A sala de audiências da Vara de Delitos de Trânsito de Brasília ficou pequena para tanta gente. Ao todo, 17 motoristas foram julgados de uma só vez na tarde da última terça-feira. Eles acabaram no banco dos réus por ter ignorado a lei que proíbe o condutor de dirigir alcoolizado. A audiência coletiva foi um meio encontrado pelo juiz Gilberto Pereira de Oliveira para dar conta de tantos processos. Só este ano, chegaram cerca de 400 entre casos julgados e outros que aguardam julgamento.
O Correio conseguiu autorização para assistir a uma dessas audiências para saber como se comportam os infratores durante o julgamento e o que pensam sobre as punições aplicadas. Só no fim da sessão, os réus foram informados de que havia uma equipe de reportagem entre eles. O grupo não aceitou ser fotografado. E a maioria não quis dar entrevista. Quem topou falar, pediu sigilo do nome.
A pequena sala abriga homens e mulheres de diferentes classes sociais. Uns jovens, outros com os cabelos completamente brancos. Vestindo terno e gravata ou apenas camiseta e bermuda, salto alto ou uma simples rasteirinha, ali todos recebem o mesmo tratamento. Alguns chegam acompanhados de advogados. Quem não tem dinheiro para pagar um é assistido por um defensor público. No fim da audiência, há quem saia conformado com a punição. Outros, nem tanto.
Antes de ler o acordo de suspensão do processo proposto pelo Ministério Público(1) para os réus sem antecedentes criminais, o juiz dá uma bronca. ;Todos vocês sabem porque estão aqui. Ninguém está proibido de beber. Não existe lei seca. Só é proibido misturar bebida com volante;, lembra. ;Julgo casos de acidentes com morte. Pergunto: o que aconteceu? O motorista responde: não sei, foi tudo tão rápido. Só que isso custou a vida de uma pessoa. Você pode até fantasiar que estava certo. Mas isso não muda o fato de que quem morreu, morreu. Quem matou, matou;, diz o magistrado.
No rosto da maioria, a expressão é de desconforto. Há quem fique com um certo ar de indignação. Mas ninguém verbaliza a insatisfação de estar ali. Achando justo ou não, os condutores ouvem em silêncio a repreensão. No sermão, o magistrado aconselha ao motorista que, antes de pegar o volante, alcoolizado, pense na própria família. ;Você não sabe quem está no outro carro. Pode ser sua mulher, seu filho, sua mãe, seus netos. Você pode matá-los ou deixá-los gravemente machucados.;
No fim da audiência, o juiz lê o acordo proposto pelo Ministério Público e pergunta nominalmente aos réus se aceitam as condições. Esse é o único momento(2) em que alguns se manifestam. O advogado de um dos condutores perguntou se o cliente não poderia cumprir as 96 horas de serviço comunitário em um abrigo do qual já atua como voluntário nas horas de folga. A resposta do juiz foi incisiva. ;Não, não pode. Tempo para beber, todos conseguem. Um médico que passou por aqui também queria prestar o serviço no hospital onde já trabalha. A intenção do trabalho voluntário é que o tempo dedicado sirva para você refletir sobre o seu erro. Se for uma atividade que você já faça, isso não vai acontecer;, justificou o magistrado.
A pedagoga Maria Clara*, 32 anos, considera o acordo proposto pelo Ministério Público rigoroso demais. ;Aceitei porque a outra opção (deixar o processo correr até o fim) é pior. É aquele típico caso: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come;, compara. O teste do bafômetro de Maria Clara acusou 0,62 miligrama de álcool por litro de ar expelido pelos pulmões.
O teste foi feito após ela envolver-se em um acidente em frente à Rodoferroviária. ;Eu passei no sinal vermelho e estava em alta velocidade. Se eu estivesse respondendo por isso, eu até concordaria. Mas por ter bebido, isso eu não concordo.; Pergunto, então, como o aparelho acusou alcoolemia se ela não havia ingerido bebida alcoólica. ;Não bebi `entre aspas`. Foram só duas latinhas de cerveja e não a ponto de me transformar numa arma para outras pessoas;, garante.
O funcionário público Pedro, 50 anos, é outro que se considera um ;azarado;. Morador do Cruzeiro, ele diz ter saído de uma festa de aniversário na casa do pai com destino à própria residência, que fica na rua de baixo. Primeiro, ele conta assim a história: ;Saí, virei a esquina e entrei na rua da minha casa. Parei o carro, tirei as chaves, fechei a porta, aí chegou uma viatura da PM e me levou para a delegacia;. Mas, logo depois, lembra-se de um detalhe. ;A roda da frente subiu em cima do meio fio. Desci e tentei empurrar o carro. Quem disse que eu conseguia? Aí, a polícia chegou, insistiu para eu fazer o teste e acabei na delegacia;, conta.
Surpresa
O estudante de direito Ricardo, 27 anos, saiu surpreso da audiência por duas razões: a conduta do juiz e a lista de exigências para ter direito à suspensão do processo. ;Achei que o juiz seria duro conosco. Mas ele deu uma aula;, comenta. ;Eu esperava que fosse mais fácil cumprir o acordo. Mas, prestar 96 horas de serviço comunitário em hospital e vir aqui todo mês, durante dois anos, são exigências pesadas demais.;
Na audiência à qual a reportagem assistiu, todos aceitaram o acordo. A promotora da Vara de Delitos de Trânsito do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Laura Beatriz Rito, diz que é assim na maioria das vezes. ;É vantagem para todo mundo. O MP não tem interesse em processar, nem a pessoa quer ser processada. Para esse perfil de réu, cumprir as exigência surte muito mais efeito do que ficar atrás das grades;, assegura. Um dos réus tentou negociar a doação de R$ 500 para uma instituição de caridade. ;Por conta disso aí (ter sido flagrado ao volante alcoolizado), perdi a minha habilitação e o meu emprego. Minha mãe está me ajudando a pagar o aluguel. Tem como diminuir esse valor?;, perguntou. A promotora fixou a doação em R$ 400 e permitiu que ele pagasse em quatro vezes, em forma de cesta de alimentos, cada uma no valor de R$ 100.[SAIBAMAIS]
Márcio, 31, é socorrista. Das pessoas que aceitaram dar entrevista, ele foi o único que considerou as exigências do acordo justas. ;Já socorri tantas pessoas. A verdade é que a gente nunca pensa que acontece conosco ou com nossos familiares. Acho que ficou de bom tamanho;, avalia.
1 - Sem antecedentes
É um benefício previsto em lei. Só têm direito a ele pessoas sem antecedentes criminais. É como se o Ministério Público desistisse de provar a culpa do réu. E este, por sua vez, desistisse de provar a própria inocência. Em troca, o processo criminal por terem dirigido alcoolizado fica suspenso por dois anos. Nesse período, o caso não aparece no nada consta. Em contrapartida, o réu se compromete a cumprir uma série de exigências.
2 - Exigências
Os condutores têm que doar R$ 500 para uma instituição de caridade, inscrever-se no curso de direção defensiva oferecido pelo Departamento de Trânsito (Detran), prestar 96h de serviço comunitário em um hospital público, assinar folha de audiência no Fórum uma vez por mês durante dois anos, e pedir autorização judicial para deixar o DF em caso de viagens com 30 dias ou mais.
O número
400
Número aproximado de casos, entre os julgados e os que aguardam julgamento, na Vara de Trânsito de Brasília
(*) A pedido dos réus, os nomes incluídos nesta reportagem são fictícios