Cidades

Lei seca: para quem fica, restam a dor e a revolta

Famílias que perderam parentes em acidentes de trânsito tentam superar o trauma, cuidando dos órfãos ou fazendo campanhas a fim de prevenir novas tragédias. Algumas não creem na Justiça

postado em 17/06/2009 08:03
O trânsito brasileiro faz 40 mil vítimas por ano. É como se a cada 365 dias, caíssem 200 aviões como o Air Bus A330-200 da Air France. Contar os mortos, tabular os números e alimentar as estatísticas é fácil. Difícil é encontrar palavras que façam uma criança entender que a mãe dela nunca mais voltará. Difícil é dar um jeito de domar a saudade de quem partiu e a revolta com a demora na punição dos culpados. A dimensão da tragédia parece ainda mais cruel quando as mortes ocorrem em consequência da conduta do motorista que dirige alcoolizado. O Departamento de Trânsito (Detran) do Distrito Federal está entre os que têm as estatísticas mais completas. Apesar disso, não existe levantamento que revele quantos condutores alcoolizados provocaram acidentes. O Correio apurou que, de 2004 para cá foram pelo menos 22 casos com repercussão na imprensa. A reportagem localizou parentes de vítimas de motoristas alcoolizados. Encontrou pessoas que relutaram em mexer na ferida. E outras que transformaram a dor em bandeira de luta. Em comum, um misto de esperança e descrença na Justiça. Um motorista que bebeu e achou que estava bem para dirigir deixou órfã de filha a contadora Butitiere Fernanda de Assis, 26 anos. ;Assim que ela se foi eu pensei que estivesse enlouquecendo. Só pensava em morrer;, diz aos prantos (leia depoimento). As fotos de Giovanna Vitória de Assis, 5 anos continuam espalhadas em porta-retratos pela casa. Os cartazes e panfletos usados num protesto na época do acidente estão guardados. E são usados a cada vez que o grupo sai para fazer campanha educativas. Com o slogan Álcool e direção mata, se beber não dirija, a família espera evitar que outros passem pela mesma tragédia. Eles fizeram 40 mil panfletos com a história da menina. ;Às vezes, a gente chega nos bares, começa a falar e as pessoas fazem piadas. Fico me perguntando: quantos ainda terão que morrer para a lei ser cumprida?;, pergunta Valquíria, avó da garota. A babá Francilda da Paz, 36, que segurava a mão de Giovanna no momento do acidente, sobreviveu. Em dezembro passado, ambas atravessavam uma faixa de pedestres em Planaltina para buscar os filhos da babá na escola. Foram atropeladas no local onde deveriam estar em segurança. Passados seis meses do acidente, Francilda caminha com dificuldades. Ganhou cinco pinos no tornozelo esquerdo e ainda sente dores no pé e na clavícula, também fraturada no acidente. ;A gente se acostuma com a dor física, mas pelo menos estou viva. Dor maior é ver o sofrimento da família da Giovanna.; Buraco A morte do aposentado José Gonçalves de Souza, aos 70 anos, foi um golpe duro para a família. O homem cheio de disposição deixou mulher, seis filhos e 12 netos. ;A morte dele foi como se tivesse aberto um buraco em nossas vidas;, resume José Mário Santiago, 40 anos, filho do aposentado. A fim de resguardar a mãe e os irmãos, José Mário não quis reunir a família para a entrevista. ;É muito sofrimento e a saúde da minha mãe não está boa. O problema de diabetes se agravou e ela anda muito nervosa. E tenho uma irmã que ainda chora muito a morte do pai;, justifica. Ele atendeu a reportagem de pé, no portão de casa. Falou pouco, segurou as lágrimas. ;No caso do meu pai, a gente sente uma descrença na Justiça muito grande. Como todo mundo é religioso, entrega nas mãos de Deus.; Céu De uma só vez, a irresponsabilidade de um motorista marcou a história de duas famílias do Novo Gama. Deixou órfãs de pai e de mãe seis crianças. O casal de namorados Manoel da Silva, 32, e Júlia Alves da Silva, 24, morreu ao ser atropelado enquanto atravessava a faixa de pedestres na DF-290, entre Santa Maria e Céu Azul, no Novo Gama (GO), em 29 de março deste ano. De uma hora para outra, a servente de pedreiro Divina Helena Pereira Rodrigues, 35, se viu sem a irmã caçula. Os quatro sobrinhos, de 1 ano e 4 meses a 12 anos, ficaram órfãos de mãe. ;Não deixei eles irem ao velório. Queria que guardassem a imagem dela viva. Não dentro de um caixão;, conta (leia depoimento). Difícil foi explicar às crianças que a mãe não voltaria. ;Eles perguntavam: ;Cadê a mamãe, quando é que ela vai chegar do trabalho?; Eu respondia: ;ela não volta mais porque está morando com Deus, lá no céu;. Depois, ia para o quarto e chorava;, relembra. Numa casa de dois quartos, numa invasão do Pedregal, Divina cria três dos quatro sobrinhos ; um deles foi morar com o pai ;, mais os seus quatro filhos e um enteado do segundo casamento. Manoel da Silva, o namorado de Júlia, também deixou dois filhos, um de 3 anos e outro de 2. A família de Manoel também sente dificuldade em tocar no assunto. ;Se pudesse, eu nem falava mais disso;, diz Maria Sofia da Silva, 40 anos, uma das irmãs dele.
Butitiere Fernanda de Assis, 26 anos, mãe de Giovanna Vitória de Assis, 5, atropelada e morta por um motorista alcoolizado ;Assim que minha filha se foi eu pensei que estivesse enlouquecendo. Só pensava em morrer. Eu pedia muito a Deus para morrer. Ficou um buraco no meu coração. Fui para a casa de uma tia, no Rio de Janeiro, porque precisava conversar com alguém que tivesse perdido um filho, e eles passaram por isso. Meus tios me ajudaram a entender que eu precisava me libertar daqueles pensamentos. Um tempo depois me deu uma vontade enorme de tatuar o rosto da minha filha. Escolhi uma foto dela e tatuei no meu peito. Isso acalmou um pouco o meu coração. Vai fazer seis meses que perdi a minha filha e só consegui aceitar que ela morreu há pouco mais de um mês, com ajuda da terapia. Quero vê-lo (o condutor do carro) atrás das grades. As pessoas precisam entender o sofrimento que podem causar às famílias ao beber e dirigir.;
Divina Helena Rodrigues, 35 anos, irmã de Júlia Alves da Silva, 24, atropelada quando atravessava uma faixa de pedestres com o namorado ;Não deixei eles (os sobrinhos) irem ao velório. Queria que guardassem a imagem da mãe viva. Quando souberam, ficaram desesperados. O Lucas até hoje vai para o quarto e chora. A Duda, na primeira semana, ficava perguntando se a mãe iria voltar do trabalho. Com o tempo, foi acostumando com a ausência e não perguntou mais. Quando consolava os meninos, eu me fazia de forte. Mas sozinha, entrava em desespero e tive depressão. Esse motorista matou uma mãe de família e não aconteceu nada. A história acabou. Morreu com ela.;
Memória Confira alguns dos acidentes com mortes ocorridos no DF em que, segundo os autos, ficou constatado que o motorista envolvido havia ingerido bebida alcoólica: 2009 7 de junho ; Pedro Gonçalves da Costa, 16 anos, foi atropelado na W3 512 Sul. O motorista que o atingiu foi o estudante de administração Bruno Morais Dantas, 21. O universitário voltava de uma festa no Lago Sul e não parou para prestar socorro. O teste do bafômetro acusou 0,53 miligrama de álcool por litro de ar expelido dos pulmões. Bruno passou cinco dias preso, mas conseguiu liberdade provisória na Justiça. Como está ; O motorista foi indiciado por homicídio doloso. Os autos foram encaminhados para a Justiça. 7 de junho ; Elias Rodrigues da Silva Neto, 28, estava de bicicleta quando foi atropelado por Wanderson Nunes Silva, 33, em Ceilândia Sul. O teste do bafômetro acusou 0,39 miligrama de álcool por litro de ar. Wanderson acabou autuado por dirigir embriagado e por homicídio culposo (quando não há intenção de matar). Pagou fiança de R$ 12,8 mil e responderá ao processo em liberdade. Como está ; Os autos estão na 2ª Vara Criminal de Ceilândia. Ainda aguarda-se o inquérito da 15ª Delegacia de Polícia, que investiga o caso. 23 de maio ;Yasmin Alice Martins Jesus, 5, foi atropelada em frente à casa da família, em Taguatinga. O motorista Ítalo Pinheiro de Almeida, 26 anos, fugiu sem prestar socorro. Apresentou-se em 25 de maio à polícia, na 17ª DP (Taguatinga). Admitiu ter ingerido meia garrafa de cerveja long neck por volta das 11h, bem antes dos fatos. Prestou depoimento e foi liberado. Em 3 de junho, o Tribunal de Justiça da cidade acatou o pedido de prisão preventiva solicitado pelo delegado-chefe da 17ª DP, Mauro Aguiar. Dias depois os advogados do rapaz conseguiu habeas corpus. Como está ; O caso está em investigação na 17ª DP. Os investigadores aguardam laudo cadavérico e do local do acidente. Também continuam a ouvir testemunhas. 24 de maio ; Iracema Martins Machado, 68, morreu ao ser atropelada por um motorista embriagado na pista marginal da via Estrutural. O frentista Otávio Pereira Sampaio, 41, estava com 1,03 miligrama de álcool por litro de ar expelido pelos pulmões e foi preso em flagrante. Como está ; O caso foi encaminhado ao Tribunal do Júri de Taguatinga. A Assessoria de Imprensa da Polícia Civil não informou qual o indiciamento de Otávio. 4 de abril ; O diretor de construtora José de Araújo Arruda, 33 anos, foi preso em flagrante ao provocar um acidente no fim da W3 Sul. O pai e o irmão da namorada dele morreram. O motorista teve apenas escoriações e, ao ser submetido ao teste do bafômetro, o aparelho apontou 1,16mg de álcool por litro de ar expelido pelos pulmões. Em 14 de abril, ele deixou a cadeia com autorização da Justiça em liberdade provisória. Como está ; José de Araújo foi indiciado por homicídio doloso, aquele em que há intenção ou a pessoa assume o risco de matar. O inquérito foi concluído e encaminhado ao Tribunal do Júri de Brasília. Foi movimentado pela última vez em 23 de abril e está com o Ministério Público. 10 abril 2009 ; A estudante Camilla Mauro Carvalhêdo Barros, 19, morreu quando a moto em que ela era carona, bateu no meio-fio na DF-075, perto de Riacho Fundo I. O marceneiro Jardel Duarte de Brito, 26, pilotava a moto e, segundo o delegado da 29ª Delegacia de Polícia (Riacho Fundo), ele não tinha habilitação de moto nem de carro e confessou haver bebido antes do acidente durante uma festa. Como está ; Jardel foi indiciado por homicídio doloso na direção de veículo automotor. Em 20 de maio, os autos foram recebidos pela 1ª Vara de Delitos de Trânsito. Atualmente o processo está com vistas para o Ministério Público. 29 de março ; O casal de namorados Manoel da Silva, 32, e Julia Alves da Silva, 24, foi atropelado e morto na faixa de pedestres na DF-290, entre Santa Maria e Céu Azul, no Novo Gama (GO). O motorista Gérson Alves de Oliveira, 38, estava com 0,52 miligrama de álcool por litro de ar expelido pelos pulmões, e não prestou socorro às vítimas. Foi preso em flagrante e já tinha passagens por tráfico e posse de drogas, roubo e formação de quadrilha. Estava em liberdade condicional. Foi libertado pela Justiça em maio. Se pudesse, Maria Sofia da Silva, 40 anos, apagaria da memória a morte do irmão Manoel. Para Divina Helena Pereira Rodrigues, irmã de Julia, o mais difícil foi explicar aos sobrinhos que a mãe deles não voltaria. Como está ; Gérson Alves de Oliveira foi indiciado por duplo homicídio doloso. O processo foi devolvido à 33ª DP para que o inquérito informasse o local exato do acidente. 2008 19 de dezembro ; Giovanna Vitória de Assis, 5 anos, e a babá Francilda da Paz, 36, foram atropeladas em uma faixa de pedestre em Planaltina. Após seis dias em coma, a menina morreu na manhã de 25 de dezembro. A babá sobreviveu e ainda se recupera das fraturas no braço e no pé. O motorista que as atropelou foi o professor David Silva da Rocha, 46, que não prestou socorro às vítimas e, segundo a polícia, havia ingerido bebida alcoólica. Como está ; Segundo a promotora de Justiça do Tribunal do Júri de Planaltina, Vivian Barbosa Caldas, o professor foi denunciado pelos crimes de homicídio com dolo eventual (por assumir o risco de matar ao dirigir alcoolizado) e lesão corporal grave, com dolo eventual, pelo mesmo motivo. Ele responde em liberdade. A promotora informou que as audiências de instrução vão começar em breve. Essa é a fase em que as testemunhas de acusação, de defesa e, por último o acusado, são interrogados pelo juiz. Apesar da ansiedade da família, especialmente da mãe, Butitiere Fernanda de Assis, a promotora garante que não há atrasos no processo. Estão sendo cumpridos os prazos legais. 22 de junho ; Três irmãos ; o casal de gêmeos Evânio e Evanessa, 18, e Gleicia Rodrigues, 16 ; morreram em um acidente na BR-020. O motorista do Palio onde eles estavam, Pedro Andriak Soares, 24, dirigia alcoolizado e acima da velocidade permitida na via. Ele era amigo das vítimas e confessou ter bebido oito latas de cerveja antes da tragédia. O acidente ocorreu durante tentativa de ultrapassagem perto da entrada da Embrapa Cerrados (Sobradinho/Planaltina). O Pálio capotou várias vezes. Como está ; A promotora de Justiça da 1ª Promotoria do Júri de Planaltina, Vivian Barbosa Caldas, informou que Pedro Andriak Soares foi denunciado por homicídio doloso, mas o Tribunal do Júri reclassificou o caso para homicídio culposo porque entendeu que o motorista não teve a intenção nem assumiu o risco de matar ao dirigir alcoolizado. O processo tramita na Vara Criminal de Planaltina. 6 de agosto ; O aposentado José Gonçalves de Souza, 70 anos, seguia em uma bicicleta pela Quadra 1K de Arapoanga (Planaltina) quando foi atingido por um Corsa e morreu na hora. O condutor fugiu sem prestar socorro, mas foi pego horas depois. Já na delegacia, foi constatado que o motorista José Lopes Filho, 30, estava alcoolizado. O teste do bafômetro apontou 1,03 miligrama de álcool por litro de ar. Em 2005, José Lopes já havia sido denunciado e condenado por dirigir alcoolizado. A lembrança que José Mário Santiago, filho do aposentado, tem do pai é de um homem ativo e feliz por ter superado problemas de saúde. Como está ; A promotora de Justiça da 1ª Promotoria do Júri de Planaltina, Vivian Caldas informou que José Lopes Filho foi indiciado por homicídio doloso. Todas as partes foram ouvidas. Falta marcar o dia do julgamento.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação