postado em 30/05/2009 07:50
Era pra ser mais um feriado de carnaval. Mas mudou para sempre a vida de todas as cinco pessoas que viajavam naquele carro. As que estão vivas carregarão marcas eternas. Marcas físicas muito nítidas, contáveis, palpáveis, vistas de longe. As emocionais, entretanto, são imensuráveis. A mais nova das pessoas que estavam naquele carro, uma menina de 11 anos, depois de morrer e renascer, tem ensinado, todos os dias, o sentido de continuar lutando. Esta, apesar da tragédia que permeia, é uma história de superação. E de uma força onde força não havia mais.
Domingo de carnaval deste ano. Mãe, três filhos (duas meninas e um menino) e o marido ; pai apenas do menino ; viajam para a Bahia. O marido da mãe dirige 650km o carro da família, um Corsa Sedã 1996, até chegar a Santa Maria da Vitória. A viagem foi só felicidade. As meninas se divertiram. O menininho, de dois anos e meio, era só alegria. Na terça-feira, logo cedo, todos voltaram. O marido dá o carro para a mulher dirigir no meio do caminho. Ela não tem muita experiência em estradas e estava com a carteira de motorista provisória. Havia um ano que Maria Delvam Rosa de Jesus, de 32 anos, ganhara habilitação. Antes das 7h, pegam a estrada.
A uma certa altura da viagem, na divisa de Goiás e Bahia, no Posto Rosário, a 350km do DF, o marido passa para o banco de trás. Para o banco carona, vai a filha dela, de 11 anos. Também atrás, estão o menino de dois anos e meio, no colo do pai, e a filha mais velha de Maria, de 14 anos. Tudo parecia bem.
Dezoito quilômetros depois que Maria assumiu a direção, às 10h daquela terça-feira de carnaval, a tragédia. Uma mulher que dirigia um Gol em sentido contrário dormiu no volante. Atravessou a pista e atingiu em cheio o carro da família. A batida foi de extrema violência. O carro ficou contorcido. A motorista do Gol, uma enfermeira, morreu na hora. Maria também. Artur, o menininho de dois anos e meio, voou pelo vidro dianteiro e foi arremessado a mais de 15 metros de distância do acidente. Morreu ali mesmo. As marcas de sangue ficaram dias no asfalto.
Amanda, de 14 anos, a filha mais velha de Maria, viajava atrás. Teve fratura exposta no tornozelo direito e vários cortes. Adrielly, a mais nova, 11, que vinha no banco da frente e não usava cinto de segurança, foi a mais devastada no acidente. Saiu dali com graves fraturas nas duas pernas, quebrou o braço direito, teve vários cortes no rosto e corpo, traumatismo craniano e hemorragia interna em vários órgãos. O marido de Maria sofreu apenas leves escoriações.
Inconscientes, as meninas foram trazidas em ambulância para o DF. Eram 15h30 quando deixaram o local do acidente. Adrielly, em estado gravíssimo, foi levada ao Hospital de Base (HBDF). Amanda foi internada no Hospital Regional de Planaltina (HRP), onde logo foi submetida a uma cirurgia no tornozelo. Eram 19h daquela terça-feira de carnaval quando o pai das meninas, o encarregado de manutenção de obras Cristiano Neto Ragel, de 34 anos, ; ex-marido de Maria ; soube do acidente. ;Passei a noite toda procurando pelas minhas filhas. Não sabia ao certo pra onde tinham levado as duas. As informações eram desencontradas;, ele diz. E lembra daquela noite terrível: ;Eu não acreditava que tava acontecendo aquilo comigo. Foi o meu pior pesadelo;.
Amputações
Enquanto as meninas chegavam aos hospitais, os corpos de Maria e Artur eram levados ao IML de Formosa (GO). No HBDF, Adrielly teve duas paradas cardíacas (uma durou cerca de 10 minutos). Foram mais de dez cirurgias e 15 bolsas de sangue. ;Os médicos não conseguem entender como ela tá viva;, diz o pai. Quatro dias depois de internada, começaria o drama da menina. Ela amputou o pé esquerdo. Uma semana após, a perna esquerda, à altura do joelho. No décimo dia, do mesmo jeito, a perna direita. ;Eu tinha que assinar a autorização para todas as amputações. Ela passou 35 dias em coma e 50 na UTI. Não sei como resisti a tudo isso;, fala o pai, com a voz embargada.
Entre lágrimas e pesadelo, Cristiano se dividia entre dois hospitais. Do HRP, como não havia UTI, Amanda foi transferida para o Hospital Brasília por força de decisão judicial ; o então diretor do HRP, Valdir Ximenes, interveio para isso. A direção do Hospital Brasília recebeu a menina antes mesmo que a liminar chegasse ao local. ;Diante de todo sofrimento, apesar da calamidade da saúde pública, vi que Deus não havia colocado médicos na vida das minhas filhas, mas verdadeiros anjos;, ainda consegue agradecer o pai, diante de tanto torpor. Depois, Adrielly foi para o Hospital Regional da Asa Sul (Hras), onde ficou mais 30 dias internada se recuperando de uma infecção. Antes, porém, ainda teve que fazer uma traqueostomia ; abertura cirúrgica pelo pescoço até a traqueia, para permitir a passagem de ar e remoção de secreções do pulmão.
Amanda, depois que deixou o Hospital Brasília, conseguiu uma vaga no Hospital Sarah do Aparelho Locomotor. Ali, fez cirurgia para retirar os pinos no tornozelo. Espera começar a longa jornada de fisioterapia para recuperar os movimentos. As sequelas serão permanentes, a menina sabe disso. A luta de Adrielly será ainda maior, ela também tem consciência disso. Aos 11 anos, a menina que perdeu as duas pernas aprendeu que a vida é feita de luta. E uma dose brutal de sofrimento. Mas aprendeu também que no meio disso tudo pode haver esperança.
Patins e shopping
Durante uma consulta no Hras, na tarde de ontem, a médica Renata Santarem, uma das que cuidaram de Adrielly durante a internação no hospital, admitiu, comovida: ;Ela é um exemplo de determinação. Tem uma vontade de viver muito grande;. A menina ouve em silêncio. A traqueostomia emudeceu a sua voz. Mas ela ainda sorri. E o sorriso é bonito. Lá fora, enquanto o pai empurrava sua cadeira de rodas, ela me diz, colocando o dedo na passagem de ar, para que a voz fique mais firme: ;Eu vou ficar boa, vou voltar a andar quando colocar as próteses;. Pergunto-lhe qual seu maior desejo, depois que voltar a andar com suas pernas emprestadas. Ela me responde: ;Andar de patins e passear no shopping, como eu fazia antes;.
É a vez de o pai sorrir. A irmã, Amanda, caminha apoiada nas muletas. Não vê a hora de poder colocar os dois pés no chão. ;Queria voltar à escola. Ia fazer a 6ª série, mas não posso estudar esse ano;, lamenta. A adolescente usa uma camiseta com a foto da mãe e do irmãzinho, mortos no acidente. No peito, a frase: ;Saudade, sim. Tristeza, não;. Indago quais são os planos dela agora. Amanda me encara, firma-se na muleta e diz, com certeza comovente: ;Só quero seguir em frente;. Insisto em saber o que é ;seguir em frente;, depois daquela tragédia toda. Ela devolve: ;É tocar a vida. Nunca perder a esperança;.
Cristiano, o pai, mudou a vida completamente. Casado pela segunda vez, sem filhos no segundo casamento, teve que trocar o aluguel. Deixou um apartamento pequeno onde morava para uma casa maior, no Gama. Dedica-se em tempo integral às duas filhas. Divide-se entre hospitais, quase todos os dias. A despesa aumentou consideravelmente. São remédios e produtos de higiene que antes não existiam. A cadeira de rodas, por falta de recursos, comprou a mais barata, a mais difícil de empurrar, por R$ 250. ;Foi o que pude;, desola-se ele.
Entre um exame e outro, uma consulta ou outra de uma das meninas, ele corre pra não perder o emprego. ;Há três meses que estamos de hospital em hospital;, ele diz. E confessa, com os olhos marejados: ;Eu choro todo dia. Choro longe delas, às vezes até dirigindo. É a forma que encontrei pra desabafar;.
Aos 34 anos, Cristiano também aprendeu que o sofrimento é capaz de criar uma força interna arrebatadora: ;Só tenho a agradecer a Deus. Ele me deu uma segunda chance. Me devolveu minhas duas filhas. Não sei se teria suportado se uma delas morresse. Elas são o meu tesouro;. É essa força que o faz dizer à filha sem pernas que ela vai voltar a andar, de qualquer forma. ;Um dia, ela me perguntou: ;Pai, tô sentindo o meu dedo do pé. Eu vou andar de novo?;. Eu respondi: ;Claro que sim. Papai do céu vai fazer você voltar a andar como antes;.; Adrielly acreditou no pai. Amanda acredita também que logo deixará as muletas.
Na porta do Hras, depois de mais um exame de raios X, na volta pro Gama, a menina de cadeira de rodas me disse, colocando o dedo na abertura da traqueostomia, para que a voz saísse mais forte: ;Eu sonho quase toda noite com minha mãe. Ela pergunta se eu tô bem, se vou colocar as próteses. Ela tá sempre viva e sorrindo;. Pergunto o que ela sente quando sonha com a mãe. Ela me responde, com olhar sereno e um esboço de meio sorriso. A resposta dela embarga a voz de quem pergunta: ;Eu acho que sinto Deus;. Há histórias que são escritas como se o chão se partisse ao meio.
» SOLIDARIEDADE
Quem puder ajudar Adrielly com uma nova cadeira de rodas pode ligar para Cristiano. Contato: 8402-0967