Cidades

O lavador de carros e a escritora

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postado em 28/05/2009 08:38
Acordo aborrecida com pequenos problemas. Ainda não fiz a declaração do Imposto de Renda, que sempre deixo para a última semana; minha secretária não está limpando direito a casa e começou a reclamar da ida diária ao supermercado; preciso retomar as sessões de acupuntura para a tendinite, mas não tenho ânimo; o trabalho está um saco; ainda não escrevi a crônica da semana. Tomo o café sem sentir o gosto e me visto com mau humor, antevendo a chatice de enfrentar o trânsito congestionado no Eixão e de procurar uma vaga no estacionamento entupido. Esqueço que justamente ali me aguarda um ser humano-humano, que tem o dom de transformar meu espírito. ; Bom-dia, madame! - Saúda a voz de samurai. ; Bom-dia, Sr. Pernambuco. - Respondo, já me sentindo um pouco mais leve. ; A senhora tá boa? A família tá boa? - pergunta o sorriso de dentes escassos. ; Tudo bem. E o senhor? ; Tudo bem, graças a Deus. E, como um sacerdote que acabou de celebrar a missa matinal, profere a bênção que sempre me enternece: ; Deus lhe acompanhe. ; Amém - digo quase com alegria. Ninguém sabe o nome verdadeiro ou a idade do velho que é o primeiro a chegar de algum setor distante do Plano Piloto para lavar os carros de altos funcionários públicos, geralmente insatisfeitos, como eu. Só faltou ao trabalho duas vezes: quando o filho levou um tiro e quase morreu no Hospital de Base e quando ele próprio foi assaltado e ferido, perdendo o movimento da perna direita. A aparência rude esconde um homem bonito. Imagino-o um executivo bem-sucedido, mandando lavar o carro de luxo em algum estacionamento, ou um nobre Deputado, num elegante terno escuro, dirigindo-se ao plenário e impressionando os ouvintes na tribuna. Mas preciso do meu guardião exatamente ali. Enquanto ele mantiver seu posto, estarei a salvo de angústias menores. (Crônica O Guardião da manhã, de Luci Afonso) Tem gente que gosta de gente. E sabe observar gente. Tem gente que faz de gente aliado. Tem gente que verdadeiramente se importa com gente. Era uma vez um homem que lavava carros. E uma mulher que todos os dias estacionava o seu veículo no lugar onde aquele homem lavava carros. Ele tem 81 anos. Ela, 49. A cada reencontro, ele dizia a ela, com voz grave de barítono: ;Bom-dia, madame!” Ela lhe devolvia: ;Bom-dia, seu Pernambuco...; Ele perguntava pela família dela. Ela dizia que estava tudo bem. Ele, então, antes que ela partisse, lhe desejava que Deus a acompanhasse. Ele continuava lavando carros. Ela subia para o trabalho. Foi assim durante os últimos 23 anos. Há cinco meses, o homem que lavava carros adoeceu. Veio tudo junto: diabetes, hipertensão e problemas renais muito graves. Foram 23 dias na UTI do hospital de Samambaia. O médico o desenganou. Chamou a família. E lhes contou a verdade. O estacionamento do anexo da Câmara Federal, próximo ao Supremo, desde aquele dezembro, ficou sem a alegria daquele homem miudinho com voz de samurai. A mulher cujo carro ele lavava sentiu sua falta. Não da lavagem. Mas do bom-dia que se apagou. No hospital, o homem se rebelou. Saiu do coma. Deixou aquela gente de jaleco branco incrédula. Partiu da UTI. Seguiu para casa. Quer voltar para o estacionamento da Câmara. E chora quando sente que não tem mais forças para fazer o que fazia antes. Na 313 Norte, num apartamento confortável, a mulher escrevia. De tanto observar gente, ela começou a escrever sobre gente. Às vezes, ela mesma era a protagonista das histórias que contava. Noutras, na grande maioria, eram as ;gentes; com quem esbarrava que viravam seus personagens principais. Um dia, de tanto ouvir aquele bom-dia com ;voz de samurai;, ela escreveu uma coisa pra ele. Chamou-o de O Guardião da manhã. Era uma crônica. ;Para mim, eram apenas observações das coisas que aconteciam e eu presenciava;, ela conta. De observação em observação de gente comum, invisível, uma gente que ninguém vê, ela encheu o computador de anotações. Mas só descobriu que fazia crônica quando participou da oficina de literatura, no Espaço Cultural da Câmara, onde trabalhava como taquígrafa. Há dois anos, pariu o primeiro livro: Velhota, eu? Em 2005, no estacionamento de um banco, no final da Asa Norte, ela foi chamada por um rapaz ;musculoso, de braços fortes e tatuado com dragões; de velhota. ;Me senti envergonhada. Tinha 45 anos, cinco meses e dez dias;. Válvula de escape: a escrita. Correu pro computador e escreveu tudo que estava sentindo. ;O que não consigo responder, escrevo. É assim que reajo.; O primeiro livro, lançado em 2007, com economia própria, foi um sucesso. O poeta Marco Antunes, professor da cronista, na oficina de literatura, escreveu, na contracapa do livro: ;É crônica tudo aquilo que for manchete na alma do cronista. Desabem sobre o mundo as torres da insensatez humana, para o cronista, no entanto, sem traumas ou vergonha, a grande notícia do dia pode ter sido a morte de um simples quati, na garagem do seu prédio;. E disse mais: ;Ela tem olho clínico para a hipocrisia social e a delata sem cerimônias ou lubrificações de eufemismos....; A taquígrafa finalmente entendeu que era uma cronista. Mesmo sonho Uma lesão por esforços repetitivos (LER) afastou a cronista de suas funções de taquígrafa. Ela mudou de departamento. Desde setembro do ano passado, está lotada no Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara (Cefor). E nunca deixou de ver o lavador de carros. E ele, todos os dias, lhe desejava que Deus a acompanhasse. Essa é a história de Luci Afonso de Oliveira, a escritora, e um de seus melhores personagens, o lavador de carros Clodoaldo José Paulino, mais conhecido como ;seu Pernambuco;. Seu Pernambuco, na verdade, nasceu no Rio Grande do Norte. ;Esse apelido me deram quando eu fui servir o Exército no Rio de Janeiro;, conta o homem de 81 anos. A escritora, mineira de Araxá, chegou a Brasília em 1971, aos 11 anos de idade. Veio com pai, mãe e três irmãos. Brasília começava. E Taguatinga foi o endereço da família humilde. A menina cresceu. Escrevia, sem pretensão, coisas que observava pelo caminho. Formou-se em letras pela Universidade de Brasília. Fez concurso para a Câmara, em 1985. Mudou-se para o Plano Piloto. Casou-se. Teve um filho. Separou-se. Naquele estacionamento, Clodoaldo, sem saber ler e escrever, lavava carros. ;Não sei nem assinar meu nome. Escola era coisa de gente rica;, ele diz. No Rio de Janeiro, depois que deixou o Exército, virou vigilante de obras. Trabalhou em Copacabana e Botafogo. Encantou-se pela Cidade Maravilhosa. Apreciava uma dose de pinga. Um dia, ouviu falar que JK iria construir a nova capital. Não pensou duas vezes. Partiu para o cerrado, em 1959. Aqui, no mesmo ano, juntou sua vida com a vida de Ledroneta, mineira de Patos de Minas, que, separada, sustentava sozinha dois filhos. Clodoaldo e Ledroneta acreditaram no sonho de Juscelino. Aqui, tiveram mais três filhos. Ele virou vigia de obras. Foi o que fez a vida toda, até se aposentar, com um salário mínimo. Perto dos 60 anos, virou lavador de carros, na Câmara dos Deputados. Ganhou um crachá, com foto e tudo mais. Lá, escreveu-se: ;Lavador de autos, sem vínculo empregatício com a CD;. Sentiu-se importante. Tempos depois, levou o filho Ailton, para seguir o mesmo ofício. Depois, o neto Washington. Do governo, há mais de 15 anos, ganhou um lote em Samambaia, numa das últimas quadras. Levou uma década para construir a casa dos sonhos ; dois quartos, sala, banheiro, cozinha e paredes toda de cerâmica decorada. Encheu-a com os netos e bisnetos. Na rua, todo mundo sabia que ele lavava carros no estacionamento da Câmara. ;O povo do comércio, de tanto confiar nele, vende até fiado. Todo mundo gosta do meu pai;, conta, emocionada, a filha Sônia Paulino, 40. Sem dizer o nome Na terça-feira à tarde, o Correio foi conhecer ;seu Pernambuco;. E saber quem era, afinal, aquele homem que havia encantado a cronista. Ele contou a vida dele. Comoveu-se com as lembranças. Na segunda-feira, ajeitou-se todo, pegou um ônibus e chegou ao estacionamento da Câmara. Viu o lugar onde trabalhou por 23 anos. ;Eu gosto muito dali, mas o médico disse que eu não posso mais fazer isso;, lamentou. Ele e a escritora se falavam todos os dias. Ele a chamava de ;madame;. Ela, de ;seu Pernambuco;. Nunca um soube o nome verdadeiro do outro. Era apenas um detalhe que nunca impediu a aproximação. ;O nome é Clodoaldo? Poderia imaginar qualquer um, menos esse;, disse-me ela, na manhã de ontem, no seu apartamento confortável da 313 Norte. ;Oxente, a madame é Luci?;, indagou-me ele, na terça. Ainda assim, Luci o percebeu, mesmo invisível. Escreveu sobre suas virtudes e o bem que ele fazia a ela. Pariu o segundo livro, com ajuda do Fundo de Apoio à Cultura (FAC), do GDF. Com a história do lavador de carros que nunca aprendeu a dirigir, elegeu sua obra. Visivelmente emocionada, a escritora, amante de Rubem Braga e Adélia Prado e também pintora nas horas vagas, confessou: ;Escrevo para manter o meu equilíbrio, pra me sentir viva;. E admitiu: ;Choro por tudo. Amanhã (hoje, no lançamento), sei que vou chorar muito;. Na casa humilde de Samambaia, a filha leu a crônica para o pai que não sabe ler. Os olhos dele se encheram de lágrimas. Ela também se comoveu e constatou: ;Se todo mundo tivesse a humildade dele, o mundo não seria assim;. Clodoaldo ; ou seu Pernambuco ; apenas ouviu. Deu um sorriso desajeitado, quase envergonhado por ainda ser bom ; e honesto ; num mundo tão mau. Ajeitou o velho chapéu que o protegia no estacionamento. E ainda sonha, aos 81 anos: ;Queria voltar ao trabalho. Gosto de lavar ;meus; carros;;. A escritora descobriu aquela vida que esteve sempre ali e ninguém viu. Isso, em toda a sua obra, já teria sido sua melhor crônica. NÃO PERCA O Guardião da manhã será lançado hoje, às 19h30, no auditório do Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor), da Câmara dos Deputados. Os textos serão apresentados pelo ator Jones Schneider. As crônicas serão ;servidas; ao público acompanhadas de músicas de Renato Russo, com interpretação de Alex Souza. O livro custa R$ 20. Contato: 9556-4541

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