Cidades

Creche no Varjão ganha biblioteca e mobiliza entidades de todos os cantos do DF

postado em 12/09/2009 09:13
Há três meses, a história de Ana Paula Soares, 37, foi contada nas páginas deste jornal. Adotada ainda bebê por uma mulher que havia parido 12 filhos, a menina cresceu acreditando que sempre, por mais difícil que seja a situação, há espaço para dividir. E, quando se divide, se transforma. Se renasce. Diva, uma mineira bordadeira de Taguatinga, assim criou a décima terceira filha. Ensinou-a a chamá-la de mãe. Deu-lhe pai, irmãos, uma casa modesta e a infinita possibilidade de sonhar, mesmo diante do muito pouco. ;Às vezes, ela deixava de comer para poder sobrar pra gente;, lembra.

Ana Paula fundou a instituição para homenagear a mulher que a criouMuitos anos se passaram. Ana Paula cresceu. Estudou, fez magistério, formou-se. Prestou concurso para o serviço público. Diva, mulher de pouco estudo, tornou-se sábia por natureza. Ensinou àquela moça algo que nenhum curso lhe traria: a humanidade. Mostrou-lhe também que essa humanidade é, em síntese, o melhor de uma pessoa. Um dia, a guerreira, que participava ativamente dos grupos da terceira idade na igreja que frequentava, adoeceu. Sentiu-se mal e sangrou sangue de morte. Foi parar no hospital e descobriu o pior: um câncer de útero lhe destruía por dentro e já avançava para outros órgãos. Tinha 64 anos.

Ana Paula cuidou de Diva desde o primeiro momento. Varou dias e noites em hospital. Tornou-se vigilante em casa, soldado pronto pra guerra. Acreditou que a mãe podia suportar mais um pouco. A doença, entretanto, venceu a mulher que fez da vida doação. Em 8 de março de 1995, exatamente no Dia Internacional da Mulher, Diva não resistiu. A filha adotiva acabara de completar 24 anos. No Campo da Esperança, diante do túmulo da mãe, Ana Paula jurou que faria alguma coisa para ajudar outras pessoas, sobretudo carentes.

Há dois anos, ela juntou todas economias que tinha, pediu R$ 60 mil emprestados ao marido. A quantia estava reservada para a dar entrada na compra do imóvel. Até hoje, a família ; pai, mãe e um filho de dois anos ; mora de aluguel, na 312 Norte. Com esse dinheiro, Ana Paula montou uma creche no Núcleo Rural Córrego do Palha, um lugar sem asfalto, perto do Varjão e atrás do Lago Norte.

Graças à generosidade do ajudante de pedreiro Edmundo José Pereira, 62, e da dona de casa Cipriana de Castro, 51, seis filhos, que moram na região há mais de duas décadas, o sonho dela pôde ser realizado. Eles concordaram em doar um pequeno pedaço das terras onde vivem. Foi ali que Ana Paula ergueu sua creche. E escreveu, na entrada da casa, Creche Dona Diva. Pediu ajuda a amigos, formou um exército de solidariedade. Levantou uma casa com portas vermelhas e azuis. Colocou móveis que recebeu da doação alheia. Até uma casinha de criança, onde cabe inclusive fantasia, foi montada na parte da frente.

Em pouco tempo, o lugar estava cheio de crianças. Chegaram 26, filhos de domésticas, pedreiros, costureiras, vigilantes, garis. Meninos e meninas cheios de sonhos. A vida, naquele lugar onde o galo ainda canta ao amanhecer e o tempo parece não ter pressa, ganhou mais fôlego. Encheu-se de esperança. Mães que não tinham onde deixar seus pequenos podiam partir tranquilas para cuidar de filhos de gente abastada e que muito provavelmente nunca ouviram falar num tal de Córrego Rural do Palha.

Transformação
Desde 14 de junho, data em que foi publicada a matéria, o telefone de Ana Paula nunca mais parou de tocar. A ajuda para a creche Dona Diva chegou de todos os lados, de todos os cantos. Se existia uma corrente de solidariedade, várias outras se formaram. A Rede Gasol transformou o lugar. Levou forro novo para todas as dependências. Pintou todo o espaço com cores vibrantes e diferentes. Colocou piso de cerâmica na entrada, onde fica a casinha da fantasia. Doou, ainda, dezenas de cestas básicas e caixas de leite. Para todas as crianças e monitoras, mandou confeccionar uniformes ; camisetas com as cores verde e laranja e o nome da creche.

Mas o melhor ainda estava por vir. As crianças ganharam, por meio do projeto Casa do Saber, uma biblioteca novinha em folha. Vieram as estantes, as mesinhas e, claro, os muitos livros de literatura infantil e revistinhas. Desta vez, Ana Paula batizou o lugar com o nome de uma das filha de Dona Diva. O lugar se chamará Casinha do Saber Fátima Dantas. ;Ela é, depois da minha mãe, a pessoa que mais me deu força na vida. Uma grande companheira e irmã;, explica a fundadora da creche.

Parou por aí? Nunca. Voluntariamente, uma psicóloga e uma pediatra estiveram lá e prometeram fazer visitas semanais. Um dentista também apareceu. O projeto Ciranda, da Universidade Católica de Brasília, levou oficinas de artesanato para as mães das crianças. E alunos da Unieuro encheram o espaço com teatro e fantoche. Um salão de beleza do Paranoá cortará, uma vez por mês, o cabelo das crianças.

Um grupo de amigos se reuniu para garantir que carne, frango e alimentos perecíveis numa faltem. Além disso, o mesmo grupo montou um pequeno parque perto da casinha da fantasia. Chegaram o DVD e a geladeira novos. O BigBox, da 403 Norte, garante frutas e verduras diariamente. O Mesa Brasil, programa do Sesc-DF, abastece a creche com alimentos não perecíveis ; arroz, feijão, macarrão, óleo... Ufa!!

Mundo da fantasia

E hoje a creche vai estremecer. A partir das 9h30, aquele lugar sem asfalto atrás do asfaltadíssimo Lago Norte, pertinho do Varjão, receberá convidados ilustres para a inauguração da tão sonhada biblioteca. A criançada da zona rural contará historinhas, descobrirá um mundo novo e mágico por meio dos livros, viajará sem sair dali e acreditará que a vida pode ser sempre melhor.

Lívia Pereira, 8 anos, é só contentamento: ;A creche mudou muito. Agora, tenho onde pegar livros;. Luiza Uchoa, 7, olhos arregalados diante de tanta novidade, emenda: ;É legal demais...; João Paulo Bispo, 4, que nem sabe ler, diverte-se folheando revistinhas de super-heróis. Olhando tudo aquilo acontecer, e ainda inebriada com tantas mudanças, Ana Paula desabafa: ;Tô muito feliz. Essa é a certeza que a batalha vai continuar;. E planeja: ;Meu desejo é espalhar creches assim em todas as cidades do DF. Isso é oportunidade de vida. Foi tudo que eu tive. E é isso que quero levar a toda criança carente;.

Sem imaginar, Dona Diva ensinou também àquela menina, com simplicidade ímpar, a arte do agradecimento.

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