Promotoria de Justiça Criminal de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde, Pró-Vida, lamenta a enorme incidência de preconceitos. Como principal apoiador do cumprimento da lei que permite às mulheres vítimas de estupro ou que correm risco de vida interromper a gravidez, ele encaminha a cada ano 15 delas para o hospital público credenciado para a interrupção da gravidez. ;O número (de abortos legais) é mais baixo ainda porque recebemos casos de fora de Brasília;, diz. ;Ainda há grande pavor de procurar o sistema que protege mulher vítima do estupro. É uma pena, mas não existe confiança no Estado;, afirma Diaulas. O promotor destaca que Brasília tem um dos melhores serviços de aborto legal no Brasil. ;É um hospital da rede pública credenciado pelo MP e pelo Ministério da Saúde. A equipe é impecável e a mulher é tratada com muita humanidade;, adiantou, pedindo apenas para que o nome do hospital não fosse divulgado. ;Se a gente espalha qual é, amanhã tem centenas de pessoas na porta fazendo campanha contra um direito da mulher.; Projetos de lei Atualmente, há mais de 50 projetos de lei sobre aborto tramitando no Congresso. Alguns legalizam a prática. Outros tantos aumentam as penas para quem interrompe a gravidez. Em 2006, o governo federal encaminhou uma série de sugestões à Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados. A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e o Ministério da Saúde reivindicaram a permissão para que a mulher decidisse de forma individual o fim da gestação, sob alguns critérios. A proposta foi derrubada. Hoje, o que se vê é o acirramento das opiniões contrárias ao aborto. Há o risco até mesmo da criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar denúncias contra o aborto. ;O Congresso está bastante fundamentalista, mas o aborto é um problema de saúde e não pode ser tratado como uma caça às bruxas;, observa a gerente de projeto da Secretaria das Mulheres Elizabeth Saar. Embora não seja um fato comum, mulheres podem ir para a cadeia pela prática de aborto ilegal. O caso mais grave ocorreu no meio do ano passado. Entidades de direitos das mulheres receberam a notícia de que todas as 10 mil pacientes de uma clínica ginecológica com 20 anos de funcionamento seriam chamadas a depor após a denúncia de que o local servia como clínica de aborto. Mais de 70 já foram condenadas à prestação de serviços comunitários. Risco de infecções e até de morte Sangramento, calafrios, dor no abdômen, febre e corrimento são os primeiros sinais de que algo está errado. A partir daí, a mulher que interrompeu a gravidez de forma clandestina tem que correr para buscar o atendimento. Pode estar com uma infecção causada pelo aborto incompleto ; que ocorre quando a dosagem do medicamento foi insuficiente, o remédio era falso ou adulterado ou em casos de práticas ainda mais perigosas de abortamento. No Brasil, discute-se muito números sobre mulheres que abortam, mas fala-se pouco das que morrem durante o processo. ;Casos em que o aborto não ocorre de forma completa exigem intervenção para retirar a parte do feto que ficou dentro do útero, porque pode gerar um quadro infeccioso;, explica o médico Edvaldo Dias Carvalho Júnior, professor de Bioética da UnB. De acordo com a promotora de Justiça e Coordenadora do Núcleo de Gênero Pró-Mulher, Laís Cerqueira, muitas das mulheres que fazem abortos clandestinos ficam com o sistema reprodutivo comprometido ou morrem. No caso de curetagens, por exemplo, a paciente pode ter as paredes do útero coladas. Também há o risco de obstrução das trompas, o que pode impedir uma nova gravidez. Se esta curetagem não for feita a tempo, a paciente pode necessitar de uma esterectomia, isto é, da retirada do útero para acabar com o foco da infecção. ;Sou católica, mas não deixo isso interferir na minha visão sobre os direitos humanos;, observa. ;Aborto é um problema de saúde pública e não pode ser assunto escondido.; Com apenas 19 anos, Bruna* já sabe que não poderá ter os próprios filhos. Há pouco mais de dois anos, ela passou por um abortamento traumático. Com quase três meses de gestação, comprou no Novo Gama dois comprimidos do abortivo por R$ 150. ;Fui parar no hospital e hoje não tenho mais útero.; Em outubro do ano passado, uma grávida de 35 anos morreu em Samambaia após tentar um aborto. De acordo com a polícia, ela teria tomado um remédio abortivo com quase sete meses de gravidez.

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