postado em 16/08/2009 08:46
Do alto do morro ; com as casas simples do Varjão vistas de cima e as mansões do Lago Norte ao fundo ;, ela diz, olhando atentamente para aqueles dois meninos que insistem em crescer: ;A ficha ainda não caiu. É o melhor sonho que já vivi em toda a minha vida;. A frase, pronunciada com os olhos marejados de felicidade, é de uma mulher porreta, boa de briga e de gogó. Na verdade, ela, depois deles, é a grande personagem de toda essa história. A ela, todos os elogios, todas as condecorações. Ela, sim, é ;o cara;.
Silvinha Chaves de Queiroz (sim, o nome dela de batismo e na certidão é escrito no diminutivo mesmo) se despedirá no fim deste mês de um filho. Em outubro, o outro, dois anos mais novo, também partirá. E ela ficará no Varjão, encravado nos fundos do Lago Norte, à espera de notícias. Pensa até, se o dinheiro der, em comprar um computador para poder ficar ;mais perto; deles. De tudo, só há uma certeza: foi pelo esforço dela que os dois chegaram tão longe. Mesmo que cruzem oceanos, ela sabe que estarão sempre perto.
Essa história começa com Silvinha. Filha de um pedreiro baiano e de uma dona de casa mineira, ela nasceu no Hospital de Base há 32 anos. Do hospital, direto para o Varjão, antes uma invasão sem nenhuma perspectiva. Ali, cresceu. E logo aprendeu a diferença entre ricos e muito pobres. Entendeu a distância anos-luz que separa os dois mundos.
Aprendeu, na marra, que o mundo é feito de divisões. E que o Lago Norte, embora colado, ficava muito, muito longe do lugar onde vivia. Aos 12 anos, virou babá dos filhos bem-nascidos daquela gente rica. Tempos depois, ganhou promoção. Tornou-se doméstica. Era a vida da menina magrinha, de andar ligeiro, olhos acesos e jeito gostoso de moleca.
No domingo de folga, ela fazia o que mais gostava: jogava futebol. A mãe, mineira, ia ao desespero. Resmungava: ;Que história é essa de menina jogar jogo de homem, uai?; O pai, baiano, admirava a ousadia da filha que nunca foi chegada a boneca. ;Oxente, deixa ela jogar, mulher.; Silvinha reunia as colegas e batia uma peladinha nos campos de várzea improvisados da invasão. Posição? Sempre zagueira. Arrasava. Com ela, todo ataque era interceptado. Sem choro nem vela.
Silvinha se impunha e sempre salvava o time. Longe das cozinhas chiques de gente rica, a zagueira organizava torneios. Arrebanhava a comunidade para a torcida. Domingo de futebol na invasão virava festa. Depois, como ninguém é de ferro, pausa para o namoro. Sim, a zagueira namorava o atacante do time masculino. Wanderlei, o maior fazedor de gols daquela época, goleou o coração da menina moleca.
Aos 14 anos, a zagueira se casou com o atacante. Paria a cada dois anos. E nasceram os três primeiros filhos: Charles, hoje com 18 anos, Evandro, 16, e Romário, 14. Romário? ;Sou flamenguista roxa e apaixonada pelo baixinho marrento (refere-se ao ídolo). Pra mim, ele foi o melhor jogador do Brasil e do mundo de todos os tempos.; Depois, veio a separação. Aos 25 anos, casou-se pela segunda vez com Gilmar, um auxiliar de serviços gerais. Nasceram os dois últimos filhos, Sthefany Cristine, 7, e Carlos Eduardo, 3.
Tal mãe, tais filhos
Os três mais velhos, desde crianças, também se apaixonaram pelo futebol. Filhos do melhor atacante e da melhor zagueira do Varjão, não podiam ser diferentes. O pai se mudou dali. A mãe ficou. E ela começou a organizar torneios nos campos de várzea. Silvinha passou a ser técnica e dona do Juventude Esporte Clube, time onde Evandro e Romário jogavam como atacantes, em categorias diferentes. Os berros de Silvinha ecoavam pelo campo. A meninada tremia. Xingando os filhos, até se esquecia que xingava a si mesma.
E foram muitas as vezes em que a mãe foi chamada à escola. Motivo? Os dois nunca compareciam às aulas. Preferiam jogar nos campinhos de terra. No fim do ano, não dava outra: reprovação por falta. Evandro cursa a 7; série. Romário, a 5;. Até a avó, mãe de Silvinha, era cúmplice dos netos. ;Quando eu colocava os dois de castigo, era só eu sair e ela mandava os meninos pra rua.;
Vieram os campeonatos de várzea fora do Varjão. Evandro e Romário passaram a ser conhecidos em cidades vizinhas. Viraram heróis com seus dribles desconcertantes e jogadas sensacionais. No último campeonato, realizado no Paranoá, o flamenguista Romário marcou 28 gols, na categoria mirim. Evandro, corintiano roxo, do infantil, arrasou com 16 chutes que furaram a rede do goleiro. Show de bola. Silvinha ia ao desespero, tamanha a comemoração.
Um dia, cansada de ver os filhos jogando, cada vez melhor, mas sem perspectiva de saírem do Varjão, Silvinha pediu ajuda à filha de uma ex-patroa. Queria saber como faria para levar os filhos a um time onde eles pudessem ter seus talentos reconhecidos. Silvinha pedia apenas uma chance. O resto, eles provariam merecer.
A advogada Tatiana Strang, de 29 anos, e o marido Alexandre Naves, empresário, 41, prometeram ajudar. Levaram Evandro e Romário para uma peneira no Planalto Futebol Clube. Lá, num coletivo com adolescentes da mesma idade, os meninos do Varjão deram um show. Assistindo a toda a partida, estava Stefano Cionini, agente credenciado a Fifa no Brasil. O italiano ficou impressionado com o talento dos craques. Indicou os dois para times da Europa. Silvinha não acreditou. Imagina viver um sonho. Tem medo de dormir e despertar. Lá no Varjão, ela se belisca e agradece a Deus: ;Ele sabe de todas as coisas;.
Boa viagem
Evandro, 1,67m e 64kg, partirá daqui a alguns dias. Jogará no juvenil do Villa Real, na Espanha. Em outubro, Romário, 1,62m e mirrados 52kg, embarca para a Inglaterra. Vai jogar no ataque do Liverpool. Tatiana, que virou representante e empresária dos jogadores, está na Espanha resolvendo a partida de Evandro. Ela retorna ao Brasil no dia 21. Por telefone, falou ao Correio: ;Não é brincadeira negociar com o mercado europeu. Mas os meninos são bons de verdade e interessaram aos clubes da Inglaterra e da Espanha;.
Tatiana explica que haverá um período de treinamento e adaptação dos atletas nos clubes para os quais estão indo. Cumprida essa etapa, chegará o momento da formalização do contrato, que, em média, é de três anos. ;O que posso dizer agora é que o salário inicial de cada um deles será mais de 2 mil euros (perto de R$ 6 mil).
Encantada com os dois jogadores, a advogada, que passou a entender de futebol, traça um panorama dos meninos humildes do Varjão: ;O Evandro tem uma característica que lembra muito a do jogador Romário (o baixinho marrento). Ele pensa, lê a jogada, se posiciona e mete a bola pro gol, sem pena. Já o Romário é cheio de malícia, gosta da malandragem, faz firula, dribla, provoca o adversário e encerra a jogada com gols sensacionais. Lembra muito o Robinho;, define.
Lá no Varjão, bem longe da Europa, Silvinha pensa em acabar a reforma da casa, pela qual peleja há dois anos. Evandro faz planos: ;Se tudo der certo, vou comprar uma casa linda pra minha mãe. É pelo esforço dela que a gente tá indo;. Romário promete: ;Vou abrir uma creche aqui no Varjão e colocar o nome da minha avó Marli. Ela muito ajudou a gente;. Evandro está com o coração partido. Vai sentir falta dos amigos, do pagode e de uma certa menina com quem anda ;ficando;. Romário pergunta se na Inglaterra vai poder pescar. Os meninos do Varjão, de malas prontas para a Europa, um novo e inimaginável mundo, mal conhecem o Plano Piloto. E nem sabem direito pra que lado fica o aeroporto.
Silvinha, sempre forte, segura a emoção. Quer parecer rocha diante dos filhos. Tudo mentira. O coração está em frangalhos. ;Eu não posso chorar perto deles;, diz, com os olhos umedecidos. Essa é a história de uma mãe zagueira e dois filhos atacantes. Uma cidade humilde, um campo de várzea, o poeirão subindo com o grito de gol. Agora, disseram-lhes que podiam partir. Voar bem longe. Ir além dos campos de várzea. Mais do que jogadas cheias de dribles e ataques mirabolantes, essa é a história de um sonho. Evandro e Romário, apesar da pouca idade, já desconfiaram disso. Que a Europa receba de braços abertos os meninos heróis do Varjão.