Cidades

O sapateiro filósofo

Em uma diminuta banca instalada no fim da Asa Norte, cearense faz trabalhos dignos de ourives nas encomendas de conserto de calçados e se incorpora à paisagem exercendo outra paixão: a escrita

postado em 28/08/2009 16:56

Jair Lima da Silva e as frases sem norma culta: %u201CEscrevo o que me vem à mente, o que me toca e acho que toca as pessoas%u201DNa entrada de uma quadra residencial da Asa Norte, à sombra de uma mangueira, um homem miudinho conserta sapatos como se remendasse a vida. Entre um solado e outro, um dedo de cola, uma recauchutagem no tênis surrado, um cerzido novo na velha mochila, ele costura histórias e escreve frases nas ;paredes; da sua banquinha. ;Escrevo o que me vem à mente, o que me toca e acho que toca as pessoas também;, explica. Em letra de forma, num português que até pode contrariar a norma culta, arrepiar e remexer o pobre Camões no túmulo e torcer narizes de intelectuais rabugentos, ele rascunha: ;A partir do momento em que as pessoas se conscientizarem que todos somos iguais, a paz reinará;. Com ou sem português casto, a mensagem foi entendida. Isso é o que de fato importa.

As pessoas param. Admiram o trabalho daquele homem. Fotografam suas frases. Perguntam-lhe por que ele faz aquilo. Querem saber da sua história. Incentivam-no. O sapateiro Jair Lima da Silva, de 39 anos, mudou a cara da 415 Norte. Transformou-se, sem saber, em paisagem. Impossível não vê-lo. ;Quem chegou aqui primeiro foi meu pai, em 1983, e plantou esta mangueira. Nem todos os blocos estavam construídos. Não tinha nem o ponto de táxi; lembra o filho do sapateiro, que igualmente sapateiro se tornou.

Um ataque do coração matou Raimundo, o pai cearense, há 11 anos. Jair, que era garçom e servia gente chique em festas e bares de arromba, assumiu o ofício que desde menino, lá em Sobral, acostumou-se ver o pai fazer. Começou a tratar sapatos velhos como se gente também fossem. Deu a eles sobrevida, elegância e sofisticação. Lambuzou as mãos de graxa, cola e tinta. E, com os dedos impregnados, se descobriu poeta das frases certeiras. ;Tô aprendendo o gosto da leitura. As pessoas, meus fregueses, me dão livros usados. Às vezes, eu pego emprestado também nos pontos de ônibus (refere-se ao projeto Parada cultural). Todo tempinho que tenho, tiro pra ler.;

Numa manhã dessas, o sapateiro lia um poema que dizia assim: ;Fui sempre de percorrer na carne o puído dos vãos. Sempre de pôr o pé na intimidade das veias. Sempre de lavrar os dias mais ferozes para que, doendo, amansem a morte;. Suas impressões: ;Eu fico arrepiado quando leio uma coisa que me faz pensar;. Essa é a história do garçom que virou consertador de sapatos. E ela se repete todos os dias, quando ele deixa o Paranoá, pedalando sua bicicleta, com destino à Asa Norte. ;Pego o Varjão e, em 40 minutos, tô aqui;, conta.

Às 9h, pontualmente, desde que assumiu o ofício do pai, ele abre a banquinha. Faça chuva ou sol. Fecha às 17h30. Tem dia em que leva encomenda pra casa na bicicleta. ;Só descanso no domingo.; Manhã de quarta-feira. Começa o longo dia de Jair. Recebe encomendas. Devolve o que está pronto. Termina o que já começou. Cada velho sapato recebe o mesmo cuidado. Como se fosse ourives, trata-os como joias raras. ;Tem gente que se mudou daqui, mas até hoje continua trazendo serviço pra mim. Vem até freguês que nunca morou na quadra e sai de Taguatinga, da Asa Sul, do Sudoeste e até do Lago Sul;, conta, orgulhoso da clientela.

Na moda
O sapateiro poeta garante que gente chique conserta sapatos, sim, senhor. ;Quanto mais dinheiro, mais as pessoas mandam consertar. Se o calçado arrebenta, elas mandam ajeitar. Pobre, não. Joga logo fora. É por isso que vão ser sempre pobres. É pobreza de espírito;, ele reflete. Neste momento, chega à banca uma mulher bem-vestida, de saia longa, funcionária do Palácio do Planalto. Ela pega três peças que havia deixado para recauchutagem. E sai feliz da vida. ;É uma raridade encontrar hoje em dia um sapateiro. É gente quase em extinção. Morava na quadra, conheci o pai dele. Hoje, volto pra trazer sapatos pro conserto.;

Nome da freguesa? ;Nome? Pra quê? Não vou dizer, não.; A mulher que sempre reforma os pisantes chiques não quis revelar o nome. Uma pena. Vai ver, gente chique é assim mesmo... Jair entende as esquisitices de sua clientela. Prefere não comentar (;sapateiro precisa ser discreto, cada sapato é um túmulo, um segredo;, ele ensina). E se volta às suas frases de efeito, esta aqui escrita na lateral: ;Quando você usa drogas, se transforma no que você nunca será. Não faça isso. Deus te ama... Viva ao natural;.

Separado, um filho de 13 anos, ensino fundamental incompleto, Jair conta que se inspira na Bíblia para escrever muitas de suas frases. ;Usei maconha e me livrei disso há mais de uma década. A palavra de Deus me salvou.; E tasca mais uma, nas ;paredes; do seu escritório ao ar livre: ;Tudo que temos é o criador que nos dá. Se não soubermos administrar, ele tira tudo de nós;.

Um morador, velho conhecido do sapateiro, desce do prédio ao lado e lhe deixa uma revista semanal. Jair vibra. ;É assim que me informo;, diz. Mas há hora para isso. ;Aproveito o almoço e ponho a leitura em dia. Guardo uma meia horinha pra isso. Dependendo do dia, até um cochilo dá pra tirar.; Outro lhe entrega o jornal lido. E um radinho o mantém ainda mais ligado às notícias.

Na pauta de planos, a reforma da banquinha é a prioridade. ;O governo agora legalizou a gente. E o prefeito da quadra me pediu pra melhorar a fachada da banca. É o que sempre quis fazer. E ela vai ficar bem bonita, à altura dos meus fregueses e como meu pai sonhava também;, comemora.

Artesanal
Todo o trabalho de Jair é feito manualmente. Da troca de solado à costura de sapatos. ;Toda peça é como se fosse uma obra de arte. Quando eu termino, sempre penso que fiz o melhor;, analisa. Assim, quando o mês é generoso, a renda líquida, descontando todos os produtos que compra, pode chegar a mais de R$ 1,6 mil. ;Tem mais de 10 anos que não sei o que é tirar férias;, comenta. Mas não se mostra abatido: ;Quando você faz um trabalho com amor e dedicação verdadeira, o cansaço não existe;.

Jair elogia uma sandália preta de salto que acaba de ficar pronta. De tão bem feita a reforma, parece nova, recém-saída de uma loja. ;Você tem que ver como ela chegou aqui. Tava bem castigada.; Mira novamente a obra de arte que saiu de suas mãos sujas de graxa. Junto aos cacarecos de sua banquinha, os livros de poesia que ganha e deseja ler. Sonhos feitos de letras. ;A leitura deixa a pessoa mais viva;, reconhece o cearense.

De repente, vem a saudade de Raimundo, o pai que, sem imaginar, lhe ensinou o mesmo ofício. ;Ele era um artista excepcional. Não faço nem a metade do que ele fazia. Costurava bola na mão, usando ao mesmo tempo duas agulhas. Eu nunca consegui fazer isso.; E conta um segredo: ;Um dia, queria ter uma sapataria. Vender sapatos novos, mas sem me esquecer dos velhos;.

Do lado de fora da banquinha apertada de Jair, a vida segue seu rumo. Ziguezague de gente e carros. No meio do caminho, debaixo de uma mangueira que dá sombra, a barraquinha do sapateiro fazedor de frases. A cena incorporou-se à paisagem da quadra. Virou cartão-postal. Referência. ;Tem gente que adora fazer foto aqui. Pede até pra entrar. Gringo fica doido;, alegra-se.

Um morador passa de carro e buzina. É o cumprimento ao homem que, mesmo sem ali viver, conhece a história de muitas pessoas daquela região. Gente que hoje virou confidente e passa na banquinha para jogar prosa fora. Há quem ; os mais novos que viu crescer ; até lhe peça conselhos. Quando a modernidade se impõe e a vida agitada sufoca, um sapateiro filósofo com mãos sujas de graxa ; dentro de sua barraquinha maltrapilha ; rouba a cena. E não arrasa com ninguém. Se todos os ladrões ; sobretudo os da política ; fossem desse naipe, esse país, enfim, teria salvação.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação