Chegaram à adolescência. Estão descobrindo amores e paixões típicas da idade. O coração disparou no primeiro beijo no rosto. A perna bambeou. A menina acredita em príncipe encantado e o desenha em forma de romance no caderno da escola. Ama, ama de paixão, o galã da vez Edward Cullen, um dos vampiros modernos de O crepúsculo. Ele aparece na tela de descanso do seu computador, cujo teclado é todo decorado com strass cor-de-rosa. O menino, por enquanto, não quer saber de nada sério. No momento, quer dar piruetas cada vez mais radicais no skate, pintar, grafitar, fazer street dance (dança de rua) e arrasar com dribles desconcertantes nas partidas de futebol.
Ela amou platonicamente o menino bonito da escola, o que esnoba todas as meninas e, ainda assim, todas correm atrás dele. Ele, anos-luz de distância, admirou a gatinha do colégio, aquela que faz os meninos babarem e que se acha a dona do pedaço. Cauteloso, ele tem medo de se aproximar e levar um fora que o fará chegar à Lua, sem escala.
O nome da menina que acredita em príncipes encantados é Marina*. O do menino que gosta de grafitar e pintar é Felipe*. Ela completou 16 anos em maio. Ele, no último domingo. Não são parentes, mas aprenderam a se comportar como tais. Na verdade, viraram irmãos. Um entende o outro, apesar dos terríveis entraves e pirraças da complicada adolescência. Moram na mesma casa, uma instituição em Taguatinga.
São os mais ;velhos; do lugar. Marina e Felipe nasceram marcados. Carregam, como tatuagem, uma sentença. Ela toma sete comprimidos por dia. Ele, seis. Mas decidiram seguir, a despeito até mesmo do preconceito. E estão mais saudáveis do que nunca. O exame de carga viral (1)está indetectável. Marina e Felipe têm Aids. E hoje fizeram dessa palavra de quatro letras apenas um detalhe. Resolveram viver.
As revelações
Terça-feira, 15h, QNC 3, Taguatinga Norte. Numa casa de paredes coloridas, que leva o sugestivo nome de Vida Positiva (2), Marina e Felipe planejam suas vidas. Ainda adolescentes, aprenderam logo cedo que nada seria fácil. Ainda assim, optaram pela felicidade. Ela pinta de lápis preto os olhos amendoados. O repórter diz que se parecem com os olhos da atriz Juliana Paes. Ela sorri, encabulada. Marina é assim: tímida, mas vaidosa. Está na 6; série, adora passear no shopping e leva jeito para moda. Sabe o que combina com qual roupa, a tendência de corte de cabelo, a maquiagem que está bombando... Marina, a linda morena dos olhos amendoados, é uma adolescente como tantas.
No meio da conversa, ela conta, timidamente, que já se apaixonou pelo menos umas três vezes. ;É uma sensação boa demais. O coração quase sai pela boca quando a gente vê a pessoa;, admite. Mas, em nenhuma das paixões que ;viveu;, teve coragem de contar aos amados o que sentia. ;Tinha medo de eles se afastarem. Menino não quer nada sério. É tudo marrentinho;, constata. Mas beijou um menino da escola ; não uma das três paixões, mas um ;ficante;, sem compromisso. ;A gente só ficou, sem nada sério. Se eu gostei do beijo? Noooossa!” (suspira).
Marina nunca contou às amigas, nem às mais próximas, que tem Aids: ;Se elas souberem, não vão querer mais amizade comigo. Tenho medo de ser rejeitada;. Por isso, criou um mundo só dela. Edward Cullen, no computador, é o seu grande namorado. Pra ele, ela conta que o ama. E o beija demoradamente na tela. ;Ele é lindo, lindo de tudo;, suspira a apaixonada, no seu quarto que, como o computador, é cor-de-rosa.
Felipe é o típico adolescente que está descobrindo a vida. Preocupado com a forma física (os músculos estão se definindo com partidas de futebol na rua e exercícios físicos), tem apostado em todos os seus talentos. Colocou brinco e adora receber elogios das meninas pelo feito. Descobriu-se desenhista de mão cheia. Mas também grafita e até arrisca uns passos de street dance. As pessoas o aplaudem. Ele se encabula. ;Nem danço tão bem assim;, despista. Mas o que ele quer mesmo é ser engenheiro mecânico. ;Gosto de projetar. Quero trabalhar nas máquinas da Petrobras;, planeja.
E as namoradas? Felipe, marrentinho como ele só, admite que já ;ficou; com algumas meninas. ;Mas nada de sexo. Apenas a gente se beijou;, ele jura. Já se apaixonou? ;Perdidamente, nunca;, garante o menino que engrossa a voz. Mas uma coisa ele aprendeu desde cedo, talvez a principal lição: andar com a camisinha na carteira. ;Nunca se sabe quando a gente pode precisar...;, lembra.
O preconceito
Marina estuda numa escola particular. A mensalidade é paga por uma voluntária da instituição que virou uma espécie de madrinha postiça da menina. Felipe está na rede pública. Mudou-se de escola no começo deste ano. No antigo colégio, teve de lidar com o despreparo e a desinformação da própria diretora. ;Uma vez, no recreio, ela me viu beijando uma menina. Aí, me chamou na sala dela e disse que ia contar pro pai da menina que eu era HIV positivo e falar do perigo que eu representava;, conta. ;O preconceito causa mais sofrimento do que a própria doença;, constata o pediatra e especialista em adolescente Ricardo Azevedo, 33 anos, chefe do Núcleo de Controle de Aids da Secretaria de Saúde do DF.
Numa outra vez, Felipe pegou o batom de cacau do amigo e passou nos lábios. A diretora, sempre atenta aos passos do aluno soropositivo, não demorou a agir. Pegou o batom da mão de Felipe e jogou no lixo. Antes, porém, dirigiu-lhe uma série de desaforos. Ameaçou, inclusive, revelar seu maior segredo para toda a escola. Felipe tentou, em vão, dizer à educadora que sabia exatamente as formas pelas quais se transmite o vírus e que aquela não traria risco ao amigo. Sozinho, sem ser ouvido, chorou escondido. Sem clima para continuar ali, saiu da escola. Vick Tavares, presidente da ONG Vida Positiva, tirou-o dali.
O médico Azevedo alerta: ;Todo adolescente, independentemente der ter ou não HIV, precisa ter a atitude de usar camisinha. Usando, não há risco de contrair nenhuma doença sexualmente transmissível. Nem mesmo Aids;. E manda um recado para a diretora desinformada: ;Não há risco algum no beijo na boca;.
Marina não gosta muito de falar de preconceito. Isso a faz sofrer. ;Pra mim. sempre é triste lembrar essas histórias. Me machucam;, ela diz. Para não ser mais discriminada, assim como Felipe, não deixa a Kombi da instituição, que os leva para a escola, estacionar na porta do colégio. ;Minhas amigas parariam de andar comigo e me rejeitariam;, acredita a menina de lindos olhos amendoados. ;Não quero que todo mundo saiba. Tenho o direito de contar só pra quem que eu quiser;, diz Felipe.
O futuro
Marina já pensou em ser advogada: ;Eu era bem pequenininha quando queria isso. Acho que mudei de ideia, mas não sei o que quero ainda;. No momento, ela só tem olhos mesmo para Edward Cullen, estampado na tela do seu computador. Felipe que se casar e ter filhos (mães que tomam a medicação na gravidez e recebem o AZT injetável na hora do parto podem dar à luz um bebê saudável, desde que este tome o coquetel por seis semanas e não seja amamentado). ;Mas aí, quando eu me apaixonar de verdade, vou contar antes que sou soropositivo;, ele jura. ;Eu, me casar? Nem penso nisso. Quero outras coisas pra mim;, desconversa Marina. ;Nada a ver;, retruca Felipe.
Enquanto isso, ela planeja: ;Vai chegar o dia em que não vou tomar mais remédios;. Ele pensa no futuro e nas novas descobertas da medicina: ;Um dia vão inventar a cura pra esse vírus;. Marina não tem dúvida: ;Eu vou vencer o HIV;. Ela dorme no quarto cor-de-rosa. Ele, no verde. Ela é romântica. Apaixonada, já estraçalhou o coração. Chorou, sofreu, apaixonou-se de novo e sofreu tudo de novo. Ah, a adolescência! Ele se diz durão. Marrentinho mesmo. Nada de sofrer por amores. Completaram 16 anos. Quase ninguém apostava que iriam conseguir. Encheram-se de sonhos, desejos, planos, chatices, espinhas e hormônios em completa ebulição. E têm Aids ; essa última referência é apenas um detalhe em suas vidas. Melhor acreditar em Marina, que luta para vencer a doença. Quem tem o prazer de conhecer a menina de olhos vivos, cabelos negros e sorriso encantadoramente tímido pode apostar que sim. Há histórias que apenas impressionam. Outras ficam tatuadas na alma.
1 - CONTAGEM DO VÍRUS
Exame que mede a quantidade do HIV no sangue. Se a carga está indetectável, significa que a imunidade (defesas contra os ataques às infecções oportunistas) está alta.
2 - A INSTITUIÇÃO
Organização não governamental criada há dois anos e meio em Taguatinga. Funciona em sistema de abrigamento e creche. Atende hoje 17 crianças e adolescentes carentes soropositivas ou filhos de pais soropositivos.
SOLIDARIEDADE
A ONG Vida Positiva fica na QNC 3, Casa 16, Taguatinga. Visitas e ajuda são sempre bem-vindas. Contatos: 3034-0040 e 3034-0948. Depósitos: Caixa Econômica Federal, agência 1041, conta 385-0, op 003
* Os nomes são fictícios, em respeito à privacidade dos adolescentes.