postado em 13/09/2009 09:10
Ao chegar àquela casa modesta com cheiro de afeto, na QNF 11 de Taguatinga, o homem de 93 anos diz, feliz da vida, querendo compartilhar tanta emoção: "Passe os olhos, veja como tá uma beleza". Ele se refere a um álbum de fotografias que uma de suas 30 netas fez para lhe presentear nos 70 anos de casado. São retratos de cada um dos 12 filhos, dos filhos dos seus filhos, dos filhos dos filhos dos filhos, a história da vida daquele homem e daquela mulher, os sonhos impregnados em cada um, o começo de tudo. Ao rever todas aquelas lembranças, o homem miudinho de cabelos brancos como neve constata: "Setenta anos de vida a dois são muitos dias, né?" São exatos 25.550 dias. Ele tem razão.
A casa é de Raimundo Inácio Gonçalves, de 93 anos. Ele corrige, olhando para a mulher: "Tô no meio dos 93. O três ficou pra trás, já correu. Faço 94 em abril, minha filha". A dona daquela casa é Elisa Ferreira Gonçalves, 93 anos, completados hoje. Na verdade, aquela mulher, para aquele homem, é apenas a sua Zizinha, como ele a chama na intimidade e como Elisa se acostumou a escutar.
E foi na casa de Raimundo e Zizinha, cuja parede da sala tem a oração de São Francisco de Assis transformada num quadro, que a reportagem do Correio passou a tarde da última terça-feira para ouvir mais do que a história de um homem e uma mulher que chegaram aos 90 anos com lucidez e disposição invejáveis. Ali, há uma história que transcendeu o tempo. Sobreviveu e, ao contrário de envelhecer, ficou cada dia mais cheia de vida, mesmo com todas as rugas, o andar mais comedido e o cristalino dos olhos gasto. Esse é enredo de um encontro de almas.
Mas é preciso voltar lá atrás, bem longe daqui, para começar a entender esse encontro. Em Cajuri, interior de Minas Gerais, nasceram Raimundo e Zizinha. Ele veio primeiro. Sete meses depois, ela chegou. A cidade, se ainda hoje é pequena, imagine em 1916. Zizinha era menina prendada. Sabida, dominou logo as letras. Gostava de leitura. Ao terminar a 4ª série, a professora Luzita a convidou para ajudá-la na sala de aula. Lá estava Zizinha, ensinando o ABC a quem sabia menos.
E adivinhe quem era um dos alunos? Ele, o miudinho Raimundo. "No dia em que olhei pra ela, eu disse pra mim mesmo: 'Nossa, ela é estudada demais da conta. Essa aí serve pra namorar e casar'". Zizinha não lhe deu confiança, a princípio. Mas a professorinha não conseguiu escapar do charme de Raimundo. Perto dos 18 anos, começa o namoro. "Quando ela aceitou se casar comigo, um ano depois, eu tive que ir pro Exército", ele conta. E revela um segredo: "Tenho 1,59m, mas lá na ficha puseram que eu tinha 1,60m. Aí, me aceitaram".
E lá se foi Raimundo, o miudinho, ser soldado da cavalaria do 4º Grupo de Artilharia do Quartel de Juiz de Fora. Em Cajuri, à espera do noivo, ficou a religiosa Zizinha. Tempos depois, ele voltou. Era hora de tomar rumo na vida. Desposar uma moça de família. Em 6 de setembro de 1939, casaram-se na Igreja de Santo Antônio da pequena cidade, então distrito de Viçosa. Zizinha tinha 23 anos. Raimundo caminhava pros 24. A cerimônia parou o lugar pacato. De véu e grinalda, ela foi uma das noivas mais bonitas que aquele lugar já viu.
Boa parideira
Casado, Raimundo precisava ter uma profissão para sustentar a mulher e os filhos que viriam. Mudaram-se para Paraguai, povoado de Cajuri, ainda menor que a pequena cidade. Lá, ele plantaria e colheria. Virou agricultor. Em 1940, Zizinha teve o primeiro filho. Pariu sozinha, sem parteira, sem gritos, sem medos, sem choro. Cortou o cordão umbilical do menino. E fez José Raimundo, o primogênito, hoje com 69 anos, chorar forte, com gosto de vida.
Ano a ano, vieram os outros 10: Olemar, Luiz, Odilon, João Batista, Maria Auxiliadora, Maria das Graças, Antônio, José Mauro, Maria Goreth e José Carlos. Apenas os dois últimos chegaram ao mundo com ajuda de parteira. "Eu só deitava quando o menino nascia", conta Zizinha, a mulher que nunca viu mistério para dar à luz.
Os filhos cresceram. Era muita boca pra alimentar. A terra não andava boa. Raimundo soube que longe dali uma cidade se erguia. Seria a nova capital do Brasil. O rádio só falava nisso. Curioso, decidiu, então, que iria conhecer esse lugar. "Zizinha tava grávida de cinco meses do caçula. Eu peguei carona num jipe e parti, um dia depois do Natal", conta. E reflete: "Todo homem tem um destino na vida".
Pelejando naquelas estradas de meu Deus, dias depois Raimundo chegou à então Cidade Livre (hoje Núcleo Bandeirante). Lá em Paraguai, ficaram Zizinha com os 10 filhos e mais um crescendo na barriga. Aqui, não lhe faltou emprego. Foi ser motorista de um dono do hotel, em troca do almoço. "Tenho habilitação desde 1951", orgulha-se. E, assim, Raimundo fez amizade, mostrou suas habilidades. Em seguida, foi ser motorista da construtora Rabelo. "Carreguei gente pro enterro do doutor Bernardo Sayão (engenheiro que ajudou na construção de Brasília e que morreu em janeiro de 1959, antes da inauguração da capital)", conta.
Um dia, Raimundo alugou um caminhão e foi buscar sua Zizinha e agora os 11 filhos. O da barriga, José Carlos, ainda mamava no peito. A mulher chorou feito menina assustada. Tinha medo de deixar sua cidade e partir para o desconhecido. Quem confirma é a comadre e madrinha de José Carlos, Maria Nice Kury, 70: "Eu chorei muito também. Tinha 21 anos e lembro que não queria entregar o Zé Carlos".
A viagem precisava ser feita. Era aqui que Raimundo decidiu criar a família. Pararam num barraco de tábua, na QNF 11 de Taguatinga Norte, onde moram até hoje. "Era 25 de julho de 1960. Brasília tinha três meses de inaugurada", ela diz, sem trair a memória. Ele emenda: "Busquei a Zizinha só depois da inauguração porque era gente demais nessa cidade. Ia ser muita confusão no dia 21 de abril".
Nova vida
Quando chegaram, Zizinha chorou mais ainda. Não havia água nem luz. Taguatinga ainda era mato de deserto. "Que vontade que tive de voltar. Mas lembrei do padre lá de Paraguai me dizendo que mulher tinha que acompanhar o marido..." Aos poucos, ela foi se adaptando. Católica praticante, juntou-se ao grupo da Igreja São José. E liderou a construção da Capela de São João Batista. Os filhos viraram gente grande. Ela tornou-se madrinha de Isabel, filha de uma vizinha amiga.
Quando a menina completou um ano e quatro meses, a mãe dela morreu. Zizinha não pensou duas vezes. Criou Isabel como se filha fosse. Raimundo virou pai pela décima segunda vez. Meio século depois, ele comenta: "Ela quer bem a nós mais do que aos próprios filhos". Hoje, Isabel é professora universitária. Exceto Luiz e Odilon, que moram numa chácara a 70km dali, todos os outros 10 filhos vivem perto dos pais, em Taguatinga. "Se gritar aqui, o terreiro tá cheio", gargalha Raimundo.
A vida seguiu. Vieram as bodas de prata, de ouro, de diamante (60 anos) e agora as de vinho. Vivem, um ao ladinho do outro, há 70 anos. Indago o segredo de dormir e acordar com a mesma pessoa, por tanto tempo. Ela responde, com a voz firme, os olhos ainda acesos e cheios de sabedoria: "É ter compreensão e confiança. Sem isso, não tem como seguir nem continuar junto".
Ligeirinho, sentado ao lado dela, ele diz: "Em primeiro lugar, o amor. Depois, humildade. É preciso saber ouvir um ao outro". E faz questão de explicar: "Quando um tá nervoso, muito brabo, o outro sai. Ninguém briga sozinho, uai". Pergunto sobre fidelidade. Honestamente, Raimundo admite, escondendo o sorriso ainda maroto: "Não tem homem santo". Ela emenda: "Eu nunca quis saber..."
Na festa dos 70 anos, domingo passado, realizada na capela que ela ajudou a construir, estavam os amigos e a família. Havia mais de 200 pessoas. Cada convidado levou para casa uma garrafa de vinho personalizada. No rótulo, na parte de trás, a mensagem: "Uma história de amor pela família, composta de doses de carinho, compreensão, atenção, respeito, dedicação, batalha e, acima de tudo, fé".
Até hoje, Raimundo dirige seu carro. A bordo do Fiat Uno Branco, ano 1998, vai para todos os cantos. "Minha carteira foi renovada e tá válida até 2010". Ele carrega, literalmente pendurado no banco do motorista, um certificado que virou quadro: a Honra ao Mérito do Detran, de 1978, por dirigir sem multas. "Quando o guarda me para, mostro na hora." Zizinha nunca teve empregada. "Sempre cuidei da minha casa e dos meus filhos", diz. Cuida até hoje, com zelo e disposição, como se fosse o primeiro dia.
No fim da entrevista, na despedida, o homem de 93 anos acompanha o repórter até a porta e avisa: "Quando você precisar de alguma coisa, a qualquer hora, me ocupa". Essa é a história da mulher e do homem que, juntos, do jeitinho deles, escreveram uma saga de vida. E hoje a contam para quem tiver o privilégio de escutar.