Manoel Bandeira
Vi ontem um bicho
Na imundice do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa;
não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus,
era um homem.
Fábio Batista vive no lixo. O endereço do barraco de 6m; que divide com João Rodrigues dos Santos é o Aterro da Estrutural. Entre as quatro pranchas de madeirite que fazem as vezes de paredes, espaço apenas para os dois colchões de solteiro e uma pilha de entulho ; tudo o que eles têm na vida. Nos achados, destaca-se um rádio que está sempre tocando sucessos de duplas sertanejas. É uma tentativa de fugir dali para o interior do Nordeste, de onde partiram no início desta década em busca de uma vida melhor. Fábio e João têm quase a mesma idade, 37 e 35 anos respectivamente, e vieram da Bahia. Mas os dois se conheceram no Lixão. Lá, decidiram ganhar a vida quando começou a faltar serviço como ajudantes de pedreiro.
A rotina de Fábio e João está longe de ser exceção no dia a dia dos 176 hectares cobertos com 15m de lixo ; a altura de um prédio de quatro andares. No alto da área equivalente a 176 campos de futebol, ou nove Parques Olhos d;Água, moram outras dezenas de catadores de lixo. A menos de 20m do recanto dos amigos, uma espécie de vila de madeirite começa a se formar com outros 25 barracos. A realidade, desconhecida pelas autoridades, é reflexo da crise que barateou o preço dos recicláveis e aumentou o aluguel das casas. Assim, algumas estruturas que já existiam para abrigar os trabalhadores contra o sol forte ao longo da jornada transformaram-se, aos poucos, em improváveis residências.
Encontrados entre o material desprezado pelos brasilienses, os colchões dos baianos ficam sobre o chão ; não de terra, mas de lixo batido. No alto do barraco, como cobertura, está uma lona que não protege do frio das madrugadas. ;O frio é demais, mas o pior é o gás que solta do chão e faz mal para o nariz e para a garganta da gente;, observa Fábio.
A escolha do Aterro da Estrutural como lar foi uma contingência da vida. ;O aluguel é caro demais. Não tenho como pagar R$ 200 por um barraco lá embaixo e ainda comprar comida, pagar luz e água. Aqui, a gente se vira;, completa João. Por ;se virar;, entende-se passar as noites no escuro e comer o que é possível encontrar em meio às sobras dos supermercados da cidade.
Os barracos são facilmente montáveis e desmontáveis. A praticidade é obrigatória, já que morar no local é proibido pelo Serviço de Limpeza Urbana (SLU). Além disso, o despejo do material coletado em supermercados, construções e vias das cidades do Distrito Federal varia a cada dois meses para equilibrar a montanha de detrito. ;A gente muda os barracos quando os caminhões começam a parar em outros lugares aqui do Lixão;, explica José da Silva Medeiros, 42 anos, e que veio do Piauí há oito anos. ;Não dá para bobear com as bags porque os malas podem roubar;, diz, referindo-se aos sacos de 100kg repletos de material selecionado. A explicação de José deixa claro o segundo motivo que leva os catadores a dormirem em meio ao lixo: nem sempre dá para vender a coleta no mesmo dia e deixar o material para trás é perigoso.
Telhado de piscina
Aos 61 anos, o paraibano Antônio Gomes da Rocha também mora no lixo. O outrora carvoeiro cata o próprio sustento há 14 anos. Há quatro meses, foi atingido na cabeça pela tampa de um caminhão-coletor. Depois de ficar internado no Hospital de Base, voltou para a labuta no Lixão. E por lá ficou. O barraco em que morava foi invadido e, agora, seu Antonio mora de favor. ;Tenho vontade de parar de catar lixo, mas não tenho quem me dê as coisas. Não gosto nem de voltar lá no barraco. Sabe como é: quando a gente mora de favor escuta muita conversinha;, conta, pitando um cigarro de palha. Ele só volta para a outra casa aos domingos. A do aterro se resume a um colchão velho, um telhado improvisado com uma antiga piscina e paredes de madeirite.
Mil e seiscentas pessoas estão cadastradas no SLU como catadoras no Aterro da Estrutural, mas o órgão estima que cerca de 900 trabalhadores do lixo circulem pelo local diariamente. Os responsáveis não sabem quantas pessoas vivem no lugar. Como a prática é irregular, os catadores desconversam sempre que alguém pergunta sobre a rotina. Além disso, ainda existem barracos que servem apenas de apoio durante a jornada. ;Não moro aqui, só durmo de vez em quando e também me protejo do sol;, alega Marlene de Fátima Silva, 37 anos.
TRÊS PERGUNTAS PARA...
Marta Sales, subsecretária de Assistência Social da Secretaria de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda
O governo sabe que há pessoas morando no Aterro da Estrutural?
Estamos tomando conhecimento agora. Pelo visto, é um fenômeno extremamente novo. Sabíamos que existem barracas usadas para o trabalhador ficar durante o dia de trabalho, mas não que algumas pessoas dormiam nelas.
Que apoio é dado aos catadores de lixo?
Fizemos uma ação com os catadores por causa da crise econômica mundial depois da considerável queda no valor do material reciclável. Eles estavam passando necessidade. Umas 800 famílias recebem R$ 320 por três meses e já são, de certa forma, conhecidas pelo Centro de Referência em Assistência Social (Cras) da Estrutural.
E agora, o que será feito?
O problema parece mais grave até porque qualquer quartinho na Estrutural custa R$ 200. Vamos pedir à equipe do Cras para visitar imediatamente o aterro e checar se essas pessoas receberam apoio. Temos, inclusive, que verificar se o valor repassado será suficiente. Parece-me que R$ 320 é pouco para esse fenômeno.
VIOLÊNCIA
Ocorrências registradas no Lixão da Estrutural, entre novembro de 2007 e julho de 2009:
9 fetos localizados
5 acidentes
4 atropelamentos
2 mortes
1 tentativa de estupro
1 esfaqueamento
Fonte: SLU