Cidades

Ex-funcionário da Novacap, o cearense Guarany de Lavor construiu uma vida em defesa da natureza

Hoje, o homem de 95 anos vive num rancho a 110km da capital. Entre as lembranças de uma luta apaixonada pela natureza, o famoso buriti que ajudou a curar, visto pela tela do computador

postado em 26/07/2009 08:19

Num rancho a 110km de Brasília, a caminho de Cristalina (GO), um homem de barba e bigode brancos, cabelos da mesma cor cuidadosamente penteados para trás, vai falar da vida. Sentado no sofá da sala com cerâmica antiga, ele espera as visitas que nunca viu antes. O homem é por demais generoso. Ao primeiro contato, ele nos surpreende ao responder como tem passado: ;Tô escapando, meu filho, tô escapando;. Esse, de fato, é o homem pelo qual viajamos em estrada de asfalto e um bocadinho de terra batida para conhecer. Esse homem merece todas as honrarias que nunca lhe foram feitas.

O nome dele é Guarany Cabral de Lavor, cearense de Itapipoca, filho de Raymundo (com y mesmo) e Luiza. Pai de 10 filhos: Guaracy, Tabajara, Juçara, Jurema, Yara, Ubiratan, Jacira, Irapuan, Moacir e Jurandir. Viúvo há nove anos de Yeda Maria, uma bela catarinense de olhos verdes que o enfeitiçou à primeira vista. Mas, afinal, quem é esse tal de Guarany? Uma página é pouco para contar a história desse homem que, antes de tudo começar, já estava aqui. Veio, viu, plantou e podou, quando não havia mais jeito. Era como se cortasse a própria carne. Encheu a cidade de verde e vida. Cuidou delas como se fossem um de seus 10 filhos. Esse homem trabalhou no setor de poda e erradicação da Novacap. Engenheiro agrônomo, era o chefe do setor (do setor, nunca do departamento. Ele sempre teve outros chefes), mas nunca permitiu que o chamassem de doutor. Tinha pavor disso. ;Nunca fui de escutar anedota de chefe em gabinete. Gostava da rua;, ele diz. Aposentou-se aos 84 anos, na ;compulsória expulsadeira;, quando não havia mais jeito para ficar. O homem que está ;escapando; e driblando a vida tem 95 anos. A história de Brasília e suas árvores não seria a mesma sem ele. No Rancho Yara, que leva o nome de uma suas filhas ; um paraíso onde passa boa parte do tempo ;, Guarany relembra a vida com memória de menino. Conta histórias, a saga para chegar à terra de JK e o sonho do garoto cearense em desbravar o mundo. Emociona-se quando se lembra de sua Yeda, a única mulher que amou na vida. Mostra um foto dela, num porta-retrato. E viaja nos pensamentos quando começa a falar de suas árvores. Voltemos ao começo dessa história. É onde quase sempre a vida toma rumo. Lá em Itapipoca nasceu Guarany, o segundo dos sete filhos de Raymundo e Luiza. ;Sou o único que tá vivo, o último dos moicanos;, ele brinca. Aos 7 anos, por causa da seca miserável, a família decidiu mudar-se para Fortaleza. E lá se foram todos, montados em jumentos e cavalos. Seis dias para chegar ao destino. A viagem foi sofrida. Numa das paradas, sedento, Guarany tomou água contaminada de um poço. Era a única que havia. Adoeceu ali mesmo. ;Tive à morte;, conta. Chegou à capital do Ceará em frangalhos. Levaram-no a um médico. O doutor receitou um remédio em pó. Nada adiantou. ;Passei dois anos com disenteria. Às vezes, voltando ou indo pra escola, eu tinha que parar e fazer ali mesmo, no meio da rua. Era um horror. Voltava só de ceroula, segurando a calça com um pedaço de pau.; Um dia, o pai, homem que gostava de escrever (fazia poesia) e era leitor apaixonado de José de Alencar, levou-o a um centro espírita. Um santo baixou e o médium lhe fez uma receita num pedaço de papel. ;Era chá de purgante de sal amargo e chá de raspa de cedro. Fiquei bonzinho. Sarei numa semana;, ele conta, às gargalhadas. Ali, o menino cresceu. Fez o primário, o ginásio e chegou a hora de escolher uma profissão. ;Sempre gostei de mexer com planta. Minha mãe plantava roseira e eu ajudava.; Aos 16 anos, o menino com nome de índio arrumou emprego na Secretaria de Agricultura de Fortaleza. Função? Porteiro protocolista. Entrou para a faculdade de engenharia florestal. Trabalhava e estudava ao mesmo tempo. Aos 24 anos, em 1938, formou-se. A reviravolta Já ;doutor;, mudou-se para Iguatu, município cearense. Ali ficou por seis meses, trabalhando com algodão. Voltou para Fortaleza. Durante dois anos, foi administrar uma propriedade que pertencia ao Hospital Santa Casa. Mas, um dia, um ex-professor da faculdade indicou quatro ex-alunos para uma viagem. Missão irrecusável. Trabalharia com topografia. Pegou um navio em Fortaleza e levou 20 dias para chegar a Florianópolis. ;Nossa missão era fazer o levantamento da região para melhorar o mapa do Brasil;, conta. Viajaram de Norte a Sul. ;Não foi fácil;, ele diz. Em Santa Catarina, conheceu sua Yeda. E os anos se passaram. Guarany chegou a Goiás, sempre fazendo esse trabalho topográfico. Lá, virou funcionário da Companhia de Desenvolvimento do Estado de Goiás (Codeg). Em 1958, conheceu a futura capital, que era barro, descampado e um povo atrás de esperança e futuro. Mudou-se no ano seguinte. Foi trabalhar como topógrafo do IBGE. Em meados dos anos 1970, arrumou emprego na Novacap, contratado por Stênio de Araújo Bastos. Tinha 65 anos, quando a maioria encerra sua vida profissional. ;Era a grande oportunidade de voltar à minha profissão. Foi a coisa mais espetacular que me aconteceu.; Começa aqui a história de amor de Guarany por Brasília e suas árvores. Foram mais de 20 anos dedicados ao mesmo ofício, todos os dias. As marcas escuras nas mãos são a prova da exposição ao sol e do trabalho sem cessar. ;A minha maneira de entender as árvores era muito diferente. Criei muito caso por defender elas .. O jardineiro Isaias Joaquim da Silva, de 49 anos e 30 de Novacap, confirmou a ;maneira diferente; de o mestre trabalhar: ;O doutor era um chefe maravilhoso. Sabia tudo. Severo, mas justo, correto. Só permitia que uma árvore fosse cortada quando não havia mais jeito. Sinto muita saudade dele;. E foi assim, arregaçando a manga da camisa, que o cearense cuidou do verde da capital. ;Hoje, os agrônomos ficam em escritórios, trabalhando na internet. Sabem tudo de teoria;, analisa. Em maio de 1992, como protesto, um homem atacou a machadadas o buriti, plantado na praça que leva o mesmo nome. Ia morrer. A Novacap havia até entrado em contato com um cientista estrangeiro, especialista em recuperar árvores à beira da morte, que dispunha de uma técnica nova. Mas eis que o chefe de Guarany lhe perguntou a sua opinião. O doutor que não gosta de ser chamado de doutor lembrou as lições aprendidas nos ;antigos compêndios;. Certo de que podia ajudar, respondeu-lhe: ;Vamos tentar uma composição de barro de louça (desses que servem para fazer estátuas) e esterco (cocô) curtido de gado;. O chefe concordou. Guarany foi ao local com sua equipe. ;Colocamos a mão na merda. O buriti não morreu;, vibra. Romântico Escritor brasileiro, nasceu no Ceará, em 1829. Antes de iniciar sua vida literária, foi advogado, jornalista, deputado e ministro da Justiça. Aos 26 anos, publicou sua primeira obra: Cinco minutos. É considerado o precursor do romantismo no Brasil. Escreveu sobre o índio e o sertão do Brasil, ao contrário de outros romancistas da época, que escreviam como se vivessem em Portugal. Valorizava a língua falada no país. Tinha um estilo variado, criou romances que abordam o cotidiano. Escreveu Diva, Lucíola e A viuvinha. Foram também de sua autoria os romances regionalistas O sertanejo, O tronco do ipê, O gaúcho e Til. Árvore-símbolo Foi plantada já adulta, no fim dos anos 1960, ainda na gestão do primeiro presidente da Novacap, Stênio Araújo. Foi transplantada de uma vereda, próxima à estrada Brasília/Anápolis, numa operação que mobilizou todo o governo e as construtoras que trabalhavam na capital. Em 1985, o buriti foi tombado por decreto pelo então governador José Aparecido. <--
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--> ;O meu ambiente é esse aqui; No dia em que deixou a Novacap, aos 84 anos, Guarany se entristeceu. ;Foi um choque muito grande quando fui dispensado. Mas tava na hora de amarrar as chuteiras.; Aí, passou a se dedicar mais ao seu sítio. Ao andar pelo local onde plantou quase todas as árvores, seu refúgio, comenta: ;O meu ambiente é este aqui;. É ali naquele lugar que os netos andam a cavalo, refrescam-se no ribeirão que corta as terras e ele, deitado na rede da varanda, pensa na vida. Pergunto-lhe qual é árvore mais bonita do cerrado. Ele ri e, apaixonadamente, devolve: ;Todas são bonitas, é como se fosse um concurso de miss. Não há a mais bonita;. Mas ele acaba entregando uma de sua preferidas, uma jaqueira na entrada do Eixo Sul, à altura da 215. ;Ela é espetacular;, emociona-se. Na Bloco A da 203 Norte, onde morou boa parte da vida, os moradores lhe fizeram uma homenagem. Colocaram uma placa com o seu nome. ;Queriam colocar doutor Guarany. Eu não deixei colocar o doutor. Sou apenas um homem que gosta das árvores.; Ainda sentado na rede, o agrônomo fala de poesia. Admira o sarcasmo de Gregório de Matos Guerra, poeta baiano nascido em 1633, marco do período barroco e apelidado de Boca do Inferno pela língua afiada e veia cômica. A boa prosa continua. Ele conta que, aos 90 anos, foi mordido por uma cobra venenosa. ;Fui andar perto do ribeirão e pisei nela. Ela tava lá, no lugar dela. Ela tinha razão. Eu que tava errado. Fui pro hospital e tomei soro.; Nunca deixou, entretanto, que as exterminassem do sítio. ;Elas nos protegem contra a invasão dos ratos;, explica. Na rede, volta à adolescência, em Fortaleza. Lembra que nadava e corria bem. Participou até de uma prova de marcha atlética. ;Fiquei em quarto lugar. Havia mais de 300 competidores;, conta, com orgulho juvenil indisfarçável. ;Tudo se acabou; Há mais de uma década não volta ao Ceará. Os parentes já morreram. E os amigos não mais existem. ;Tudo se acabou. Não tenho mais conhecimento por lá.; Quando acorda, depois do café ; ;rapaz, vou lhe contar uma coisa prosaica, mas a primeira em que penso quando abro os olhos é no meu café;, ri, ri muito ;, é hora de um passeio pelas redondezas do sítio. É o momento de conversar com suas árvores. Contemplação diária. ;O dia em que desaparecer a última árvore, a humanidade também terá desaparecido;, profetiza. Missão cumprida? ;A minha parte eu fiz. Cumpri tudo, sem reclamar;, responde. Simplicidade é virtude? ;É obrigação. Nunca me deixei contaminar pelo orgulho. Minha mulher, meus filhos e o espiritismo me ajudaram muito nisso.; Esse é Guarany, um bravo cearense de 95 anos. Sem holofotes, medalhas, retrato em coluna social ou título de cidadão honorário, ajudou a contar parte da história de Brasília. E o fez de uma forma bem simplesinha: cuidando, muito longe dos gabinetes climatizados, de suas árvores. Muitas delas você vê todo dia, ao andar pela cidade. Sob a sombra delas, você muito se refrescou. Sem imaginar, caladinho, ele ajudou a terra de JK a ficar menos concreta, menos artificial e, consequentemente, mais viva e mais humana. Salve, Salve, Guarany!

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