postado em 01/06/2009 07:37
A violação dos direitos da infância se mostra de diferentes maneiras nas rodovias do Entorno. Cada forma é mais cruel. As meninas têm o corpo violado por caminhoneiros, motoristas e fazendeiros. Mas também abandonam a escola, perdem o vínculo com a família e se expõem a inúmeros riscos. O futuro e a cidadania não poderiam estar mais comprometidos. O combate da exploração, no entanto, não é simples. Antes de colocar as meninas nas boates e em bordéis, a rede de aliciadores as prepara.
O discurso é sempre o mesmo e passa pela negação da idade e da exploração, assim como pelo medo constante. Ao serem abordadas, as garotas mostram documentos falsos e, novidade nas estradas, carteiras de trabalho. O documento é de expedição imediata e mais fácil de falsificar a idade do que uma carteira de identidade, que é plastificada. Quem arruma os documentos são os próprios aliciadores e, com isso, dificultam o trabalho dos investigadores.
As meninas dão desculpas ensaiadas. A mais comum é a que estão na boleia do caminhão ou no banco do passageiro por causa de uma inofensiva carona. ;Fica difícil comprovar o crime. Tudo conspira contra, desde a escuridão das rodovias até a área percorrida;, admite o inspetor Marcos José Cordeiro, chefe do Núcleo de Operações Especiais da Polícia Rodoviária Federal no DF.
Mesmo com os desafios, de janeiro do ano passado até abril deste ano, 97 meninas e meninos foram encontrados pelos patrulheiros da PRF no DF em situação de exploração sexual. Os dados foram consolidados a pedido do Correio. ;Durante o dia, as garotas ficam nas paradas de ônibus. É difícil configurar o crime;, conta o inspetor Marcos Cordeiro.
Estupro
Morena*, moradora do Céu Azul, na divisa do DF com Goiás, passa os dias nas paradas de ônibus da rodovia DF-290. Já faz três anos que frequenta o lugar. Quando algum carro da polícia passa, faz sinal para o ônibus que está a caminho e disfarça. Hoje, aos 17 anos, tem dois filhos e um histórico de violência. ;Já aconteceu de eu não receber o dinheiro. Reclamei e quase morri de apanhar;, conta. ;Já fui estuprada três vezes. Os caras acham que, como a gente é garota de programa, tudo pode;, completa.
A reportagem do Correio conversou com a jovem na última quarta, seguindo pelos principais pontos de exploração sexual de crianças e adolescentes, de acordo com o monitoramento da PRF. Além da rodovia, foram encontradas meninas em postos de combustível do Jardim Ingá (bairro de Luziânia), depois das 23h, e em bordéis em Cristalina, localidades cortadas pela BR-040 (Brasília-Rio de Janeiro).
Morena carrega um semblante sofrido. O aspecto de fragilidade é completado pelo consumo de drogas e álcool, além das poucas horas de sono. ;Fico na rodovia mais de dia, mas, quando não consigo dinheiro, volto de madrugada;, afirma. As saídas variam de acordo com o rosto do cliente e a marca do carro. O máximo cobrado não passa dos R$ 25. ;Só não aceito R$ 5 porque é muita humilhação.;
Crack
Morena sempre está na companhia de Isabel*. Aos 15 anos, a menina faz sucesso pela pouca idade. ;Os caras gostam de menina mesmo;, disse um homem do Céu Azul (periferia do Novo Gama) que se apresentou como responsável pelas meninas. Enquanto acendia um cachimbo branco com uma pedra de crack, ele explicou que as duas amigas tinham uma rotina a cumprir. ;Elas ficam indo e voltando. Essa aqui (Morena) é até feinha, mas está o tempo todo no asfalto.;
Na quarta-feira, passava das 18h e Isabel entrava na cabine de um caminhão, a pouco mais de 2km da casa dos pais, em Céu Azul. Ela é vítima da exploração sexual há dois anos e a família, humilde, não sabe. Acham que ela está na escola. A menina, porém, parou de frequentar a sala de aula na 4ª série, quando começou a fazer programas. ;A gente cuida uma da outra;, observou Morena, enquanto o caminhão com a amiga rumava em destino a um descampado em Valparaíso.
A jovem não soube explicar, no entanto, o que faria caso a amiga não voltasse. Afinal, o medo da polícia é grande e os pais desconhecem a prostituição.
As dívidas também são comuns nos estabelecimentos à beira das estradas. Nos inferninhos, bordéis e boates das rodovias, elas têm que se sujeitar às regras dos locais e vivem em esquema de semiescravidão. ;A gente dorme e come aqui. E trabalha todos os dias. Na segunda-feira, fecha, mas se alguém bater aqui a gente acaba fazendo programa;, conta Jaqueline*, de 15 anos. Na quarta-feira, às 22h, uma caminhonete de luxo parou em frente à boate onde ela trabalha, a menos de 10km de Cristalina. O homem, que aparentava ter 35 anos, convidou a adolescente a acompanhá-lo à fazenda que tem ali perto. ;Não posso ir. A dona daqui não deixa a gente sair;, disse. Ele acabou ficando na boate e pagou R$ 25 pelo aluguel do quarto durante o programa, que durou cerca de meia hora.
Inferninhos
Além de fazendeiros, Jaqueline conta que também tem como clientes caminhoneiros. São quatro inferninhos lado a lado, com som alto tocando de pagode à música sertaneja. Em cada um deles, histórias de abandono e de violência. A da própria adolescente é um resumo triste da situação. Quando tinha 10 anos, sofreu abuso sexual do tio paterno, em Unaí (MG). ;Boa parte dos casos de exploração sexual começa com a violência doméstica e abusos cometidos por parentes e vizinhos;, avalia a psicóloga Ana Beatriz de Andrade. ;O atendimento nesses casos é complexo e fundamental.;
Em Unaí, a menina não encontrou amparo psicológico. ;Contei para a minha avó, que colocou ele (o tio) para fora de casa, mas ninguém falou comigo. Depois daquele dia, já tinha transado e deixei de ser menina;, lembra. Jaqueline passou a usar batom e salto alto. ;Aí uma mulher me chamou para fazer programa. Há um mês estou aqui.;
O fato de estar tão longe de casa configura outro crime. A secretária executiva do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Criança e Adolescente, Neide Castanha, destaca que os bordéis de estrada têm características comuns em todo o país. ;A dinâmica dos puteiros não é a da comunidade. Nem o cliente mora ali perto nem a oferta é dali;, explica. ;Isso leva a outro drama. O tráfico de pessoas não existe só para fora do país. Temos o tráfico interno que deixa a situação ainda mais complexa.;
Álcool
Além de explorar sexualmente meninas em boates às margens das rodovias, os cafetões investem em outra ilegalidade: o consumo de bebida alcoólica. ;Os donos da boate ganham dinheiro na hora de alugar os quartos e com a bebida que a gente convence os caras a tomar;, relata Juliana*, de 17 anos.
Assim que os clientes chegam, são incentivados a tomar algo ;quente;. Por quente, entende-se uísque, conhaque e rum. ;Cerveja é barato demais. O negócio é pedir coisa cara;, completa a adolescente. Os homens acabam comprando as bebidas e pagando doses para as meninas.
A bebida vira uma muleta para que elas enfrentem a labuta que a Organização Internacional do Trabalho considera uma das piores formas de trabalho infantil. Da bebida, muitas seguem para as drogas. O consumo de crack é um dos combustíveis da exploração sexual.
Morena*, aos 17 anos, faz programas com motoristas para comprar drogas e ainda é explorada sexualmente pelo traficante em troca de pedras. Na última quarta, o relógio marcava 18h e ela estava ;noiada; às margens da rodovia de acesso ao Novo Gama. Quando o efeito começou a passar, caminhou 200m até um boteco no Céu Azul e ali acendeu um cachimbo com a pedra.
O QUE DIZ A LEI
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tem artigos que protegem meninos e meninas de crimes sexuais. No caso da exploração sexual, quando há uso de crianças e adolescentes com fins comerciais, quase sempre há a participação de um aliciador, pessoa que lucra intermediando a relação entre a criança ou o adolescente e o usuário ou cliente. É caracterizada também pela produção de materiais pornográficos. O ECA prevê no Artigo 244 uma pena de quatro a 10 anos de cadeia e multa a quem submeter criança ou adolescente à exploração sexual. Incorrem nas mesmas penas o dono, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifique a submissão de criança ou adolescente às práticas sexuais. Vale ressaltar que relação sexual com qualquer pessoa com menos de 14 anos é violência presumida, ou, segundo a lei brasileira, um estupro. Pelo Artigo 224 do Código Penal, menores de 14 anos não têm maturidade para consentir uma relação sexual.