postado em 13/06/2009 08:04
Policiais militares de Formosa (GO) assumem a morte de 15 pessoas em um ano e meio. As vítimas, segundo eles, eram bandidos de alta periculosidade. Morreram em confrontos armados, ainda de acordo com os militares. Agora, no entanto, a Polícia Civil goiana investiga a possibilidade do envolvimento de PMs no sequestro de um médico veterinário e fazendeiro do município, sem ficha criminal. Os investigadores se baseiam no fato de um dos carros usados no rapto do homem de 56 anos, desaparecido há três meses, ter sido encontrado em poder de um soldado. Ele alega ter comprado o veículo de João Batista Brandão Amerces, 36 anos, preso sob acusação de participação no sumiço e provável assassinato do morador da cidade de 90 mil habitantes, localizada a 79km de Brasília.
O soldado investigado diz ter adquirido o Astra branco após o sumiço do fazendeiro José Eduardo Ferreira. O homem foi visto pela última vez em 10 de março, quando saiu de casa pela manhã para visitar duas lojas de produtos agropecuários em Cabeceiras de Goiás, a 70km de Formosa. Retornaria à sua fazenda no mesmo dia. Desde então, os parentes não têm mais notícias dele. Policiais civis encontraram o carro de José Eduardo abandonado perto do Setor Vale do Amanhecer, área rural de Formosa. O Fiat Uno estava com as portas abertas, sem ninguém dentro. Moradores afirmam à polícia ter visto um Fox e um Astra, ambos brancos, perto do Uno. Nenhum Fox ainda foi apreendido.
Depoimento
Em depoimento, testemunhas contaram ter presenciado o fazendeiro reagir à abordagem de quatro homens e saído do bagageiro do Astra em uma tentativa de fuga. Elas reconheceram João Batista como o motorista do veículo. Contaram que João correu atrás de José Eduardo. João agrediu o fazendeiro e o colocou de volta no Astra, ainda segundo testemunhas. Com base nas informações, a Polícia Civil de Formosa prendeu João e América Cristina Gontijo de Sousa, 29, em 24 de março, por ordem da Justiça goiana. Os dois estão no cárcere da Delegacia Estadual de Investigações Criminais (Deic), em Goiânia, desde 25 de março. Em 3 de abril, a Justiça acatou o pedido da polícia e expediu a prisão preventiva, que prorrogou por mais 30 dias a permanência de ambos na cadeia.
Os agentes e delegados de Formosa saíram do caso por falta de pessoal e de equipamento. O inquérito está em Goiânia, a cargo do delegado Douglas Pedrosa, da Deic. Ele só começou a ouvir as testemunhas há três semanas, quando esteve na cidade do Entorno do Distrito Federal para trabalhar como plantonista. O delegado não fala sobre a investigação. Conta apenas que os dois presos negam o sequestro. Mas Pedrosa diz ter provas que os incriminam. Entre elas, as testemunhas.
Douglas Pedrosa trabalha com a hipótese de José Eduardo estar morto, pois não houve pedido de resgate nem qualquer telefonema para os parentes. No boletim de ocorrência, o filho caçula do fazendeiro, Fernando Henrique Ferreira, 25, disse que o pai esteve no dia do desaparecimento em um bar de Cabeceiras de Goiás bebendo com amigos. Lá, o fazendeiro teria recebido a ligação de uma mulher e combinado de se encontrar com ela em Formosa. Para a polícia, trata-se de América de Sousa, que costumava se apresentar como policial civil, sem nunca ter sido.
MistérioM
O motivo do sumiço de José Eduardo é um mistério. Apesar da suspeita de assassinato do fazendeiro, não há pistas do paradeiro do corpo. Agentes de Formosa descobriram apenas que a vítima tinha uma dívida de R$ 35 com outro fazendeiro da cidade, rica por causa da atividade agrícola. Há três semanas, grandes produtores rurais lideraram uma manifestação em favor da PM e do secretário de Segurança Pública de Goiás, Ernesto Roller. Deputado estadual pelo PP, ele se recusa a dar entrevista sobre a matança em Formosa, sua terra natal e base eleitoral. O Correio publica reportagens sobre o tema desde 11 de maio.
Das 15 mortes assumidas por policiais militares de Formosa, uma foi comemorada na cidade e em Goiânia, onde o comando da corporação exaltou o desfecho do caso por meio do site oficial. Um oficial do 16º Batalhão, baseado no município do Entorno, abriu processo por ;ato de bravura; e sugeriu medalha de heroísmo aos oito PMs envolvidos na ocorrência de 1º de maio de 2008. Ela começou com um roubo a uma lanchonete às margens da BR-020, em território do Distrito Federal, e terminou na morte de um dos assaltantes, Agenor de Sales Souza, 23 anos. Passado um ano, o Correio teve acesso ao exame cadavérico do rapaz. O laudo é claro: ele morreu com um tiro de fuzil na cabeça, disparado ;a curta distância;, com as mãos em ;sinal de defesa;.
A morte ocorreu em uma estrada de terra, na divisa entre Formosa e Planaltina (DF). O carro em que Agenor estava, dirigido pelo colega Hudson Roberto de Lima Sousa, 19 anos, acabou cercado por quatro carros da PM goiana. Os dois saíram do veículo atirando, segundo os militares. Não houve testemunhas, mas o exame no corpo de Agenor revela que ele pôs as mãos na frente do rosto, quando os policiais se aproximaram. Uma bala de fuzil quebrou o polegar esquerdo. Outra perfurou a lateral direita do rosto dele. Hudson levou um tiro no peito. Os PMs disseram ter acionado o Samu, que alega desconhecer o chamado. Os militares transportaram os baleados. Agenor chegou sem vida ao Hospital Municipal de Formosa. O outro sobreviveu.
Passagens
Diferentemente do que os PMs propagaram em entrevistas e no site da corporação, a dupla não tinha várias passagens pela polícia. Agenor nunca havia sido preso nem acusado de crime. Ele era soldado da Marinha desde 2005. Morava em uma casa de Taguatinga Norte com os pais, um irmão e o filho de 3 anos. Os familiares não duvidam que o rapaz tenha participado do assalto aos clientes da lanchonete, de quem foram levados R$ 1,7 mil, bolsas e celulares. ;O Hudson me confirmou o roubo. O que busco é uma explicação para a morte do meu filho. Gostaria de saber como ele morreu e quem o matou. Mas já desisti. A polícia de Goiás não me dará essas respostas;, desabafou a mulher de 42 anos, tia do menino, que o criou como filho legítimo, desde a morte da mãe biológica dele, há 13 anos. Ao contrário de Agenor e Hudson, dois dos oito PMs envolvidos na perseguição responderam por crimes já quando vestiam farda. (RA)
Entenda o caso
Crimes sem testemunhas
Policiais militares são responsáveis por 20% dos homicídios registrados em Formosa (GO). Admitem ter tirado a vida de 10 das 48 pessoas assassinadas no ano passado. Outros cinco casos ocorreram no segundo semestre de 2007. Os PMs alegam confrontos com bandidos armados. A maioria das vítimas não respondia por delitos graves e morreu com ao menos um tiro na cabeça.
Em quase nenhuma suposta troca de tiros houve moradores como testemunhas. Nenhum dos casos em que os PMs aparecem como autores é apurado por agentes do município. O Ministério Público goiano (MPGO) e a Polícia Civil abriram investigações sigilosas na capital do estado.
Até o major Ricardo Rocha Batista assumir o batalhão de Formosa em agosto de 2007, o município não registrava mais que uma morte cometida por PM por ano. Nem havia presenciado ação de encapuzados. Antes de Formosa, o major esteve em Rio Verde (GO), onde é acusado de executar cinco condenados que haviam fugido da cadeia e de matar com cinco tiros um homem desarmado. (RA)
A vítima
José Eduardo Ferreira
56 anos, médico veterinário e fazendeiro. Foi visto pela última vez em 10 de março, quando saiu de casa pela manhã para visitar duas lojas de produtos agropecuários em Cabeceiras de Goiás, a 70km de Formosa.