postado em 26/05/2009 08:21
A cidadania está nos pequenos grãos de serragem colorida. A dignidade aparece nos finos fios de palha. A esperança está nos desenhos escolhidos pelas mãos habilidosas do artista. E o futuro? Ele está na cola que une todos os elementos e dá vazão aos sonhos de um ex-menino de rua que batalha pela chance de superar um passado de dor e ainda acredita na chance de viver longe das drogas, dos pequenos furtos e de todas as dores da vida ao relento.
Quem olha as obras de arte produzida por Alcivandro dos Anjos, de 29 anos, não imagina o que ele teve que passar para estar vivo e otimista. São quadros feitos com serragem de diferentes tonalidades e que, quando postos lado a lado, resultam em imagens dos ídolos como Che Guevara e Bob Marley, ;conhecidos; quando ele morava na rua. Ou na história de um pescador que tira sozinho da água o sustento ; representando o próprio artesão. Por causa das peças, Alcivandro foi para Roma, expor o trabalho em uma feira de artesanato. No primeiro ano de governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva também recebeu uma quadro do artista com a reprodução dos Dois Candangos.
O trabalho é lindo. Ainda mais quando se descobre que a serragem não recebe coloramento artificial. As cores vêm do tipo de madeira cortada nas serralharias e coletada pelo próprio Alcivandro ou por amigos carroceiros. A mulher dele, Sheila dos Anjos, de 28 anos, é parceira de arte e de história.
A vida dos dois não é para fracos. De noite, Alcivandro trabalha como funcionário da limpeza do metrô. De dia, se junta com Sheila na tarefa de dono de casa ; de dois cômodos e quatro crianças ; e artesão. Parece difícil. Mas já é uma conquista.
A rua
Alcivandro e Sheila se conheceram no gramado da Rodoviária, há nove anos. Na época, Alcivandro já estava há quase uma década na rua. Ele fugiu do barraco pobre da mãe em Barreiras (BA) quando só tinha 11 anos. ;A gente era muito pobre e eu trabalhava de engraxate para ajudar em casa. Os meninos mais velhos começaram a dizer que aqui em Brasília era melhor que lá em Barreiras e eu vim;, lembra. A mãe sofreu muito. ;Meu irmão mais velho servia no Exército e deu um jeito de me achar um tempo depois. Voltei para casa, mas não durei uma semana e já estava na Rodoviária do Plano Piloto de novo. Tomei gosto pelas ruas.;
Na luta pela sobrevivência do menino de rua, Alcivandro se envolveu com tudo o que havia de errado. ;Pratiquei pequenos furtos, usei vários tipos de drogas para esquecer o frio e a fome%u2026; E só parou quando viu amigos perderem a vida para o tráfico de drogas. ;Tinha 19 anos quando coloquei droga no meu corpo pela última vez;, revela.
Foi nessa época que ele conheceu Sheila. Aos 18 anos de idade, ela estava nas ruas havia cinco anos. Também roubava e usava vários tipos de drogas. ;Conheci o Alcivandro no dia em que saí do Caje (Centro de Atendimento Juvenil Especializado) e vi que ele era o cara certo para mim;, lembra. ;Foi ele o único que deu a mão para mim. Até hoje é assim.;
Sheila foi parar nas ruas de Brasília para fugir da violência doméstica dos namorados da mãe. Ela morava em Santa Maria e decidiu sair de casa com apenas 13 anos. ;Fui embora e descobri que minha mãe preferia os homens a mim. Foi muito triste;, emociona-se.
Quando os dois começaram a namorar, Alcivandro convenceu a companheira de sobrevivência a voltar a estudar. Os dois foram para a Escola de Meninos e Meninas do Parque e tomaram para si a missão de mudar de vida. Foi lá que aprenderam a ler, a escrever e a exercer uma profissão. ;Fizemos um curso de artesanato e eu vi que ali poderia estar minha chance de futuro;, conta. ;Me formei no ensino fundamental e desenvolvi a técnica do meu trabalho.;
Ainda hoje, cada dia é de luta. A família, formada pelo casal, três filhos e uma sobrinha, mora de favor na parte de trás de uma casa no Recanto das Emas. ;Ainda não temos condição de pagar aluguel e de ter um espaço só nosso;, admite Sheila. ;Mas em nenhuma hipótese eu vou para a rua com os meus meninos. Não deixo que falte amor nem um segundo para eles para que se revoltem e passem o que a gente passou;, completa.
Apesar das dificuldades, os dois não pedem dinheiro e expõem, orgulhosos, o talento nos quadros de serragem e palha nas feiras mensais Bsb Mix, no Gilberto Salomão. As peças custam entre R$ 20 e R$ 500. E valem cada centavo.
Exemplo
Apesar da pobreza e da rotina pesada, Alcivandro esbanja generosidade. Duas vezes por semana, dá aulas para meninos de rua que viveram histórias como a dele no projeto GirAção. A ideia é transformar os garotos e garotas sem perspectiva em futuros Alcivandros e Sheilas. No GirAção, 50 crianças e adolescentes compartilham histórias, dramas e sonhos. O projeto é uma iniciativa do Centro de Referência, Estudos e de Ações Sobre Crianças e Adolescentes (Cecria) e do Movimento de Meninos e Meninas de Rua.
Por serem menores de idade, os alunos do GirAção precisam ter os nomes trocados na matéria. Mas, nas pequenas molduras com a serragem trazida pelo mestre, eles têm a chance de mostrar a personalidade e visão de mundo. Robson, de 13 anos, fez no pequeno quadro uma espécie de grafite. Adélia, 17, optou por um menino de rua. ;É ;irado; fazer isso porque no final eu posso ser alguém;, resume Gabriel, de 14 anos, para orgulho do professor.
Quer ajudar?
Alcivandro: 9186-2695
Para saber mais
A Escola de Meninos e Meninas funciona há 13 anos, no Parque da Cidade. O projeto atende crianças e adolescentes moradores de rua que já não se adaptam às escolas regulares da rede pública de ensino. Atualmente são quase 70 alunos matriculados na unidade. Por volta das 7h30, os primeiros estudantes começam a chegar à instituição, onde passarão boa parte do dia.
Além de mantê-los afastados das drogas e da violência nas ruas, a escola oferece ensino formal em classe de alfabetização e aceleração da aprendizagem, e ainda a modalidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA). A escola também desenvolve atividades artísticas, circenses e esportivas, cujos conteúdos são trabalhados tendo em vista a realidade do aluno. O objetivo é possibilitar aos estudantes, a partir da passagem pelo colégio, o acesso a atividades pedagógicas que trabalhem a superação da condição de meninos de rua, transformando-os em cidadãos agentes de sua própria história, construindo o seu conhecimento e integrando-os socialmente.
Até 1995 a escola funcionava no Gran Circular. As reclamações dos comerciantes do Conic, porém, fizeram com que eles fossem despejados. Foi quando a Administração de Brasília concedeu, provisoriamente, um vestiário do Parque da Cidade para o projeto. Com a ajuda de empresas particulares, o espaço foi adaptado e funciona até hoje. A vantagem do Parque da Cidade, de acordo com professores e alunos, está no fato de o local ser central e perto dos lugares onde os meninos de rua circulam, como a Rodoviária. (EK)