Cidades

Médico lança hoje mais um livro, no qual retoma o aprendizado de que a literatura pode salvar vidas

postado em 24/09/2009 10:05
;Meu nome é Eduardo. Referem-se a mim mais como Edu. Dr.Edu. Sou um urologista de quarenta e cinco anos que sofre ironicamente de ejaculação precoce desde os quinze, quando comecei a minha vida sexual...;

(Breve educação sexual de um urologista apressado)

Valdir de Aquino Ximenes conta que descobriu, já na adolescência, a vocação dupla para medicina e literatura, e comenta: Quando escrevo uma obra, tiro a máscara do médico. Não tenho pudoresCaro leitor, isso não é um desabafo. Pelo menos não real. E qualquer semelhança com algum Dr. Eduardo, urologista de 45 anos, com ejaculação precoce, é mera, meríssima, coincidência. Trata-se de um dos 15 contos de um cearense de jaleco branco, desses que usam estetoscópio e andam por corredores lotados de emergências de hospitais públicos e que, nas madrugadas insones, vira escritor. O homem é formado pela Universidade de Brasília, fez especialização durante dois anos no Rio de Janeiro, trabalhou no interior de São Paulo, no início da profissão, voltou a Brasília nos anos 90 e, hoje à noite, lança seu sétimo livro. Em tempo: o homem de jaleco branco é pediatra.

Valdir de Aquino Ximenes, de 47 anos, 35 de Brasília, casado, dois filhos, morador da 311 Norte, vive um dilema. Na verdade, um bom dilema. Às vezes, não sabe se é médico ou escritor. Ou ambos. ;Aos 15 anos, no primeiro ano científico, numa aula de OSPB (calma, moçada, ele quis dizer apenas que estava no primeiro ano do hoje ensino médio, e OSPB era uma disciplina que se chamava Organização Social e Política do Brasil), eu descobri que queria ser médico e escritor;. Por quê? ;Ambas as profissões me fascinavam;, responde ele.

E o menino magricela passou a devorar livros. Lia tudo que lhe caía nas mãos: poesias, contos, crônicas, romances. Conheceu, ainda adolescente, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa e Manoel Bandeira. Extasiou-se com os mestres Machado de Assis e Graciliano Ramos. E rendeu-se ao genial Saramago.

;M. Uma m. Minha vida é uma m. Meu trabalho é uma m. Dou expediente na m., literalmente, quase todos os dias, há trinta anos... Tocar no cocô, nos dejetos. excrementos, detritos, na popular bosta, enfim, não me causa mais estranhamento. Afinal, todos nós, ricos ou pobres, bonitos ou feios, brancos ou pretos, sofremos o mesmo processo fisiológico...;

(Reflexões escatológicas de um procto alcoolizado)


E o menino que mudava a voz queria escrever como aquela gente. Rabiscava alguma coisa (poemas e contos) e escondia. Não os mostrava pra ninguém. Tinha vergonha. Mas, aos 18 anos, encarou a própria obra. Desvirginou-se. Publicou, no Correio, numa coluna de literatura, seu primeiro poema. Simultaneamente, também mandava poemas para um jornal de Fortaleza.

Chegou, porém, a hora de escolher uma profissão. Não daria para ;ser alguém na vida; escrevendo poesias em jornais. O filho de um funcionário público e de uma dona de casa escolheu a medicina como profissão. Passou no concorrido vestibular da Universidade de Brasília. Paralelamente ao curso, envolto com anatomia do corpo humano, suas dores, doenças e o eterno dilema entre vida e morte, escrevia suas coisinhas. Era sua válvula de escape.

No quinto ano de medicina, o estudante Valdir precisava descobrir qual a especialidade que seguiria. ;Transitei pela psiquiatria, depois cardiologia e acabei optando pela pediatria;, ele conta. Formou-se. E partiu para a especialização, no Rio de Janeiro. Na bagagem, além dos livros de pediatria, seus muitos romances, contos, poesias, poemas...

De volta a Brasília, em 1990, e agora doutor Valdir, faz concurso para a Secretaria de Saúde. É aprovado em terceiro lugar. Lotam-no no Hospital de Planaltina, onde fica por quase duas décadas. No tempo livre, corre para o papel e a caneta. É assim que escreve até hoje.

;Se ela acreditasse em coisas ligadas a destino, mais precisamente em ironias do destino e congêneres, ela diria que estava diante de uma prova. Se ela acreditasse. Mas o fato é que Dra. Helena Miller não acreditava. Dra. Helena era uma neuropediatra e psiquiatra infantil, trinta e nove anos de vida, mãe de um menino de sete, portador de autismo em grau profundo...;


(Reinvenção)


Em 1993, o doutor de jaleco branco toma coragem. Lança, aos 31 anos, sua primeira obra, O homem submerso. Ali, reuniu muitas de suas poesias escondidas. ;Coisas que comecei a escrever aos 16 anos. Decidi publicar porque me sentia maduro para fazê-lo;, explica. O livro teve boa aceitação. Valdir se empolgou. Nunca mais parou de escrever. Conciliava as duas profissões: a de médico e escritor.

Dois anos depois, em 1995, veio o segundo livro: A solidão da carne, com poemas de cunho mais existencial e pessoal. É uma autorreflexão da vida. Em 2000, a terceira obra, o primeiro romance: Homem de branco em noite escura. ;São as dúvidas, as crises de um médico que abandona o país. Metade da história se passa dentro de um plantão. A noite escura do título remete a diversas interpretações;, conta.

Entre idas e vindas dentro de um hospital público lotado e toda a sorte de dramas e mazelas que acompanham o sistema de saúde do país, o pediatra escapava, em suas noites sem dormir (;minha insônia é crônica;, ele admite), para a literatura. Em 2004, mais uma obra, dessa vez com apoio do Fundo de Amparo à Cultura (FAC), da Secretaria de Cultura do GDF. A volúpia e as algemas aborda a sexualidade na terceira idade. ;Não é uma obra científica. É ficcional;, esclarece.

Em 2007, o homem de estetoscópio lança O quinto livro. Ele mesmo explica: ;É um romance, uma espécie de manual de inclusão e de sobrevivência na selva literária brasileira. Também tive o apoio do FAC;.

;Mas era precisamente esse o nó da questão: a incompetência do Dr. Humberto em fazê-lo. Ele não só sabia entubar. Nunca soubera. Dez anos de formado e nunca aprendera. E agora estava ali, no centro obstétrico, confrontando com essa realidade, sentindo uma solidão abissal, talvez até maior do que a do recém-nascido que morria em suas mãos mal iniciado o seu projeto de vida...O anestesista, este sim, sabia de tudo...;

(Fraude)


Agora chegou a vez de Contos de uma vida médica, em que a história daquele urologista apressado, apresentada no início desta reportagem, está inserida. Longe do hospital, na biblioteca do amplo apartamento, com livros espalhados por todos os cantos, o escritor revela: ;Quando escrevo uma obra, eu visto a persona literária. Tiro a máscara do médico. Não tenho pudores. A literatura, enquanto ficção, tem que ter qualidade, mas não pode ter amarras;.

Na orelha do livro, o renomado escritor Moacyr Scliar, que também é médico, escreveu: ;Valdir Ximenes de fato domina a arte do conto, sabe narrar uma história de maneira a prender a atenção do leitor. Seus diálogos são vividos, a temática respira autenticidade...;

Pergunto ao homem de jaleco branco o que ele sente quando escreve. Ele responde, sem titubear, folheando mais um dos seus livros: ;Uma sensação de vida. A literatura pode salvar vidas; refiro-me a vidas no contexto espiritual, psicológico;. A conversa se estende. Conto-lhe que tenho três irmãos médicos e que jamais teria escolhido a mesma profissão. Insisto em saber por que grande parte dessa gente de jaleco branco se acha acima do bem e do mal e se sente onipotente. Como se Deus fosse e nós, apenas um número, sem nome, na antessala deles, impotentes diante da ;suprema sapiência;.

; Fica quieto, aí, seu f.d.p.!

Foi o que disse mentalmente Dr. Caetano, ao dar um ponto na coxa direita do indivíduo sangrando na maca do box de emergência da cirurgia, vítima de uma facada. Expressou a sua ordem apenas mentalmente, pois se tratava de um paciente de alta periculosidade, a se avaliar pelo séquito de policiais que o acompanhavam...
; Ai, p.! Vai devagar aí mermão! Fica ligado, pô!

O sujeito era folgado, metido a valentão, não respeitava diploma nem doutor, muito menos patente e farda.

; Então não mexe, senão vai doer e demorar mais anda.

Escolado por mais de vinte anos como ciurgião geral de hospital de periferia, Cateano sabia que aquela segurança era ilusória...


(Sobre tragédias e comédias)


O médico-escritor ; que diz acreditar em Deus e assume a dificuldade em aceitar a morte ;sob o ponto de vista filosófico;, mas a entende sob o prisma biológico ; defende a categoria (comum na classe) e faz uma confissão no mínimo surpreendente: ;Este livro, por exemplo, reduz o médico à dimensão humana. Demasiadamente humana;. E prossegue: ;Não estamos com essa bola toda, não (refere-se à onipotência). Na minha experiência, percebo, pela carga horária, os baixos salários e o estresse diário da profissão, um alto índice de depressão, alcoolismo e uso de drogas. Posso lhe afirmar que a maioria dos médicos tem a exata noção de sua limitação enquanto ser humano;. Oxalá seja realmente verdade. E, se for, ganhamos nós, pobres mortais sem jaleco branco.

Confira / Contos da vida médica será lançado hoje, a partir das 18h30, no restaurante Carpe Diem, na 104 Sul. O livro está à venda na livraria Café com Letras, na 203 Sul

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