Cidades

À revelia dos médicos, gestantes trabalham em meio a detritos contaminados

Mirella D'Elia
postado em 21/08/2009 08:59
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é claro: criança não pode trabalhar em hipótese alguma (leia o que diz a lei). E os adolescentes só podem entrar na labuta a partir dos 14 anos, desde que o serviço não seja insalubre. Lucas* ainda nem nasceu e já teve seu direito violado. A previsão do médico do pré-natal é que a mãe dele, Jaqueline*, de apenas 16 anos, dê à luz no mês que vem. No entanto, o menino já passa os dias no Aterro da Estrutural. A pobreza sentencia o destino dos filhos do Lixão. Assim como Lucas, Marina*, que deve nascer nos próximos dias, é assídua frequentadora do Lixão. "Essa aí já vai vir ao mundo catando latinha e garrafa pet", comenta um catador com a futura mãe da menina, Maria de Fátima Santana, 34 anos. O médico de Jaqueline não sabe que ela trabalha no Lixão. "Eu não contei para ele. Quando fiquei grávida, o médico disse que eu não podia vir para cá de jeito nenhum, que eu tinha que cuidar da minha saúde", lembra a jovem, ao lado do pai do menino, o também catador José Roberto de Jesus, 34. "O que eu não gosto mesmo é de dormir aqui, mas às vezes a gente tem que se apertar entre as sacolas para se proteger do frio e passar a noite cuidando do que catamos", comenta a adolescente. Maria de Fátima não precisou mentir para o médico. "Ele sabe que eu venho para cá, mas vai fazer o quê? Tenho que trabalhar", explica. A mulher, que já acumula vários fios de cabelo branco, não pode perder tempo. Além da menina que carrega na barriga, ela tem outros cinco filhos. Não são apenas os bebês que estão expostos à insalubridade e aos riscos do Aterro da Estrutural. Bruno*, 13 anos, trabalha duro para ajudar no orçamento de casa. "Vou para a escola todo dia, mas depois do almoço encontro meu pai e cato latinha", conta. A mãe do adolescente passa os dias em casa cuidando dos outros três filhos, todos mais novos que Bruno. Aluno da 5ª série do ensino fundamental, no Guará, o garoto leva marmita para o Lixão e come sentado em uma pilha de papéis. "O dia que eu mais gosto é quando minha mãe manda bolo e suco". Vidro de perfume Víctor* também leva a rotina de trabalho a sério. O garoto de 12 anos procura no lixo vidros de perfume que vende para a tia por valores que variam de R$ 0,50 a R$ 2. "Ela lava, coloca perfume dentro e vende", entrega. O menino também está na escola - até usa, no Aterro, o uniforme do colégio. Da mesma idade, João é mais relaxado. "Quando acho bola por aqui, fico fazendo embaixadinha. Hoje não tinha e eu fiz uma pipa", diz. O garoto esbanja criatividade ao confeccionar o papagaio: em vez do papel de seda e dos bambus, uma bandeja de isopor que serviu para armazenar bifes. João é uma exceção. No Aterro da Estrutural, não há lugar para brincadeira. Meninos e meninas trabalham o tempo todo. Sob chuva ou sol forte, em meio à lama ou à poeira, carregam sacos lotados de material para reciclagem, cercados por moscas e observados por urubus. Ao contrário dos adultos, não usam luvas - não há tamanho disponível, no mercado, para proteger as pequenas mãos. Por essas e outras, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) coloca tal condição entre as piores formas de trabalho. No lixo, o direito de ser criança não existe. Atração do ganho A secretária de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda (Sedest), Eliana Pedrosa, informou que vai enviar uma equipe até o Lixão da Estrutural para verificar a situação. Ela classificou como "impensável" a presença de crianças trabalhando no aterro. As equipes tentarão convencer as famílias a não levar mais menores para o local. Se houver resistência, caberá à Justiça decidir o que fazer. Eliana admite que a remoção de menores do Aterro é uma tarefa árdua (leia Memória). "A situação se repete porque a atração do ganho é muito grande. Ninguém quer sair", lamenta. Ténicos da Sedest, acrescenta a secretária, já constaram que há duas famílias morando no Lixão da Estrutural - a denúncia foi revelada pelo Correio na última quarta-feira. A secretaria esclareceu ainda que repassou auxílio aos catadores uma única vez para cada beneficiário, e não por três meses, como havia sido publicado anteriormente. Houve três entregas para grupos distintos e com valores diferenciados: de R$ 240 para coletores solteiros, R$ 270 para casados, R$ 290 para catadores com até três filhos e de R$ 320 para os com mais de três filhos. Riscos Grávidas e crianças ficam mais vulneráveis em um ambiente tão insalubre como o Lixão. Estão sujeitas a doenças infectocontagiosas, como hepatites, hantaviroses e infecções gastrointestinais. "Se o ambiente é danoso para pessoas sem qualquer comprometimento, para mulheres grávidas e crianças é mais grave", avalia o clínico-geral Renato Gouveia. "Isso sem falar na forte chance de ter diarreia, o que pode causar desidratação". * Nomes trocados em respeito ao ECA Licitação para aterro Dois dias após o início da série de reportagens do Correio sobre o Lixão, foi publicado na edição de ontem do Diário Oficial do DF o anúncio da concorrência pública para a implantação e operação do Aterro Sanitário de Brasília, que vai funcionar em Samambaia. O valor é de R$ 300 milhões. A abertura dos envelopes da licitação ocorrerá em 25 de setembro, e o tempo previsto para a empresa utilizar o novo aterro é de 15 anos. A unidade vai substituir o Lixão da Estrutural. O projeto prevê o aproveitamento do gás produzido com a decomposição do lixo, a compactação dos resíduos orgânicos antes do soterramento e o tratamento do chorume. Será o primeiro aterro sanitário do DF, e a entrada de catadores será proibida. Memória Férias na sujeira Não é a primeira vez que o Correio denuncia a presença de crianças trabalhando no Lixão da Estrutural. Em 15 de janeiro deste ano, reportagem mostrou que, durante as férias, o lugar fica repleto de meninos e meninas em serviço sob o sol forte - muitos estavam ali para ajudar os pais a comprar o material escolar. As crianças não usam equipamento de proteção, como luvas e botas, o que aumenta as chances de contaminação. No início de 2009, o então coordenador do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) da Estrutural, Wagner Saltorato, admitiu que o problema é fruto da pobreza. Na época, uma equipe do Creas foi ao local para inserir as crianças em atividades educacionais e recreativas. Mas a maioria dos meninos acabou voltando. Crianças e adolescentes estão entre as centenas de catadores do Lixão e continuam a atuar sem equipamentos. Confira as matérias já publicadas Cachorros, grandes companheiros No Aterro da Estrutural, existem quase tantos cachorros quanto pessoas. Os vira-latas são companhias inseparáveis de seus donos e vasculham o lixo atrás de guloseimas enquanto os catadores buscam as riquezas no Lixão. Que o diga Doralice Maria Jesus, 49 anos. Analfabeta, a mulher trabalha há duas décadas no Aterro, sempre na companhia de um animal. Nos últimos cinco anos, ao seu lado todos os dias está a cadela Elen. "Além dela, tenho o Preto, mas ele é arisco e não tira foto", afirma. A escolha dos cachorros como melhores amigos se explica pelo amor incondicional dos bichos. "Com eles, não há pobreza, miséria ou fome". Preocupação Segundo o chefe do Serviço de Limpeza Urbana (SLU) no Aterro, João Alves da Silva, a presença de animais causa grande preocupação. "Os bichos não são vacinados e estão em lugares insalubres", diz. O Núcleo de Zoonoses do DF informou que cabe aos responsáveis pelos animais levá-los para serem vacinados. O órgão acrescentou que as vacinas ficam disponíveis durante todo o ano na Central de Zoonoses e nas unidades de Vigilância Ambiental. A que atende à região da Estrutural se localizada na Área Especial 12, Lote B, no Guará 1. O que diz a lei O Capítulo 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) proíbe que qualquer menor de 14 anos trabalhe, exceto na condição de aprendiz. O ECA também diz que quem tem mais de 14 anos não pode exercer atividades insalubres, perigosas ou penosas. E deve ter assegurados seus direitos trabalhistas e previdenciários. O Artigo 227 da Constituição Federal, é taxativo: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação