Depois de passar 11 meses matando e depenando 60 galinhas por dia para alimentar os candangos no tempo da construção de Brasília, a mineira Maria Apolinária se cansou da tarefa e arranjou um emprego de jardineira na chácara de Sozanine, como o patrão gostava de ser chamado. Um dia, Sozanine pediu a ela que colhesse flores e arbustos do cerrado e os deitassem ao sol. Seco o material, ele mergulhou o buquê em água de tinta, levou de volta ao sol e mais tarde compôs arranjos. O dono da chácara se chamava José Zanine Caldas (veja página ao lado), morreu em 2001 e foi um dos mais admiráveis paisagistas, moveleiros, escultores, maquetistas e arquitetos contemporâneos.
Começava assim a tradição das flores secas do cerrado que aquecem de cores a calçada ao lado da Catedral, brotam em arranjos na Feira da Torre de TV e inspiram designers de joias, estilistas, artesãos, artistas plásticos, fotógrafos, músicos e poetas. Depois que Sozanine saiu de Brasília, Maria Apolinária tratou de procurar outro emprego. Foi costureira, cozinheira e jardineira, até que um dia, andando pelo cerrado, lembrou-se da arte de fazer flor. Desde então, nove de seus 10 filhos, genros e netos aprenderam e alastraram os segredos do artesanato mais tipicamente brasiliense.
A arquitetura de flores do cerrado tira a matéria-prima dos campos limpos, dos sujos e dos rupestres que contornam a capital. Usa especialmente folhas e sementes para compor as peças. Os artesãos das flores secas já estão acostumados a ouvir acusações de que causam prejuízos ao cerrado. Têm contra-argumentos ; e fortes. Asseguram que prejuízo muito maior é causado pela plantação extensiva da soja e o alastramentos dos condomínios em áreas rurais.
A botânica e ecóloga Cássia Munhoz, professora da Universidade de Brasília, diz que a exploração da flora do cerrado pelas comunidades tradicionais não oferece risco ao meio ambiente. ;Eles têm o conhecimento de quando e como pode ser feita a colheita;, explica. Os danos são grandes quando o extrativismo para fins comerciais é excessivo e sem monitoramento de sustentabilidade. Cássia é uma das autoras do livreto Guia de plantas do cerrado utilizadas na Chapada dos Veadeiros, publicado pela WWF-Brasil, edição esgotada.
Boa parte das espécies que estão no guia se oferece, na sua singularidade seca e colorida, aos turistas que vão à Catedral. O cearense Guajará Ferreira de Paula, 44 anos, pega uma haste de pireque-branco e nela enfia uma pétala que sai de dentro da semente da papoulazinha. ;Esta é a flor do cerrado. Pode levar, é sua;, ele dia ao turista. Há 23 anos, é artesão de flores. Ele e quatro irmãos. São famílias que mantêm a tradição.
Depois de 40 anos de colheita de flores, folhas e sementes do cerrado, dona Maria Apolinária, 75 anos, ainda encontra o que procura a menos de 10 minutos a pé de sua casa, no bairro Nossa Senhora de Fátima, em Planaltina, quase à margem da BR-020. ;O que acaba com o cerrado é a soja. Onde ela passa, não brota mais nada, é uma tristeza só. Eu sei a época certa da colheita, sei quando pode e quando não pode.; Kátia, 35 anos, desde os três acompanha a mãe na Torre de TV. Hoje, tem sua própria barraca e também retruca qualquer acusação de danos ao cerrado: ;Os condomínios fizeram muito mais estrago do que todos os anos em que os artesãos vêm fazendo colheita;.
Confira videorreportagem sobre as flores secas do cerrado:
Composições
Há uma espécie que quase já não se vê nas proximidades da área urbana do DF. É a folha-moeda (Chamaecrista orbiculata, nativa de cerrado com formações rochosas). Depois de passar por fervura em soda cáustica e clareamento com cloro, ela perde a clorofila e, ao secar, se transforma num esqueleto de folha. Banhada em ouro, vira joia. Mas os artesãos da Catedral e da Torre fazem das folhas esqueletizadas flores coloridas. São as mais procuradas.
Nem todas as flores secas do cerrado foram criadas pela natureza. Muitas são composições artesanais, feitas de folhas com sementes, de hastes com folhas, de sementes com hastes. A linha de produção começa no cerrado, com dona Maria Apolinária. No mínimo três vezes por semana,ela se levanta por volta das 5h e sai, sozinha ou com o genro, Júlio César Damasceno de Santana, rumo ao cerradão. Leva dois ou três sacos de plástico de 30 litros e vai recolhendo folhas, flores, hastes e sementes. ;Tem dia que a gente anda 30km a pé no meio do mato;, conta Júlio.
As folhas-moeda são as que dão mais trabalho. No dia seguinte à colheita, dona Maria tira-as dos galhos e junta-as num tonel cheio de água ao qual foi adicionada pequena porção de soda cáustica. A mistura vai ao fogo por mais de duas horas, período em que a planta começa a perder a clorofila. Em seguida, as folhas são fartamente enxaguadas e voltam para o tonel, desta vez temperado com cloro. É ele quem vai alvejar a folha. Por último, vão para a secagem. Daí então podem ser tingidas e estão prontas para serem transformadas em rosas, brincos, porta-guardanapos, arranjos de mesa, bordados. Com elas já se faz até colcha de cama.
O professor, o aluno e o belo
O arquiteto Cydno Silveira se lembra vagamente de Maria Apolinária, mas tem nítida memória da obsessão ; a palavra é dele ; de José Zanine Caldas pela vegetação do cerrado. ;Me lembro que a gente saía de Kombi pelo cerrado e ele parava, descia e ia catando flores, pedaços de pau torto pra depois fazer os arranjos. Zanine foi o primeiro a descobrir o belo no cerrado. Eu mesmo descobri com ele como o cerrado era bonito.;
Aluno de Zanine nas aulas de maquete no curso de arquitetura da Universidade de Brasília, Cydno se tornou amigo do arquiteto e admirador de sua intensa atividade criativa. ;Se fosse hoje, a gente diria que ele era multimídia. Zanine não parava. Entendia de agricultura, paisagismo, tinha uma floricultura na W3 Sul, fazia móveis, fez jardins para a UnB. Zanine não parava. Tinha uma obsessão quase patológica por querer aproveitar tudo. Ele não jogava nada fora. Fazia banco, arranjo de flores, casas, cultivava tomate;;
A Kombi de Zanine só tinha o banco da frente. Todo o resto era um imenso porta-tudo. ;Zanine começou a fazer mudas de espatódia, de flamboyant, de sibipiruna, de ipê, plantas que ele mandava vir de fora e fazia muda em lata de óleo. A chácara tinha uma enormidade de mudas.; Preso pelo Golpe de 1964, o arquiteto das flores secas do cerrado saiu de Brasília e deixou a chácara com o amigo Cydno. ;Às pressas, trocamos a terra por dólares;, conta o amigo. Havia no terreno uma casa de madeira, projeto de Zanine. Anos depois, Cydno a vendeu. Nem ele nem Maria Apolinária se lembram com exatidão do endereço do lugar. Sabem que fica nas proximidades da Rodovia BR-060, possivelmente no município de Santo Antônio do Descoberto.
Desde a década de 1970, Cydno Silveira desenvolve projetos com Oscar Niemeyer. Tem escritório no Rio de Janeiro e se dedica também a projetar casas de taipa (www.csaarquitetura. com.br).
Muitas marias
Maria Apolinária já foi Maria da Pipoca, Maria das Flores e hoje é Maria das Folhas. Quando morava em Taguatinga, os vizinhos a chamavam de Maria da Pipoca, porque o marido era pipoqueiro. Depois de reencontrar as flores do cerrado, passou a ser chamada de Maria da Flores. Agora que vive da colheita da matéria-prima, chamam-na de Maria das Folhas.
Já viveu outras vidas, Maria Apolinária. Ela conta que nasceu na Fazenda dos Cativeiro (assim, sem concordância nominal), no município de Pitangui, região que desde o fim do século 16 abrigava índios fugitivos das bandeiras. Os negros haviam abandonado a casa da fazenda e os avós de Apolinária a ocuparam. ;Era uma casa feita de troncos de árvores desse tamanho (ela abre os dois braços) e sem nenhum prego. Era toda amarrada com cipó. As telhas de barro eram enormes, pesavam mais de 10 quilos.;
A mãe de Maria morreu quando ela tinha sete anos. O pai doou os quatro filhos, cada um para uma família diferente. ;Fui criada pela mão de um médico. Fiquei na casa dele até os 14 anos. Trabalhava pior que uma escrava. E só ganhava comida e quartinho pra dormir. Um dia, eu fui me embora. Disse que queria ganhar meu ordenado.; Nos três anos seguintes, Maria trabalhou em casas de família até que um dia deu saudade do pai e ela saiu à procura dele.
Ele havia se casado novamente e não quis que a filha saudosa ficasse morando com a nova família. ;Não me dei bem com a madrasta. Danei a brigar com ela e meu pai comigo, e aí eu decidi que o primeiro pé torto que aparecesse eu ia me casar.;
Maria ainda estava com 17 anos quando se casou. O pé torto tinha 31 anos. Vieram para Brasília em 1958, atrás do sonho. Ele foi trabalhar como operário da construção, e ela, matando galinha até encontrar José Zanine Caldas e com ele aprender a gostar do cerrado e a tirar dele a beleza empinada das flores secas.
A mulher de Zanine, Delza, a segunda das quatro que ele teve, fez de tudo para adotar o filho mais velho de Maria. ;Gosto muito da senhora e do Sozanine, mas não vou dar o meu filho. Enquanto eu for viva, não dou meu filho, não.; Maria teve 10, dos quais nove aprenderam o artesanato das flores. Duas filhas e dois netos até hoje vivem do engenho que Zanine lhes ensinou.
Mais que isso, Sozanine ensinou muito mais para Maria dos Cativeiro. ;O cerrado é saúde. No cerrado, recebo a energia do caboclo limpo do mato, dos capins. Os bichos têm energia boa. Estou com 75, beirando os 76, e não tenho pressão alta, não sou diabética, não sinto o coração, não sinto nada.; Maria Apolinária pode ser chamada também de Maria que Sabe Viver. (CF)