postado em 29/09/2009 08:46
Ele mora numa chácara na região do Torto. Tem 14 anos e estuda a 8; série num colégio particular no fim da Asa Norte. Nunca viveu em apartamento. Nem sabe como é se sentir imprensado, ao lado de um bando de gente nem sempre simpática (na maioria das vezes), que se chama de vizinho, mas de quem não se sabe ao menos o nome. E muito provavelmente nunca se saberá. Sorte dele. Na casa onde vive, há paredes multicoloridas. Tem verde, azul, vermelha, abóbora, amarela. Nos fundos, tem um bambuzal e passa um córrego. Parece um riozinho. O pai é maestro da Orquestra ArtBrasília e professor de violino da Escola de Música de Brasília (EMB). A mãe, hoje funcionária pública de um tribunal, tocava saxofone. Aquela chácara é toda musical. Há acordes por todos os cantos. Até os pássaros cantam. Quando se chega, duas cadelas rottweiler, criadas soltinhas da silva, bem crescidas e sisudas, recebem o visitante. Pasme: elas não atacam, não avançam, não latem. Segundo a dona da casa, nunca atacaram ninguém. Só se acredita depois que se vê. Mas ela se apressa em explicar: ;A música as deixou calmas;. Brincadeiras à parte, aquele lugar é, de fato, especial. E ali mora um menino tímido, quase calado, que achou na música a maneira de se encontrar com o mundo e com a vida de forma encantadora.
Ao primeiro contato, ele diz, confessando um segredo arrancado a sete chaves, como se contasse um pecado: ;Não sou muito bom com as palavras;. Bobagem. Não precisa ser bom com as palavras. A música que sai do seu instrumento é tão espetacular que palavras são completamente dispensáveis. O nome dele é Ayrton Pisco. Nasceu em Brasília e desde os 3 anos, incentivado pela mãe, que na época tocava saxofone, começou a se interessar pelo violino. A mineira Márcia Elisabeth Pisco, hoje com 40 anos, foi a mentora do filho nesse caminho. O pai, que já dava aula na EMB, o carregava para o trabalho.
Lá, ele, que começava a falar, apreciava a arte que saía de todos os instrumentos. Acostumou-se com aquele som. Tudo em sua volta era música. Ayrton Macedo Pisco, 51, carioca do Flamengo, lembra: ;Em casa, quando chegávamos, ele tocava violino;. Aos três anos e oito meses de vida, a mãe lhe deu o primeiro instrumento. ;Com essa idade, ele estudava cinco minutos por dia. À medida que ia crescendo, o tempo aumentava. Pulamos para dez minutos, depois 15 e, aos cinco anos, ele tocava meia hora.;
E a mãe continua: ;Comprei um livro com as 100 melhores músicas infantis. As partituras eram bem simplificadas, feitas para criança. Ensinei a ele apenas três. Ele aprendeu 97 sozinho. Foi quando percebi que, a partir dali, não tinha mais nada para ensiná-lo. Meu filho sabia mais do que eu. Disse ao pai: ;Agora, é com você;. E passei a missão pra ele;.
Festival na Alemanha
Aos cinco anos, Ayrton, o filho, tocava Beethoven em festa de casamento. Flamenguista roxo, aprendeu logo o hino do time. ;Era um talento excepcional. Pegava de ouvido;, o pai diz. E assim, descobrindo os grandes compositores clássicos, o menino cresceu. Chegou à adolescência. Não há um dia, um diazinho sequer, em que não toque o seu violino. E estuda como se fosse a primeira vez. Na EMB, não há mais o que aprender. Passou de todos os níveis. Virou spalla (primeiro violonista) da Orquestra ArtBrasília.
Em agosto passado, depois de um teste rigoroso, como prêmio, passou um mês na Alemanha. Foi um dos 17 brasileiros, que tocavam os mais variados instrumentos, agraciados com a bolsa de estudos. Detalhe: as vagas eram para jovens a partir de 16 anos. Ayrton completaria 13. Quando se submeteu à avaliação, tinha ainda 12. O desempenho dele foi tão comovente que os organizadores do festival, boquiabertos, não puderam e não tiveram como vetá-lo. E o menino partiu, cheio de calos nos dedos e no queixo, como tem até hoje. Sonhou com as grandes orquestras do mundo. Viu-se nos grandes teatros. Voltou, mais do que nunca, com a certeza de que queria viver de música. Só aquilo o satisfazia. Era irreversível.
Ayrton seguiu estudando, tocando, pesquisando música na internet, participando de festivais, concursos. Ganhando prêmios, aqui e fora de Brasília. Naquele lugar cujas paredes são coloridas, a vida tomava rumo. O pai construiu um estúdio dentro de casa. Ali, para se entrar, de tão sagrado, tem-se que ficar descalço. Ayrton pai, no teclado, acompanha o filho.
A filha mais nova, Arthalides, 12, também toca violino. E a música invade todos os ambientes. Sai pela janela. A mãe, na porta, ouve o que a família é capaz de fazer. Hoje, sem tocar mais saxofone, Márcia Elisabeth apenas escuta. E parece voar dali. As cadelas rottweiler, do lado de fora, continuam calmas. E lá fora, no fundo da chácara, o riozinho segue seu leito.
Rio de Janeiro
Hoje, às 9h05, quando um avião decolar rumo ao Rio de Janeiro, os Ayrton, filho e pai, estarão a bordo. E há um motivo especial para aquela viagem. O violinista de 14 anos receberá mais um prêmio: revelação especial no IV Festival Mignone de Jovens Intérpretes. Ainda embolsou R$ 1mil. Detalhe de novo: o concurso era destinado a músicos de 16 a 18 anos que tocavam instrumentos de corda ; violino, viola e violoncelo.
Gente de todos os lugares do país mandou seus vídeos. O de Ayrton foi selecionado entre os dez melhores. Na semana passada, lá estava ele, apresentando-se para um júri exigente e conceituado, entre eles o maestro Henrique Morelenbaum. Depois de ouvi-lo tocar uma peça de Tchaikowski, o maestro o aplaudiu e lhe perguntou apenas uma coisa: ;Qual a sua idade, garoto?; Ele respondeu: ;Quatorze;. Emocionado com o que acabara de ver e sobretudo ouvir, o maestro quis ver a identidade.
Logo mais à noite, no Espaço Cultural Finep, na Praia do Flamengo, Ayrton se apresentará ao lado de uma pianista. Tocará, no seu violino, três danças brasileiras antigas, de Osvaldo Lacerda, e danças folclóricas romenas, do compositor húngaro Bella Bartók. O coração estará a mil. O pai, na plateia, tentará esconder as lágrimas. Aqui, na chácara, a mãe pensará nos dois.
Pergunto ao menino tímido ; que diz não ser bom com as palavras, admite gostar de Skank e Legião Urbana e está arranhando (palavra dele) uns passos no teclado e no violão ; o que ele sente quando toca. Com o violino no colo, ele responde, sem fitar o interlocutor: ;Me sinto feliz quando vejo que as pessoas gostam da minha música e se emocionam com ela;. Insisto, desnecessariamente, em saber se ele quer realmente seguir essa profissão pelo resto da vida. Ele devolve: ;Quero ser músico. Disso eu tenho certeza;. A mãe conta que o filho ainda nem falava e um dia escutou a buzina de um caminhão. ;Em seguida, ele repetiu o som da mesma nota. Acho que ele toca desde que nasceu...;
Deitado numa rede, ele dá mais uma palhinha para o Correio. Toca Rosa, de Pixiguinha. É aquela que diz assim: ;Tu és divina e graciosa estátua majestosa no amor! Por Deus esculturada e formada com ardor... Da alma da mais linda flor, de mais ativo olor, que na vida é preferida pelo beija-flor...;. Ele fecha os olhos. É como se mais ninguém estivesse ali, só ele e o seu violino. Na verdade, pra ele, não há mesmo. O que fazer? Aplaudir? Pedir bis? Não. Apenas ouvir. Há encantamento que não pode ser interrompido. A alma se encarrega de bater palma.