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O filho mais velho foi vencido por uma rara doença. Agora, os pais lutam por um milagre

postado em 20/07/2009 08:26
Em setembro do ano passado, aos prantos, debruçada sobre o corpo nu do filho, ela implorou às enfermeiras do Hospital Regional da Asa Sul (Hras), ao vê-las retirando os aparelhos do peito do menino: "Não tirem, não tirem... Ele vai respirar. Ele vai voltar a viver". Naquele momento, a dona de casa Denise Araújo Cardoso, de 28 anos, chorou como nunca. Foi um choro de desespero e de completa impotência. Ali, ela viveu o pior momento de sua vida. Mas não havia mais o que fazer. Ítalo morreu quando começava a empinar pipa, jogar futebol e fazer planos de ser balconista de farmácia, igualzinho ao pai, o maior ídolo.[SAIBAMAIS] No fim de 2007, aos 7 anos, ele reclamou que estava enxergando mal. Pedia à mãe que "tirasse aquela coisa escura dos seus olhos". Ela não conseguiu. Depois, vieram as terríveis convulsões. Febre de 42 graus. Peregrinação de médico em médico. Um laudo, depois de muitos exames e diagnósticos equivocados, foi conclusivo. O menino tinha Adrenoleucodistrofia. Perdeu rapidamente o movimento das pernas. Parou de andar. Depois, de falar e escutar. Nunca mais enxergou. Morreu aos 8 anos. Kelvi, 5, o irmão mais novo, que virou então o único filho do casal, começava a sentir sintomas estranhos para um menino que até então nem gripe pegava. Passou a arrastar a perna direita. Se Ítalo tinha aquela doença de nome estranho, que o consumiu em menos de dez meses, muito provavelmente Kelvi a teria também, pensou, atormentada. A intuição materna não estava errada. O filho caçula era portador de ADL. Era como se o chão se partisse pela segunda vez ao meio. No enterro de Ítalo, o pai dele, Edilson Urany, 29, segurava o outro filho nos braços. Ao vê-lo no caixão, Kelvi não entendia por que o irmãozinho não acordava. "Diz pra ele levantar, pai. A gente vai jogar bola", pedia o garoto. Kelvi nunca entendeu a morte. Edilson jurou, diante do corpo do filho morto, que faria o impossível para que o outro vivesse o tempo que fosse necessário. Em agosto do ano passado, o Correio contou com exclusividade o drama da família de Santo Antônio do Descoberto, cidade do entorno goiano a 50km de Brasília. Acompanhou a agonia de Ítalo nos últimos meses de vida. A luta da família para conseguir o caro remédio que não lhe traria a cura, mas poderia retardar os sintomas mais devastadores da doença. O Óleo de Lorenzo, cujo frasco de 500ml custa R$ 591, seria, então, a única esperança naquele momento. Brasília e o Brasil se comoveram com a história daquela família. Os pais receberam telefonemas de todos os estados. Gente querendo ajudar, saber mais sobre a doença e compartilhar o mesmo drama. Em agosto do ano passado, segundo informações colhidas em hospitais públicos do país, havia 15 crianças diagnosticadas com ADL. A doença acomete somente meninos. Seu conhecimento ainda restrito até mesmo para boa parte da classe médica. Primeiras doses A ajuda veio. Numa verdadeira corrente de solidariedade, chegou o dinheiro para a compra do Óleo de Lorenzo e das necessidades básicas da família. Depois, a Defensoria Pública interveio na história. Obrigou o GDF a arcar com a medicação. O governo acatou. Já internado no Hras, em estado grave, Ítalo começou a tomar as primeiras doses da medicação. Um neuropediatra se dispôs a ajudar aquele menino com dedicação extremada. Há médicos que são contra o uso do óleo. Ítalo chegou a receber alta do hospital . Mas os comprometimentos neurológicos já estavam bem adiantados. Ao mesmo tempo, Kelvi, que também já manifestava as primeiras sequelas da ADL, iniciou o tratamento. Um mês depois, Ítalo foi vencido pela doença. Denise e Edilson, em frangalhos, no meio daquele cemitério, decidiram que lutariam sem cessar pela vida do caçula de 6 anos %u2014 agora o único filho. As doses de Óleo de Lorenzo foram diárias. Uma sutil melhora foi percebida. Kelvi chegou a ser matriculado numa escola especial, em Taguatinga. Conheceu novos amigos. Experimentou ser feliz. Brincou, chorou, caiu, se arranhou, acreditou que era igual a todos eles. Viveu, mesmo em curto espaço de tempo, a possibilidade de ser criança. Há um mês, entretanto, parou de comer. Não conseguiu mais engolir. Definhou a olhos vistos. Levado ao Hras, foi submetido a uma gastrostomia, há 15 dias. Parou de tomar de o óleo. Exames comprovaram que o remédio estava lhe causando alguma alteração no fígado. Perdeu a visão. Parou de andar e falar. O choro abafado indica o tamanho da dor que sente por todo o corpo. Não consegue mais levantar a cabeça. Nem abrir as mãos. Em vez disso, comprime-as com tanta força que chega a machucá-las. Carinho incessante Na tarde da última sexta-feira, o Correio reencontrou a família, na casa humilde em Santo Antônio do Descoberto. No colo da mãe, pesando 12kg e com o olhar perdido, Kelvi parecia longe daquele lugar. Denise olha para o filho de 6 anos. Desliza delicadamente a mão sobre seus cabelos castanhos. Beija-o com ternura. Edilson, o pai, diz, sem hesitar: "Agora, independentemente do tempo que ainda restar, a gente só quer que ele tenha qualidade de vida. Tudo que puder fazer a gente vai fazer". Em lágrimas, Denise faz um desabafo comovente: "O mais difícil é ver ele sentindo dor, sofrer e não poder fazer nada". E faz uma confissão, talvez a única que jamais gostaria de ter feito: "A gente tem vivido o hoje como se fosse o último dia com ele. Não sabemos se vai ter amanhã. O meu medo é de pensar que tá chegando o fim". Edilson escuta a mulher falar. Acaricia os braços frágeis e sem força do filho. E não diz mais nada. Ainda com Kelvi no colo, Denise fala como se ela não estivesse ali. Os olhos se perdem nos próprios pensamentos. Fragilizada, conta que tem vivido e se alimentado das boas lembranças. "Fico tentando não esquecer a voz deles. Lembro das coisas que eles gostavam de comer, de brincar, do que pediam pra eu fazer. É assim que quero manter os dois perto de mim", ela diz. De dor, Kelvi chora. Comprime mais ainda as mãozinhas. Denise o ajeita nos braços de mãe que protege. Edilson continua em silêncio. Cada dia naquela casa é vivido como milagre. Mesmo que seja por um fiapo dele. Cirurgia É feita por meio de um orifício criado na altura do estômago para pacientes que perderam, temporária ou definitivamente, a capacidade de deglutir os alimentos, tanto em conseqüência de lesões cerebrais graves ou transtornos do trato gastrointestinal superior. Doença rara Adrenoleucodistrofia (ADL) é uma doença que se caracteriza pelo acúmulo de ácidos graxos saturados nas células do cérebro, o que leva à destruição da mielina - substâncias formadas por proteínas e gorduras que ajudam na condução de mensagens nervosas. Sem a mielina, os neurônios perdem a capacidade de transmitir corretamente os estímulos que fazem o cérebro funcionar. A doença provoca mutações genéticas que destroem completamente o sistema neurológico. É a mulher que transmite o gene para o filho. Se tiver uma menina, a recém-nascida também será portadora, mas não desenvolverá o mal, assim como a mãe. A ADL não tem cura e leva o paciente a um estado vegetativo e muito rapidamente à morte. Para saber mais No passado, drama inspirou filme O filme Óleo de Lorenzo (Lorenzo's Oil, 1992), com Susan Sarandon e Nick Nolte, teve duas indicações para o Oscar - o de melhor atriz e melhor roteiro original. O filme conta o drama de um menino e sua luta para continuar vivo. Aos 6 anos, Lorenzo começou a apresentar os sintomas da adrenoleucodistrofia (ADL). Seus pais, Mickaela e Augusto Odone, não aceitaram o diagnóstico e iniciaram uma verdadeira batalha científica para melhor entender a doença. Lorenzo parou de andar, enxergar, comer e se comunicar. Os pais passaram a estudar o mal que o acometia. Discutiam com os médicos as descobertas. Esbarraram com o preconceito e a desinformação da própria classe médica em relação à doença. Descobriram, então, um tratamento à base de azeite de oliva e canola, conhecido em todo o mundo como o Óleo de Lorenzo. O medicamento não leva à cura, mas pode, segundo pesquisas médicas, retardar os sintomas da ADL. Lorenzo tomou o óleo. A doença estacionou. Passou a comunicar com um piscar de olhos. Adorava música. Morreu de pneumonia, em maio do ano passado, aos 30 anos, em sua casa, nos Estados Unidos.

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