postado em 14/06/2009 08:49
Há 37 anos, no Hospital Regional da Asa Sul (Hras), Luzia Soares pariu sua primeira filha. Faxineira, a moça de Ceilândia contava 25 anos e passava muita dificuldade financeira para criar a menina sozinha. A irmã da dona da casa onde Luzia faxinava, um dia, de visita, viu aquele bebê. Encantou-se com a criança de pele morena, olhos negros e graúdos. Soube das privações da moça. E perguntou, assim do nada, se ela não daria sua filha para que ela criasse. A mulher que acabara de fazer essa pergunta era mineira de Curvelo, mãe de 12 filhos, casada com um mestre de obras, morava em Taguatinga, na QNG 2, e atendia pelo nome de Diva.
Luzia, a mãe da menina, concordou que ela criasse sua filha. Só pediu que nunca a impedisse de vê-la. Diva concordou integralmente. E o bebê, então com três meses de vida, partiu para a casa da mulher que já havia parido 12 filhos. Ao chegar à casa modesta, os filhos de Diva fizeram festa àquela criança miudinha. Ana Paula Soares ; nome da certidão de nascimento dado pela mãe biológica ; ganhara um novo lar. Fátima, uma das filhas mais velhas, tinha 18 anos quando Ana Paula entrou para a família. Logo se afeiçoou à menina. Cuidou dela como se mãe também fosse.
Diva, que era bordadeira, criava os filhos ensinando a eles que tudo podia ser dividido. ;Onde comem três, quatro também podem comer;, ela pregava, como um mantra. Ana Paula cresceu naquela casa modesta. Diva era muito humilde, mas, mesmo com pouco estudo, tornou-se uma mulher elegante e sábia. A vida embelezou Diva com o melhor que pode existir numa pessoa: a humanidade. Ana Paula chamou Diva de mãe, a primeira palavra que pronunciou. Geraldo, o marido de Diva, de pai. E cresceu sabendo que tinha 12 irmãos.
A recém-nascida foi batizada. A madrinha? Dona Diva, claro! A mãe biológica de Ana Paula, em Ceilândia, teve mais dois filhos. Diva, mais uma vez, ajudou a criar os dois. ;Às vezes, ela deixava de comer pra que a gente pudesse se alimentar;, lembra Ana Paula. Os anos se passaram. A menina virou mulher. Estudou. Fez magistério. Depois, a faculdade de educação física, que parou no terceiro ano. Prestou concurso. Virou funcionária pública, de nível médio.
Os anos também passaram pra Diva. Ela virou líder de grupos da igreja e da terceira idade. Ajudou quem passou pela sua porta. Nunca negou um prato de comida a quem quer que fosse. Um dia, aos 64 anos, Diva sangrou sangue de morte. Levada às pressas ao hospital, o diagnóstico: câncer de útero. A mulher que pariu 12 filhos e criou tantos outros lutou para não morrer. Pelejou dois anos contra o mal que tomaria depois outros órgãos do seu corpo. Emagreceu. Os olhos ficaram tristes. Ana Paula cuidou da mãe adotiva do começo ao fim.
Em 8 de março de 1995 ; Dia Internacional da Mulher ; , Diva não resistiu. Morreu aos 66 anos. A família numerosa ; filhos, netos e bisnetos ; chorou choro de dor e desalento. Geraldo, o marido, que morreria cinco anos depois, sofreu calado. Todos, à sua maneira, ficaram órfãos do colo de Diva. Ana Paula, então com 24 anos, se desesperou. Chorou choro de quem, de uma hora pra outra, se sente completamente abandonada. ;Eu pensei que fosse morrer junto;, lembra. E admite a fragilidade: ;Ela era o meu porto seguro;. Ana Paula perdeu o afeto e a proteção da mulher a quem disse a primeira palavra. No Campo da Esperança, Diva foi enterrada.
Por uma causa
A vida, inexoravelmente, seguiu. Ana Paula, já trabalhando, deixou a casa de Diva. Tempos depois, casou-se. Morou numa zona rural perto do Varjão, atrás do Lago Norte. Mais recentemente, mudou-se para a Asa Norte. Há dois anos e oito meses, teve seu primeiro filho, Thiago. E um dia, ainda na zona rural, pensou que podia fazer alguma coisa para ajudar aquelas crianças e suas mães, quase sempre domésticas e carentes.
Com ajuda do marido, Gladston Nogueira, 46 (ele lhe emprestou R$ 60 mil, dinheiro reservado para a compra do imóvel do casal ; até hoje moram de aluguel), ela ergueu, em seis meses, uma casa espaçosa no Núcleo Rural Córrego do Palha. Um pedaço do terreno foi cedido por uma família que mora ali há anos. Depois de erguida a casa, veio o mutirão de amigos a fim de mobiliá-la. De doação em doação, chegaram a geladeira, o fogão, as mesinhas, as camas. Chegou até uma casinha de madeira, colocada na entrada da casa de verdade. Depois, a corrida atrás de documentação legal. Regimento. Estatuto. Burocracia. E finalmente os papéis ficaram prontos.
Ali, há dois anos, naquele lugar onde não existe asfalto, galos cantam ao amanhecer e vacas comem capim, foi erguida uma creche com portas azuis, verdes e vermelhas. Tem cheiro de criança. Painel colorido com os aniversariantes do mês, salinha para atividades de pintura e vídeo. Improvável? Verdade. Ana Paula, a filha adotiva de Diva, construiu um lugar onde crianças comem (cinco refeições diárias), brincam, dormem, fazem tarefas da escola e ainda acreditam em faz de conta.
Logo na entrada, lê-se, numa faixa: ;Creche Dona Diva;. Foi esse o nome que Ana Paula deu à sua obra. ;É o ponto inicial de toda uma história que quero fazer daqui pra frente;, ela diz. E sentencia: ;É uma forma de gratidão por tudo que ela fez por mim e pelos outros. Assim como fui ajudada, hoje tenho obrigação de ajudar;. A creche recebe 26 crianças, de 1 ano e oito meses a 9 anos, das 7h às 17h. Todos são da zona rural, filhos de mães domésticas, que precisam trabalhar fora, e pais pedreiros, mecânicos, auxiliares de serviços gerais.
Céu em festa
Para dar conta de toda essa meninada, quatro monitoras foram contratadas. Três são dali mesmo. A monitora principal, a responsável pelo lugar na ausência de Ana Paula, Nilva Tavares, 36, mora em Planaltina e pega dois ônibus para chegar àquele lugar que muita gente não sabe nem que existe. ;Sempre gostei de trabalhar com criança, já fazia atividades na Pastoral da Criança. Aqui, elas precisam muito desse tipo de ajuda, mais do que em qualquer outro lugar;, reflete.
Cada uma das quatro monitoras da creche recebe um salário mínimo. Para manter o pagamento, Ana Paula e sua rede de amigos improvisam bazares, almoços beneficentes, festas. ;As mães das crianças da creche contribuem com 70 reais, que já é muito para algumas delas. Luto todos os dias para fechar convênios, arrumar parcerias, buscar apoios. Se conseguir, elas deixarão de pagar imediatamente. Meu sonho é que nenhuma mãe tenha que se sacrificar para deixar seus filhos aqui;, torce a fundadora.
Um hipermercado da Asa Norte ajuda com frutas e verduras. Parceria com o Programa Mesa Brasil, do Sesc-DF, garante alimentos não perecíveis ; arroz, feijão, macarrão. Ainda assim, Ana Paula corre atrás de carne, frango, leite, material de limpeza e pedagógico. ;É uma luta diária;, assume. Mas ela não desiste. ;Meu desejo é abrir, em cada cidade do DF, uma creche que leve o nome da dona Diva.; E diz, emocionada: ;Se minha mãe estivesse aqui, estaria lutando junto comigo;. Em seguida, olha as fotos que carrega da mãe em vários álbuns e comenta, passando o dedo indicador sobre imagem de Diva: ;Mas ela deve tá olhando tudo lá de cima. O céu tá em festa;.
Fátima Dantas, de 54 anos, uma das filhas biológicas de Diva, lembra da mulher que se dedicou aos outros e incentiva a irmã no projeto. ;Ela quer eternizar um trabalho que minha mãe sempre fez.; Basta olhar nas carinhas de Lívia, 8, Luiza, 6, Viviane, 7, e Rodrigo, 9, para ver o contentamento da meninada. ;Eu faço o dever da escola, vejo DVD, ouço música e me alimento bem;, vibra Rodrigo. Lívia emenda: ;É o melhor lugar que a gente tem aqui;.
Naquele pedaço de chão, depois do Varjão, escondido atrás do Lago Norte, uma mulher levantou uma casa, pintou as portas com cores vivas, levou pintura, música, filme e comida. Fez um monte de crianças acreditar que sonhar ainda é possível. O céu realmente está em festa. Dona Diva que o diga.
Solidariedade//Toda ajuda é bem-vinda à creche.
Contato: Ana Paula ; pelo telefone 8406-3589 ou pelo e-mail crechedonadiva@gmail.com