A relação entre usuários e operadoras de planos de saúde é tensa. Não raro, no momento de maior fragilidade, com a saúde ameaçada, ainda é preciso encontrar forças para brigar na Justiça e garantir o direito à assistência médica. Embora a Agência Nacional de Saúde (ANS) seja o órgão do Poder Executivo capaz de exercer o poder regulatório e fiscalizatório ; inclusive com aplicação de multas ;, o Judiciário tem sido a saída para muitas divergências e recusas de atendimento. A boa notícia é que mais de 80% das sentenças do Superior Tribunal de Justiça (STJ) têm sido favoráveis à parte mais frágil dessa relação: o consumidor.
O levantamento é resultado da dissertação de mestrado da advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) Daniela Trettel, defendida em maio deste ano na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. No estudo Planos de Saúde na Justiça: o direito à saúde está sendo efetivado?, ela analisou as decisões do STJ relacionadas ao assunto, de 1990 a 3 de junho de 2008 ; data em que a Lei de Plano de Saúde (Lei n;. 9.656/1998) comemorou dez anos. ;Nesse período, 82% dos casos julgados deram vitória aos beneficiários;, constata Daniela. O STJ é a última instância julgadora de conflitos entre usuários e operadoras e as suas decisões podem influenciar nas sentenças de instâncias inferiores. Com isso, abrem-se precedentes para decisões favoráveis aos consumidores nos casos semelhantes ou mais recorrentes.
O dado é um alento para os pais de Mauro Borges de Sena Selveira, de 3 anos e 9 meses. O bebê é portador de uma síndrome rara, chamada ATR-X (alfa talassemia relacionada ao cromossomo X). Até onde se sabe, essa síndrome só acomete meninos e é responsável por um atraso do sistema motor e cognitivo. ;O Maurinho tem dificuldade para vários movimentos, desde sentar até deglutir e digerir os alimentos. As consequências são quadros de dores abdominais constantes, vômitos que precisam ser aspirados e quedas de saturação, que, se não socorridos em tempo, colocam a vida do meu filho em risco;, preocupa-se o pai, Saulo Sena Selveira.
Devido às internações recorrentes, a operadora de Plano de Saúde de Mauro, a Caixa de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil (Cassi) ofereceu o benefício Home Care (internação domiciliar). ;Para eles era mais viável, já que o gasto com a internação domiciliar é menor que a hospitalar;, justifica Saulo. ;Graças a esse acompanhamento, conseguimos reduzir as internações de Mauro e dar a ele uma melhor qualidade de vida. Mas, agora, depois de um ano, a Cassi quer retirar o Home Care, alegando que o quadro do meu filho é estável. Ele está bem justamente pelos cuidados constantes;, argumenta o pai de Mauro.
Saulo e a mulher, Cássia da Silva Borges, não aceitaram a retirada do Home Care e recorreram da decisão na Cassi. A operadora, por enquanto, não definiu se o benefício será suspenso. ;Diante desses fatos, a Cassi está analisando a melhor alternativa em assistência médica a ser oferecida à criança. O posicionamento da entidade para o caso será finalizado na próxima semana. Mas está garantido o Home Care nesse período;, respondeu a Cassi, por meio de sua assessoria de imprensa. A operadora esclareceu ainda que a intenção é ;adequar a assistência médica oferecida ao atual estágio do tratamento da criança, segundo avaliação dos últimos cinco meses emitida pela equipe multidisciplinar responsável pelo paciente, que ampara seu parecer na RDC n;. 11 de 26/01/2006 ; Resolução da Diretoria Colegiada da Anvisa e Tabela de Avaliação de Complexidade Assistencial da Associação Brasileira de Empresas de Medicina Domiciliar (Abemid).;
Caso a Cassi opte pela suspensão do Home Care, restará aos pais de Mauro o caminho judicial para resolver a divergência. Não há jurisprudência sobre o assunto no STJ. ;Por se tratar de doença rara, as jurisprudências também não serão abundantes. Em instâncias inferiores, há alguns entendimentos sobre a obrigação dos planos de saúde em custear o tratamento de doenças raras e, inclusive, sobre a impossibilidade de limitação em relação ao tempo de fornecimento do Home Care;, explica o defensor público do Distrito Federal André de Moura Soares.
Direitos garantidos
TJDFT
Entre as divergências já decididas pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, o Correio destacou algumas, com auxílio do defensor público André de Moura Soares.
Carência em atendimento emergencial
O prazo é de 24 horas.
Cláusulas ambíguas
Na dúvida, prevalece a interpretação mais favorável ao usuário, conforme previsto no Código de Defesa do Consumidor.
Dependentes químicos
Limitações de internação e de tratamento são proibidas.
Doença pré-existente
A recusa de cobertura por suposta doença pré-existente é proibida, a não ser que tenham sido realizados exames prévios e que esteja evidenciada a má-fé do consumidor.
Direito à informação
Os deveres de lealdade e de boa-fé obrigam os planos de saúde a prestarem informações por escrito aos consumidores.
Home care
Posicionamento favorável ao benefício independentemente da previsão contratual por se tratar de tutela da vida e da dignidade humana.
Medicamento para tratamento de câncer
O fornecimento de medicação já foi objeto de ações judiciais favoráveis aos consumidores.
Planos anteriores à Lei 9656/98
Diversas restrições de cobertura foram consideradas inválidas e reputadas ilícitas.
Rescisão por inadimplência superior a 60 dias
O plano de saúde tem o dever legal de notificar o consumidor antes de rescindir o contrato. Caso contrário, o ato é considerado inexistente.
Rol de procedimentos médicos da ANS
Deve ser observado o tratamento e não a lista de procedimentos
Vinculação de publicidade
O que foi anunciado tem o mesmo poder do que for celebrado em contrato.
STJ
Decisões do STJ que merecem destaque:
# Plano não pode limitar período de internação hospitalar. (Súmula 302 do STJ)
# Companheiro em relacionamento homossexual pode ser considerado dependente no plano de saúde.
# Obrigatoriedade de cobertura de equipamentos e técnicas importadas, quando não existirem similares nacionais
# Se a doença é coberta pelo plano, o tratamento também deverá ser.
Operadoras insistem em negar cobertura
Dos 95 acórdãos estudados pela advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) Daniela Trettel, 85 (89,47%) dizem respeito à negativa ou limitação de cobertura ou assistência médica. Na grande maioria das decisões, 63% dos acórdãos, o Judiciário recorre ao Código de Defesa do Consumidor (CDC) e não à Lei de Planos de Saúde, o que, de acordo com Daniela, demonstra uma fragilidade na regulação do planos de saúde.
Embora a maior parte das sentenças sejam favoráveis ao consumidor, Daniela considera a situação preocupante. ;Primeiro, porque o sistema judiciário deve ser o último recurso, ou seja, quando não foi possível solucionar a questão por meio da atuação da agência reguladora, de uma legislação adequada ou de uma postura respeitosa por parte das operadoras. Segundo, porque o comportamento das empresas de Plano de Saúde é a de reiterar as práticas já consideradas ilegais pela Justiça;, explica Daniela. Para ela, a reincidência tem uma explicação. ;Repete-se a prática porque muitas pessoas não vão cobrar isso judicialmente e porque aquilo que se paga, na Justiça, ainda é pouco se comparado ao que se ganhou desrespeitando o consumidor;, avalia.
Nas instâncias inferiores, a demanda é ainda maior que no STJ. O defensor público do Distrito Federal André de Moura Soares atua em questões urgentes. ;Muitos casos são relacionados à saúde pública, mas os planos de saúde não têm ficado para trás. O maior problema das operadoras é a falta de transparência. As empresas negam determinados atendimentos, mas não comunicam o motivo por escrito porque dessa forma fica mais difícil para os consumidores buscarem seus direitos;, observa.
A estudante Ednar Rodrigues da Silva Lacerda, 35 anos, não pôde esperar o fim do embate com a Allianz Saúde. Portadora de um deformidade progressiva da córnea, que poderia levar à cegueira, ela precisou sofrer uma cirurgia para implante de anel intraestromal (Anel de Ferrara(1)). ;A operadora negou o pedido e informou verbalmente que não arcaria com os custos porque o procedimento médico não constava na tabela da Associação Médica Brasileira (AMB);, conta Ednar. Para realizar o procedimento, ela teve de contrair empréstimo com familiares, no valor de R$ 2.500. Agora, a consumidora tenta, na Justiça, uma indenização pelos gastos materiais e pelos danos morais.
A Allianz Saúde informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que não recebeu nenhuma notificação sobre ação judicial da segurada. A operadora esclarece ainda que se baseia no rol de procedimentos médicos regulados pela ANS, e não na tabela da AMB. Segundo a Allianz, o Anel de Ferrara não consta desse rol.
No entendimento do defensor André de Moura, tal argumento não se sustenta. ;A burocracia do poder público jamais acompanhará os avanços da medicina. Por isso, é injustificável a recusa em prestar novo tratamento que ainda não consta no rol de procedimentos. A questão não é o procedimento ser ou não admitido, mas o tratamento da doença;, defende.
O Diretor Adjunto de Fiscalização da ANS, Dalton Callado, afirmou que a agência tem conhecimento das questões objetos de litígios, mas não se pauta com relação às decisões do Judiciário. ;É claro que sempre buscamos superar essas questões;, garante. E cita como exemplo as cirurgias de angioplastia coronária com implantação de stent. ;Em nível interno da ANS, já é definido como obrigatório;, garante.
Ele também informou que a ANS tem trabalhado para reduzir os prazos na resolução de conflitos entre usuários e operadoras por meio de um contato mais ágil do órgão de fiscalização com as empresas. ;Uma vez reconhecido o erro, não é lavrado o auto de infração;, explica. ;Mas, se houver reincidências de forma abusiva, a empresa perderá o direito da reparação voluntária e eficaz;, completa.
1- Tratamento
Criado pelo oftalmologista Paulo Ferrara de Almeida Cunha, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, o Anel de Ferrara presta-se ao tratamento do ceratocone, uma doença hereditária que atinge pessoas entre 12 e 30 anos e provoca o afinamento e a deformação progressiva da córnea, levando à cegueira. A nova técnica é uma alternativa ao transplante de córnea.