Cidades

Portadores de HIV desenganados pelos médicos chegam à adolescência com saúde controlada

postado em 23/07/2009 08:33
Eles nasceram marcados pelo estigma de um vírus estúpido que circula nas suas correntes sanguíneas. Foi a herança que as mães, hoje mortas, lhes deixaram. Foram julgados e condenados à revelia. Uma gente de jaleco branco chegou a dizer que eles não viveriam muito. Outra gente, igualmente de jaleco branco, acreditou que sim. Houve um tempo, de fato, que eles quase sucumbiram. Daquela noite na UTI, não mais passariam. Tiveram que lutar contra o maldito vírus que insistia em derrotá-los. Eles sabem também que a luta, na verdade, é diária, para sempre, enquanto vida houver. Pior que a batalha contra o vírus, porém, é aquela travada contra o preconceito. Uma luta desigual, desumana e covarde. Mas eles resistiram. Fortaleceram-se. Tornaram-se vigilantes. Cresceram.

Chegaram à adolescência. Estão descobrindo amores e paixões típicas da idade. O coração disparou no primeiro beijo no rosto. A perna bambeou. A menina acredita em príncipe encantado e o desenha em forma de romance no caderno da escola. Ama, ama de paixão, o galã da vez Edward Cullen, um dos vampiros modernos de O crepúsculo. Ele aparece na tela de descanso do seu computador, cujo teclado é todo decorado com strass cor-de-rosa. O menino, por enquanto, não quer saber de nada sério. No momento, quer dar piruetas cada vez mais radicais no skate, pintar, grafitar, fazer street dance (dança de rua) e arrasar com dribles desconcertantes nas partidas de futebol.

Ela amou platonicamente o menino bonito da escola, o que esnoba todas as meninas e, ainda assim, todas correm atrás dele. Ele, anos-luz de distância, admirou a gatinha do colégio, aquela que faz os meninos babarem e que se acha a dona do pedaço. Cauteloso, ele tem medo de se aproximar e levar um fora que o fará chegar à Lua, sem escala.

O nome da menina que acredita em príncipes encantados é Marina*. O do menino que gosta de grafitar e pintar é Felipe*. Ela completou 16 anos em maio. Ele, no último domingo. Não são parentes, mas aprenderam a se comportar como tais. Na verdade, viraram irmãos. Um entende o outro, apesar dos terríveis entraves e pirraças da complicada adolescência. Moram na mesma casa, uma instituição em Taguatinga.

São os mais ;velhos; do lugar. Marina e Felipe nasceram marcados. Carregam, como tatuagem, uma sentença. Ela toma sete comprimidos por dia. Ele, seis. Mas decidiram seguir, a despeito até mesmo do preconceito. E estão mais saudáveis do que nunca. O exame de carga viral (1)está indetectável. Marina e Felipe têm Aids. E hoje fizeram dessa palavra de quatro letras apenas um detalhe. Resolveram viver.

As revelações

Terça-feira, 15h, QNC 3, Taguatinga Norte. Numa casa de paredes coloridas, que leva o sugestivo nome de Vida Positiva (2), Marina e Felipe planejam suas vidas. Ainda adolescentes, aprenderam logo cedo que nada seria fácil. Ainda assim, optaram pela felicidade. Ela pinta de lápis preto os olhos amendoados. O repórter diz que se parecem com os olhos da atriz Juliana Paes. Ela sorri, encabulada. Marina é assim: tímida, mas vaidosa. Está na 6; série, adora passear no shopping e leva jeito para moda. Sabe o que combina com qual roupa, a tendência de corte de cabelo, a maquiagem que está bombando... Marina, a linda morena dos olhos amendoados, é uma adolescente como tantas.

No meio da conversa, ela conta, timidamente, que já se apaixonou pelo menos umas três vezes. ;É uma sensação boa demais. O coração quase sai pela boca quando a gente vê a pessoa;, admite. Mas, em nenhuma das paixões que ;viveu;, teve coragem de contar aos amados o que sentia. ;Tinha medo de eles se afastarem. Menino não quer nada sério. É tudo marrentinho;, constata. Mas beijou um menino da escola ; não uma das três paixões, mas um ;ficante;, sem compromisso. ;A gente só ficou, sem nada sério. Se eu gostei do beijo? Noooossa!” (suspira).

Marina nunca contou às amigas, nem às mais próximas, que tem Aids: ;Se elas souberem, não vão querer mais amizade comigo. Tenho medo de ser rejeitada;. Por isso, criou um mundo só dela. Edward Cullen, no computador, é o seu grande namorado. Pra ele, ela conta que o ama. E o beija demoradamente na tela. ;Ele é lindo, lindo de tudo;, suspira a apaixonada, no seu quarto que, como o computador, é cor-de-rosa.

Felipe é o típico adolescente que está descobrindo a vida. Preocupado com a forma física (os músculos estão se definindo com partidas de futebol na rua e exercícios físicos), tem apostado em todos os seus talentos. Colocou brinco e adora receber elogios das meninas pelo feito. Descobriu-se desenhista de mão cheia. Mas também grafita e até arrisca uns passos de street dance. As pessoas o aplaudem. Ele se encabula. ;Nem danço tão bem assim;, despista. Mas o que ele quer mesmo é ser engenheiro mecânico. ;Gosto de projetar. Quero trabalhar nas máquinas da Petrobras;, planeja.

E as namoradas? Felipe, marrentinho como ele só, admite que já ;ficou; com algumas meninas. ;Mas nada de sexo. Apenas a gente se beijou;, ele jura. Já se apaixonou? ;Perdidamente, nunca;, garante o menino que engrossa a voz. Mas uma coisa ele aprendeu desde cedo, talvez a principal lição: andar com a camisinha na carteira. ;Nunca se sabe quando a gente pode precisar...;, lembra.

O preconceito

Marina estuda numa escola particular. A mensalidade é paga por uma voluntária da instituição que virou uma espécie de madrinha postiça da menina. Felipe está na rede pública. Mudou-se de escola no começo deste ano. No antigo colégio, teve de lidar com o despreparo e a desinformação da própria diretora. ;Uma vez, no recreio, ela me viu beijando uma menina. Aí, me chamou na sala dela e disse que ia contar pro pai da menina que eu era HIV positivo e falar do perigo que eu representava;, conta. ;O preconceito causa mais sofrimento do que a própria doença;, constata o pediatra e especialista em adolescente Ricardo Azevedo, 33 anos, chefe do Núcleo de Controle de Aids da Secretaria de Saúde do DF.

Numa outra vez, Felipe pegou o batom de cacau do amigo e passou nos lábios. A diretora, sempre atenta aos passos do aluno soropositivo, não demorou a agir. Pegou o batom da mão de Felipe e jogou no lixo. Antes, porém, dirigiu-lhe uma série de desaforos. Ameaçou, inclusive, revelar seu maior segredo para toda a escola. Felipe tentou, em vão, dizer à educadora que sabia exatamente as formas pelas quais se transmite o vírus e que aquela não traria risco ao amigo. Sozinho, sem ser ouvido, chorou escondido. Sem clima para continuar ali, saiu da escola. Vick Tavares, presidente da ONG Vida Positiva, tirou-o dali.

O médico Azevedo alerta: ;Todo adolescente, independentemente der ter ou não HIV, precisa ter a atitude de usar camisinha. Usando, não há risco de contrair nenhuma doença sexualmente transmissível. Nem mesmo Aids;. E manda um recado para a diretora desinformada: ;Não há risco algum no beijo na boca;.

Marina não gosta muito de falar de preconceito. Isso a faz sofrer. ;Pra mim. sempre é triste lembrar essas histórias. Me machucam;, ela diz. Para não ser mais discriminada, assim como Felipe, não deixa a Kombi da instituição, que os leva para a escola, estacionar na porta do colégio. ;Minhas amigas parariam de andar comigo e me rejeitariam;, acredita a menina de lindos olhos amendoados. ;Não quero que todo mundo saiba. Tenho o direito de contar só pra quem que eu quiser;, diz Felipe.

O futuro

Marina já pensou em ser advogada: ;Eu era bem pequenininha quando queria isso. Acho que mudei de ideia, mas não sei o que quero ainda;. No momento, ela só tem olhos mesmo para Edward Cullen, estampado na tela do seu computador. Felipe que se casar e ter filhos (mães que tomam a medicação na gravidez e recebem o AZT injetável na hora do parto podem dar à luz um bebê saudável, desde que este tome o coquetel por seis semanas e não seja amamentado). ;Mas aí, quando eu me apaixonar de verdade, vou contar antes que sou soropositivo;, ele jura. ;Eu, me casar? Nem penso nisso. Quero outras coisas pra mim;, desconversa Marina. ;Nada a ver;, retruca Felipe.

Enquanto isso, ela planeja: ;Vai chegar o dia em que não vou tomar mais remédios;. Ele pensa no futuro e nas novas descobertas da medicina: ;Um dia vão inventar a cura pra esse vírus;. Marina não tem dúvida: ;Eu vou vencer o HIV;. Ela dorme no quarto cor-de-rosa. Ele, no verde. Ela é romântica. Apaixonada, já estraçalhou o coração. Chorou, sofreu, apaixonou-se de novo e sofreu tudo de novo. Ah, a adolescência! Ele se diz durão. Marrentinho mesmo. Nada de sofrer por amores. Completaram 16 anos. Quase ninguém apostava que iriam conseguir. Encheram-se de sonhos, desejos, planos, chatices, espinhas e hormônios em completa ebulição. E têm Aids ; essa última referência é apenas um detalhe em suas vidas. Melhor acreditar em Marina, que luta para vencer a doença. Quem tem o prazer de conhecer a menina de olhos vivos, cabelos negros e sorriso encantadoramente tímido pode apostar que sim. Há histórias que apenas impressionam. Outras ficam tatuadas na alma.


1 - CONTAGEM DO VÍRUS
Exame que mede a quantidade do HIV no sangue. Se a carga está indetectável, significa que a imunidade (defesas contra os ataques às infecções oportunistas) está alta.


2 - A INSTITUIÇÃO
Organização não governamental criada há dois anos e meio em Taguatinga. Funciona em sistema de abrigamento e creche. Atende hoje 17 crianças e adolescentes carentes soropositivas ou filhos de pais soropositivos.


SOLIDARIEDADE
A ONG Vida Positiva fica na QNC 3, Casa 16, Taguatinga. Visitas e ajuda são sempre bem-vindas. Contatos: 3034-0040 e 3034-0948. Depósitos: Caixa Econômica Federal, agência 1041, conta 385-0, op 003

* Os nomes são fictícios, em respeito à privacidade dos adolescentes.

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