Cidades

Burle Marx, o inventor dos jardins modernos

O maior paisagista brasileiro completaria 100 anos hoje. O verde que ele criou, entrecortado pelo colorido de flores nativas, reclama cuidados e respeito

postado em 04/08/2009 08:30
O maior paisagista brasileiro completaria 100 anos hoje. O verde que ele criou, entrecortado pelo colorido de flores nativas, reclama cuidados e respeitoEntre os modernistas que participaram da construção de Brasília, Roberto Burle Marx teria muitos motivos para reclamar, caso pudesse. A maioria de suas obras na cidade ou foram alteradas ou estão maltratadas. Considerado um dos maiores paisagistas do século 20 no Brasil e alhures, o autor de praças e jardins do Plano Piloto nasceu em 4 de agosto de 1909, há 100 anos, portanto. E morreu em 4 de junho de 1994.

Burle Marx levou para o paisagismo o ideário da arte e arquitetura modernas. Rejeitou as flores exóticas com que o país compunha seus jardins públicos e particulares e trouxe para as praças a antes desprezada vegetação nativa. Compôs jardins como quem cria obras de arte. Pensou na topografia, no meio ambiente, na arquitetura e na plasticidade para projetar jardins e praças no Brasil e em mais de 20 países. Foi paisagista, ceramista, gravurista, tapeceiro, designer de joias, pintor, músico. Fez cenário e figurinos para peças de teatro, óperas e decoração de carnaval.

O paisagista que fazia arte moderna com matéria-prima viva deixou em Brasília as marcas de sua genialidade. São dele a Praça dos Cristais (no Setor Militar Urbano), a Praça das Fontes (no Parque da Cidade), os jardins externos e internos do Itamaraty, o jardim externo do Palácio da Justiça, o jardim externo do Palácio do Jaburu. É dele também o projeto de paisagismo da 308 Sul, os jardins do Teatro Nacional e os do Tribunal de Contas da União. Burle Marx está também nas embaixadas da Alemanha, Estados Unidos, Irã e Bélgica.

Desse conjunto, os dois melhores exemplos de preservação e manutenção são a Praça dos Cristais e o Itamaraty. ;As estruturas estão preservadas e apenas há uma outra espécie que foi trocada, mas é possível recuperar as originais;, avalia o paisagista Haruyosho Ono, 63 anos, diretor da empresa Burle Marx & Cia, que cuida da preservação da obra do artista. A Praça dos Cristais foi restaurada pelo Quartel-General do Exército e será reinaugurada na próxima sexta-feira.

Descaracterização
Haru Ono esteve em Brasília em maio passado a convite do Ministério da Justiça para visitar os jardins do palácio e orientar sua recuperação. A Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (Seduma) aproveitou a chance e levou Haru a um roteiro turístico pelas obras de Burle Marx na cidade. Na Praça das Fontes, dentro do Parque da Cidade, levou um susto: ;Parecia uma guerra;, diz, quando se lembra do que viu ; toda a vegetação original foi retirada e, naqueles dias, estava sendo substituída por outras, estranhas às especificações deixadas por Burle Marx.

[SAIBAMAIS];Há uns quatro anos, estive aqui e ela (a praça) estava bem ainda. Muito havia sido substituído, mas ainda dava para reconhecê-la. Agora não restou resquício;. Havia um projeto de restauração da praça, conduzido pela Superintendência do Iphan (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico) no Distrito Federal, mas que está paralisado. O superintendente do Iphan, Alfredo Gastal, diz que a responsabilidade pela interrupção é da Brasília Tur. A empresa de turismo do GDF informa que o processo, de 2 de fevereiro de 2009, está parado porque a Praça das Fontes não é obra de sua competência.

Conflitos
Fosse olhar em perspectiva, Haru Ono teria mais motivo para lamento. O Parque da Cidade, projeto do fim da década de 1970, foi feito a partir de projeto original de Burle Marx, José Tabacow e do próprio Hahuyoshi Ono. Desde a execução original, porém, não obedeceu ao detalhamento feito pelos três paisagistas. ;Havia caminhos para pedestres. No lugar do Pavilhão, havia uma ponte e um lindo espaço ao ar livre para a Feira dos Estados;, lembra-se a arquiteta Aurora Gomes Ferreira Aragão Santos, 60 anos, prima em terceiro grau de Burle Marx.

A relação de Burle Marx com Brasília foi conflituosa desde o começo. Logo depois da divulgação do edital do Concurso do Plano Piloto, o paisagista levantou o dedo para criticar a falta de projeto paisagístico para a nova capital. Com o desenvolvimento dos projetos de arquitetura, o talento de Burle Marx não foi aproveitado, ao contrário do que aconteceu com Athos Bulcão. O que é de se estranhar, porque ele era um paisagista moderno e já tinha feito, entre suas obras mais importantes até então, o jardim do Ministério da Educação e Saúde Pública e do Museu de Arte Moderna, os dois no Rio. ;Houve um desentendimento qualquer e ele não participou de Brasília;, diz, suscintamente, Lauro Cavancanti, diretor do Paço Imperial no Rio de Janeiro e estudioso da arquitetura moderna no país. Não existe nenhum projeto de tombamento das praças de jardins de Burle Marx em Brasília. Só o do Itamaraty está tombado.

; Projeto rejeitado
Burle Marx também fez o projeto do Parque Zoobotânico, área prevista para o Plano Piloto, nas proximidades de onde é hoje o Estádio Mané Garrincha. Haru Ono conta que, durante o governo José Aparecido de Oliveira (1985-1988), Burle Marx fez um anteprojeto de paisagismo para o canteiro central da Esplanada dos Ministérios. ;Era apenas um renque de palmeiras entremeadas por outras árvores;.

Antes de apresentá-lo ao governador, o paisagista levou a ideia a Lucio Costa que, ;muito educadamente;, como se lembra Haru Ono, o rejeitou.

; Do mato fez-se o belo
O diretor do Paço Imperial e arquiteto Lauro Cavalcanti considera Burle Marx o maior paisagista do século 20. E explica por quê: ;Antes, não havia a especificidade do jardim moderno, não havia campos de cor de desenhos que reproduzem a estética da pintura moderna;. O detalhamento dos projetos era, por si só, uma obra de arte. Além disso, Burle Marx ;tirou do limbo as espécies nativas que até então eram consideradas só mato. Ninguém pensava em usá-las em jardins;. Haru Ono conta que, durante a execução dos projetos, Burle Marx e ele saíam cerrado afora à procura de espécies nativas que pudessem ser transplantadas para os jardins modernistas. Uma das mais lembradas operações de transplante de vegetação na cidade foi a que levou os buritis para os jardins do Palácio do Itamaraty, lembra-se Ono.

; Programação
Música, debate, exibição de documentário, concurso de redação fazem parte das comemorações do centenário de Burle Marx organizadas pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, com a participação do Exército, da Novacap, do Jardim Botânico de Brasília, da Secretaria de Cultura e da Brasília Tur.

Confira as atividades
7 de agosto, sexta-feira
7h ; sarau com quarteto de cortas e chá nos jardins da 308 Sul

15 de agosto, sábado
10h ; reinauguração da Praça dos Cristais com banda do Exército
11h ; entrega do prêmio Concurso de Redação dos estudantes da rede pública
18h ; coquetel e exibição do videodocumentário Burle Marx: ciência e arte do paisagismo, no Teatro Nacional
19h30 ; concerto da Orquestra Sinfônica de Brasília no Teatro Nacional

27 de agosto, quinta-feira
9h ; seminário Os jardins de Burle Marx, no Museu Nacional de Brasília

; Desprendido com o saber

Prima de Burle Marx, a arquiteta Aurora Santos mora em Brasília: atrás, a SQS 308, quadra-modeloBurle Marx deixou laços de parentesco em Brasília. A arquiteta pernambucana Aurora Gomes Ferreira Aragão Santos, 60 anos, é prima em terceiro grau do paisagista. Quando viveu no Recife, onde exerceu o cargo de diretor de Parques e Jardins, Burle Marx morou na casa de sua prima, Laura Burle Gomes Ferreira, avó paterna de Aurora.

A arquiteta se lembra de que, aos 15 anos, foi com a família conhecer o sítio de Burle Marx no Rio de Janeiro. Da visita nasceu o interesse ;de fazer alguma coisa na área de paisagismo;. Depois que se formou em arquitetura, Aurora pediu à avó que pedisse ao primo para recebê-la no sítio para um estágio informal.

;Fiquei morando com ele durante dois anos. Foram anos maravilhosos. Ele era uma pessoa muito simples, tinha um conhecimento fantástico e era muito generoso. Ele era despreendido com o saber dele. Passava tudo para todo mundo. Tudo o que sei de paisagismo, aprendi com ele;. Aurora é arquiteta da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente do DF (Seduma).

; Biografia
O artista das plantas

O homem de cabelos e bigodes brancos já havia passado dos 70 anos quando decidiu coordenar uma expedição científica à Amazônia. Botânicos, arquitetos paisagistas e fotógrafos percorreram mais de 10 mil quilômetros em 53 dias de exaustiva rotina de observação, coleta de espécies, documentação, catalogação e embalagem de plantas vivas, como relata Vera Beatriz Siqueira em Burle Marx, da editora CosacNaify.

O mesmo desbravador de florestas ; que se apossou do espírito dos viajantes europeus dos séculos passados ; era um paisagista que, na prancheta, desenhava projetos que ainda no papel já eram uma obra de arte. Apesar disso, ;o desenho jamais determinou o destino do jardim, que o paisagista sabia ser imprevisível e instável;, como escreve Vera Siqueira.

Quarto filho do alemão Wilhelm Marx com a pernambucana Cecília Burle, Roberto nasceu em São Paulo, mas ainda nem havia ido para a escola quando a família se mudou para o Rio de Janeiro. Na casa ao pé do morro da Babilônia, perto do mar, ele começa a cuidar de seus primeiros canteiros, motivado pela mãe que cultivava um jardim de estilo europeu, e pelo pai, que assinava revistas estrangeiras de jardinagem.

Vocação
Era adolescente quando conheceu Lucio Costa, seu vizinho, amigo para toda a vida. Aos 19 anos, viajou para a Alemanha em busca de tratamento para problemas de visão. Absorveu toda a vida cultural da cidade e, no Jardim Botânico de Dahlem, descobriu sua vocação para o paisagismo ao comparar a vegetação das espécies brasileiras com as europeias. Diria, mais tarde: ;Sou muito brasileiro. Foi uma coisa que descobri em Berlim, em 1928;.

Do primeiro jardim, feito a convite de Lucio Costa, às obras do Aterro do Flamengo, do calçadão de Copacabana, às de Brasília, aos projetos, convites e conferências, Burle Marx foi plantando na terra o seu compromisso com a arte, a ecologia urbana, com a força da natureza nativa, onde quer que ela brote.

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